DEVILLE E ROZIER NA CINEMATECA
De Adeus Philippine a Christophe Honoré (duas extremidades do cinema francês)

A Cinemateca Brasileira está realizando um ciclo dedicado à Nouvelle Vague francesa, que começou em 13 de maio e se estenderá até 2 de agosto de 2009. Na semana de 30 de junho a 5 de julho, foram exibidos filmes que fogem à obviedade, de diretores menos badalados que Godard, Varda, Truffaut ou Resnais, porém absolutamente essenciais, como Jacques Rozier e Michel Deville. Deste último, passaram Esta Noite ou Nunca Mais (cópia em 16mm, sem legendas) e Adorável Mentirosa (cópia em 16mm, com legendas em português – embora tenham divulgado antes que era sem legendas). De Rozier, passou Adeus Philippine (cópia em 16mm com legendas em português), um dos filmes franceses mais importantes dos anos 1960.

O filme de Deville que vi não causou grande impacto, portanto o comentarei brevemente. Vale lembrar, antes, que Deville era um dos poucos cineastas franceses, ao lado de Claude Sautet, Jacques Deray, Éric Rohmer e mais um ou outro, que os mac-mahonistas defendiam nos anos 60, época em que rejeitavam praticamente tudo que vinha da Nouvelle Vague e de seus arredores. Mesmo assim, em 1967, Jacques Lourcelles dirá que “os nomes de Deray, Sautet, Deville etc. vêm se juntar àqueles de Truffaut, Chabrol, Melville, Lelouch, Resnais, Astruc, Malle etc., para constituir um cinema confortável, satisfeito, amortecido, sem risco, quase sem relação com a realidade: o modelo perfeito de um cinema pequeno-burguês do qual o cinema francês jamais, em nenhum momento de sua história, havia chegado tão perto” (“Journal de 1966”, em Présence du Cinéma nº 24-25, p. 102). Algumas dessas palavras, arrisco dizer, já se aplicariam ao filme de Deville de 1961, Esta Noite ou Nunca Mais. É um filme com bons momentos, mas que parece, no geral, conformado em ser um drama burguês sem compromisso com o mundo que extrapola as paredes do apartamento onde um casal dá um jantar para um grupo de amigos. Enquanto eles passam a noite a fazer brincadeiras, provocações, catarses etc., os golpes de teatro e as crises entre cônjuges são bastante previsíveis. Anna Karina passa o filme todo lamentando sua existência e fazendo caretas de cinema mudo, uma caricatura de sua personagem de Uma Mulher É uma Mulher. Todas as cenas são dialogadas, e muito bem dialogadas, mas a mise en scène da palavra se ressente da ausência daquela arte mais fina, mais consciente do jogo e mais próxima da natureza profunda das palavras, arte de que Mankiewicz, Rohmer, Guitry e alguns outros são os grandes mestres. O fato de a narrativa consistir num jantar e transcorrer praticamente em tempo real cria uma semelhança com Festim Diabólico (Hitchcock, 1948), semelhança reforçada pelo cenário principal do filme, a sala de estar, sobretudo por conta de uma janela panorâmica com vista noturna da cidade e seus letreiros luminosos (e a morte até ronda o ambiente em Esta Noite ou Nunca Mais).

Adeus Philippine, por sua vez, é um filme para não se esquecer. Há nele uma simplicidade e uma crueza que se revertem numa poesia nua, sem metáforas, sem rebuscamento, só significados primários. Rozier parece filmar de forma instintiva e sua mise en scène jamais se revela via de acesso a outra coisa que não os corpos e as ações mostradas. A decupagem descontínua, acidentada, alheia às convenções de eixo e raccord, nasce não de uma deficiência, mas da necessidade de uma expressão imediata, sem subterfúgios, de uma vontade do diretor de partilhar com o espectador sua emoção primeira, capturada viva, apreensão direta do momento. Se há rejeição da retórica tradicional do roteiro e da mise en scène, é para colocar no quadro um sentimento que a técnica, se trabalhada acima do mínimo necessário, enfraqueceria, quiçá destruiria. Mais decupagem significaria menos emoção. A matéria que Rozier escolheu impõe a recusa ao refinamento. Tudo que importa está no centro do quadro, a profundidade e o fora-de-campo não guardam nenhuma informação privilegiada; cada plano existe em função de um único conteúdo visual e sonoro, e se encerra uma vez que esse conteúdo é transmitido. A luz é apenas o suficiente para canalizar para o quadro a energia da cena (e, no entanto, como é pregnante a luz desse filme). Não é uma mise en scène fácil, mas espontânea.

A primeira parte de Adeus Philippine lembra muito Les Mauvaises Frequéntations, de Jean Eustache – jovens em bares, cafés, nas ruas, rapazes flertando com garotas, dançando com elas, se dando bem aqui, mal acolá; o mundo de todos os dias, registrado por um olho “insensível ao que não é fato bruto” (como diria Rohmer). Assim como Eustache, Rozier estava mais sintonizado com o que aconteceria uma década depois do que com o que acontecia exatamente naquele momento no cinema francês. Adeus Philippine e Les Mauvaises Fréquentations, embora sejam filmes de 1962 e 1963, respectivamente, são uma espécie de pós-Nouvelle Vague antes do tempo. É só com filmes como Les doigts dans la tête (Jacques Doillon, 1974) e Passe ton bac d'abord (Pialat, 1979) que eles encontrarão verdadeiro eco no cinema francês. Rozier antecipou aquele cinema que, como Truffaut definiria a propósito de Les doigts dans la tête, seria “simples como 'bom dia'” – sem muito discurso, sem muita assinatura estilística, sem muito conceito, um cinema que parecia ter reencontrado aquele acesso direto ao real que a maioria dos cineastas não sabia mais como obter. Os personagens de Adeus Philippine são jovens vivendo a vida. Michel, um rapaz que trabalha de assistente de câmera numa emissora de TV, se envolve com duas moças e viaja com elas para a Córsega, onde passará os dias que antecedem a data de se apresentar para o exército e partir para a guerra na Argélia. Ocorrem muitas cenas antes disso (incluindo a genial gravação do comercial de um refrigerador, uma das mais engraçadas piadas com a publicidade já filmadas até hoje), mas o principal do filme está nesse idílio mediterrânico, onde a relação de Michel com as duas jovens se intensifica, tudo na verdade se intensifica como num mundo às vésperas de sua extinção. A cena de Adeus Philippine em que o navio se afasta do cais e o oceano brota entre Michel e as duas meninas é de uma beleza indescritível. A cena é como uma despedida do paraíso, e por isso mesmo é tão triste e intensa. Uma tristeza, aliás, que não é delas, das pessoas do filme, que estão enfrentando a vida ao invés de analisá-la. Tristes somos nós.

A exibição de Adeus Philippine ter acontecido na mesma semana em que estreou Horas de Verão (Olivier Assayas) foi só uma coincidência, mas uma coincidência daquelas que nos chamam ao dever crítico. O filme de Assayas, que envolve uma longa discussão sobre a transmissão e a herança do patrimônio (artístico) de uma família, é seu melhor desde Fim de Agosto, Começo de Setembro (1998). Mas o que interessa notar aqui é que Assayas hoje em dia tem muito mais a ver com a qualité française do que com Jacques Rozier; ele se tornou uma espécie de cineasta acadêmico de formação anti-acadêmica, suas narrativas por vezes mornas e seu estilo cada vez menos selvagem e mais domesticado nos levam a situá-lo bem longe de Adeus Philippine. Os cineastas realmente sintonizados com Rozier eram Pialat e Eustache, mas ambos já morreram. Resta Philippe Garrel, que em Les Baisers de Secours (1989) está lá, em pessoa, saindo de um cinema e dizendo que “os filmes de Rozier são sempre belíssimos” (ou algo parecido). Mesmo assim, a dívida de Garrel com Rozier é praticamente ignorada pela maioria (no mínimo, é muito menos comentada e celebrada que sua relação com a Nouvelle Vague).

Se Assayas trata o passado do cinema como peça de museu (restaurada pela tinta do supra-sumo do contemporâneo: Hou, Ferrara...), há quem o transforme em coleção de brinquedos, como é o caso de Christophe Honoré. Ele é o protótipo do realizador que vem de uma cinefilia de butique; só viu os filmes certos, nunca viu os filmes errados (atualmente, venho recomendando o seguinte: desconfie de quem sempre viu os filmes certos e nunca passou pelos filmes errados; ou ainda: desconfie de quem não começou pelos filmes errados). Honoré é o exemplo perfeito do grande mal que pouca cinefilia, ou cinefilia pela metade, faz a uma pessoa. O cinéfilo pela metade é como aquele cara que só leu uma meia-dúzia de livros, mas não consegue escrever senão citando frases desses livros.

Com Honoré, o cinema de butique abre uma nova filial, com outra roupagem, nova sensibilidade, porém a mesma lógica. Esse cinema conta com o apoio eventual da crítica, que às vezes aprova numa década justamente aquilo que combatia na década anterior. Apesar de moderninho, Honoré é um cineasta retrógrado, assim como a cinefilia que abastece é retrógrada, fundada na mesma lógica de sempre (a lógica do que é vistoso por fora e vazio por dentro). Honoré é o oposto extremo de Rozier, Pialat e Eustache. Aquele olhar direto, imediato, cortante, expressão sem filtro de um corpo-a-corpo com o mundo, é substituído em Honoré por um acolchoamento, um adoçante artificial da realidade. Nenhuma cena é direta, nenhum diálogo é frontal. Um homem telefona para a ex-mulher para discutir a relação e eles começam a cantar uma musiquinha cafona. Isso supostamente seria a expressão de uma certa “sensibilidade ao contemporâneo”. Acontece que, minimamente exigida, essa sensibilidade se mostra vulgar e rala, além de extremamente piegas. Honoré faz um cinema de lojinha de bric-à-brac, onde se pode comprar camisetas e ímãs de geladeira com ícones da Nouvelle Vague. É essa a profundidade de suas articulações de signos.

O modo como ele filma Paris é pura publicidade. Honoré só conhece o que é icônico. O que faz um publicitário quando precisa filmar o beijo de um casal, uma perseguição de carros ou uma esquina de Paris? Ele aluga três ou quatro filmes e vê como isso já foi feito antes. Ou então vê as outras publicidades que já abordaram o mesmo conteúdo. O que Honoré faz não é arqueologia de imagens. Muito menos Maneirismo – no Maneirismo não há essa frivolidade, há uma batalha, arbitrada pela inteligência (e aqui, obviamente, falo dos maneiristas de verdade), empreendida no intuito de encontrar a forma (já que ela não vem mais sem esforço, não se acha mais embutida nos conteúdos e nos materiais escolhidos pelo cineasta), livrá-la das forças paralisantes. O Maneirismo é o contrário da cinefilia pela metade. Honoré, portanto, é o contrário do Maneirismo. Ele é aquele triunfo da publicidade sobre o qual já falamos em outra ocasião.

De um cinema feito ao encontro do mundo (Adeus Philippine), passamos a um cinema feito ao abrigo do mundo (Em Paris, Canções de Amor). Todos no cinema de Honoré querem buscar afeto e refúgio nesse intervalo virtual entre a vida vivida e a vida fabulada, dilatar ao máximo esse interstício existencial onde é possível, por essa característica intervalar mesma, proteger-se do peso das coisas. Divisão entre dois mundos, dois momentos da vida (quando se está casado, quando se está separado; quando ela era viva, quando ela é morta; quando se era criança, quando se é adulto), mas sem tormento que não seja contornável por uma fofurice – e, principalmente, sem gravidade. Afinal, para haver tormento e para se fazer presente a gravidade, é preciso que haja uma “trama das responsabilidades” (cf. Rivette, “Génie de Howard Hawks”) permeando os atos e, acima de tudo, que esses atos pertençam também ao mundo da matéria e das coisas práticas da vida – e não somente a uma abstração de linguagem. É exatamente o contrário disso o que acontece em Honoré. O substrato do drama não passa de um pretexto para firulas de decupagem e de sonorização (brincadeiras com o raccord, com voz off, com campo e contracampo, e por aí vai). Aqui sim podemos falar de uma mise en scène fácil. O final de Em Paris é das coisas mais regressistas da década. Um irmão lê uma historinha infantil para o outro, contida num livro que este lhe deu de presente de natal lá nos remotos tempos da paz pré-puberdade. Essa cena realiza a meta máxima de Honoré: um cinema bundinha de neném.

O regressismo e a inércia andam em par. Para se começar um movimento para trás, é preciso antes extinguir todo tipo de movimento para frente. A roda precisa ter seu movimento igualado a zero, para só então retomá-lo em sentido inverso. Honoré é esse zero do movimento. Um lago de águas imóveis, terreno informe à espera de uma construção que nunca virá. O que vem no seu lugar é uma arquitetura virtual, indumentária sem corpo. Um cinema que ignora a “unidade bruta e a espessura do mundo” (Valéry), algo que Jacques Rozier definitivamente não ignorava – e por isso mesmo Adeus Philippine foi um filme dez anos à frente de sua data de fabricação.

Luiz Carlos Oliveira Jr.