A PARALISIA DA AFECÇÃO
(sobre A Mulher Sem Cabeça, de Lucrecia Martel)

A Mulher Sem Cabeça mostra uma mulher de meia-idade, Verónica, que atropela um ser vivo (um dos meninos que aparecem na cena de abertura? ou o cachorro que está com eles? ou algum outro que sequer vimos antes?) numa estrada de terra, mas não presta socorro e segue em frente. A cena do atropelamento é paradigmática: um plano-sequência filmado de dentro do carro, focado no rosto de Verónica; há um solavanco, ela pára o carro, mas não sabemos ainda o que aconteceu, a câmera permanece nela, o fora-de-campo se infla na nossa imaginação à medida que nos é adiado o acesso a ele. Depois que Verónica recoloca o carro em movimento, corta para um plano em que vemos, pelo vidro traseiro, bem ao longe e se distanciando cada vez mais, um corpo estendido na estrada. Os dias que se seguem ao incidente são filmados igualmente do ponto de vista dessa clausura empirística que pautou a cena do atropelamento. A câmera se cola em Verónica, e uma profusão sensorial nos impede de concatenar os fatos; estamos mergulhados num cotidiano atormentado pela culpa, pela dúvida, pela indefinibilidade.

O que quer que tenha cruzado o caminho de Verónica, sua presença-ausência agora assombra todos os enquadramentos do filme. O drama se internaliza e se virtualiza, dilui-se nos espaços, na paisagem, na banalidade cotidiana, no fundo quase sempre desfocado das imagens, evanescendo a presença do mundo ao redor da personagem principal à medida que o peso da consciência dela aumenta. Os estímulos aferentes do mundo objetivo e da apreensão sensível são desproporcionais a seus prolongamentos subjetivos. O olhar seleciona patologicamente as partes do real que lhe interessam e afetam. A ficção, ou o que sobra dela, consiste na errância de uma mulher desconectada de um arrière-monde tornado mais e mais abstrato. A narrativa é pura passagem, passagem que não progride, não vai de A a B, mas de A a A', A'' e assim por diante – sutis variações em torno de um mesmo estado afetivo instaurado desde o início. No lugar da ação, a afecção. O filme se constrói à semelhança do comportamento de Verónica na cena do atropelamento: dilatando o intervalo entre ação e reação (a atuação de María Onetto, rosto transformado em placa reflexiva imóvel, parte de um limitado repertório de nuances de expressão). É a imagem-afecção – tal como Deleuze a definiu em Imagem-Movimento – quase que didaticamente exposta: a imagem que absorve uma ação exterior e reage interiormente.

Lucrecia Martel, seus longas anteriores já demonstravam, elabora seu cinema às custas de muita amarração plástico-conceitual e muita consciência sobre a forma. Mas o que se prefigurava em A Menina Santa agora se confirma: o horizonte estético da diretora é algo ali entre um blablablá conceitual pautado por modas recentes e uma propensão ao academicismo. A Mulher Sem Cabeça deriva não exatamente de Antonioni, mas do que Deleuze escreveu sobre Antonioni, sobre fracasso sensório-motor, situações puramente óticas e sonoras etc. Se o filme se encaixa tão bem no panorama do “cinema contemporâneo”, é porque esses conceitos, embora já tenham sido digeridos e regurgitados há pelo menos vinte anos, acham-se nele reciclados pela nova norma gramatical do cinema de autor, que prescreve como regras inalteráveis o minimalismo narrativo e a ambiguidade generalizada. Martel parece ter calculado (com sucesso) uma fórmula de sutileza paradoxalmente nutrida por uma violência latente, peça importante em sua dramaturgia desde o longa de estréia, O Pântano. Essa violência, antes presença sólida mesmo que encoberta, a partir de A Menina Santa começou a soar um pouco farsante, um subterfúgio para dar consistência e tensão a uma visuália pretensiosa mas inoperante. A Mulher Sem Cabeça é o ápice disso, uma sucessão de vagos exercícios de estilo. Lá pela metade do filme, o deslumbramento de Martel com o cinemascope se torna até ingênuo.

Ela faz um cinema predestinado a festivais internacionais, o equivalente a uma arte predestinada a museus que Valéry criticaria pelo excesso de pontos “admiráveis” e pela falta de “delícias”. Epítome de um novo academicismo sobre o qual já discorri em outros textos, Martel vem sendo o farol de muitos jovens cineastas e estudantes de cinema. Uma sensibilidade lugar-comum que, a curto e médio prazo, só poderá engendrar formas banais.

O mar agitado e a piscina com cloro

O melhor modo de expor o ponto central de minha recusa ao falacioso último longa-metragem de Lucrecia Martel é compará-lo a O Intruso, filme de uma cineasta, Claire Denis, que também trabalha bastante as noções de fragmento e passagem, substituindo a “trama” pelo simples (nada simples, no fundo) impacto estético da luz, do corte, do movimento, da apreensão fugidia de corpos que se esfregam e se misturam. Um cinema que deriva de um olhar não mais diante do mundo, como é em Eastwood, como foi em Hawks, Lang, Fuller e tantos outros, mas sim imerso no mundo.

Os filmes de Denis, como os de Martel, fazem o espectador imergir nas imagens: o olhar, antes em atitude de afrontamento, agora está envelopado, não consegue determinar com clareza os contornos dos eventos, e por isso os fatos filmados possuem bordas esfarrapadas, imprecisas. Mas há uma diferença que é de natureza e não apenas de grau: ver O Intruso é como mergulhar num mar turbulento; ver A Mulher Sem Cabeça é tomar um banho de audiovisual na piscina do condomínio.

O tropismo de Denis pela superfície bidimensional da imagem e pelas qualidades primárias da matéria é uma espécie de volta ao “magma original” de onde brotam as formas. Já em Martel, observa-se um outro movimento: das matérias às maneiras, dos afetos aos efeitos. Outra forma de distingui-las é a partir de um tema importante para ambas: a intimidade. Em Denis, ela passa pelo limite fluido entre corpos e espécies (pensar no devir-animal de seus personagens), pela ductilidade entre o ser e o mundo exterior (já que as fronteiras entre um e outro não são permanentes). Em Martel, a intimidade é preparada, desde a raiz, para o desfrute seguro dos curadores e frequentadores de grandes festivais – uma intimidade, portanto, sem segredo, sem confissão, somente confirmação do que já se espera dela.

Luiz Carlos Oliveira Jr.