Escrever
sobre um
festival que aconteceu há mais de um mês tem suas
vantagens. Vai-se embora o clima de festiva comunhão,
resultado do encontro com amigos distantes, assim como a euforia pelo
banquete cinematográfico; sobram as impressões
mais
marcantes, os momentos em que somos tomados pela pujança
estética de alguns filmes, as discussões que nos
deixaram com questionamentos diversos, até mesmo o que se
sentiu de deficitário. Os filmes se tornam mais
frágeis
na memória, mas a visão de conjunto, por
incrível
que pareça, fica mais nítida, ganha contornos
mais
certeiros, menos enganosos, basta que analisemos a
programação
no catálogo. Passado o tempo, arrisco-me, aqui, a tentar
entender o que foi o 4º CineOP, e como se desenvolveu mais
esse
importante festival do calendário brasileiro.
Anos
70: a tristeza
pela percepção de que as lutas
ideológicas dos
anos 60 foram por terra; o desbunde da soul music, culminando com a
Disco; terrorismo mundial e ditaduras sangrentas, sobretudo na
América Latina. Esse era o panorama de uma década
em
que a tristeza era dominante, mesmo sob as plataformas e coloridos da
moda. No cinema, o reflexo dessa tristeza, onde quer que seja, mas
sobretudo nos EUA. No Brasil, existia Guerra Conjugal,
grande
ausência do CineOP, um dos filmes mais
melancólicos
feitos neste país. Havia ainda o escape
involuntário
das pornochanchadas, a solução da Embrafilme, a
indústria da Boca do Lixo. Filas nas portas dos cinemas para
ver atrizes globais desnudas. Bilheterias que justificavam o otimismo
da classe cinematográfica. A dona Flor, a dama do
lotação,
a escrava que caiu nas graças dos senhores, as boazudas com
intelectuais na praia: as mulheres se tornavam fetiches para atrair
um público diferente e mais popular, mas não
estavam
desprovidas de força e talento. A mulher de todos
não
saiu do gueto, e os malandros do cinema marginal debochavam de tudo,
mas eram pouco vistos. Faziam a diferença nas entranhas, nas
margens das bilheterias.
Mapear
esse cinema tão
rico e melancólico que foi realizado nessa década
confusa seria praticamente impossível em um festival que
dura
apenas cinco dias. Mas dá para dizer que Ouro Preto apontou
apenas dois caminhos, entre vários possíveis:
Embrafilme e Boca do Lixo, deixando os outros para um festival
futuro, ou para outro festival, alhures. De um lado, o sucesso
comercial de filmes como Xica da Silva, Dona
Flor e Seus
Dois Maridos e A Dama do
Lotação; de outro,
o sucesso surpreendente de A Ilha dos Prazeres Proibidos
e a
ascensão do Rei da Boca, Antonio Polo Galante. Nos debates,
mais saudosismo do que discussões, mais apostas no escuro do
que soluções, mais lamentos do que
questionamentos. No
festival passado, com a escolha de Glauber e Sganzerla, estava mais
representado o panorama da década de 60, mesmo que algumas
vertentes do que se fazia ficou de fora. Nesta quarta
edição,
ao privilegiar as mulheres fortes da Embrafilme, o foco se fechou em
apenas um tipo de cinema, e se podemos lamentar algumas escolhas
(Xica da Silva, por exemplo, como filme de
abertura), por
outro lado tivemos, graças a essas escolhas, momentos
marcantes como a presença de Zezé Motta. A
representatividade da Boca do Lixo, infelizmente, foi ainda mais
prejudicada. Nada de Jean Garrett, Osvaldo Oliveira ou Ody Fraga,
diretores que agiam nas entranhas da indústria, que moviam o
lugar, criavam a efervescência necessária para o
sustento de todos. Somente um filme de Carlos Reichenbach e dois
médias documentários sobre o período.
Optando
por um cineasta de culto como Reichenbach, relega-se, novamente, o
gênio incompreendido de Garrett a um quase
inacessível
limbo cinematográfico. Na escolha dos filmes que deram
bilheteria na década, relega-se o retrato mais perfeito
daqueles tempos sombrios e obscuros da ditadura (e de sua consequente
e gradual abertura), filmes como Guerra Conjugal,
com sua dura
e contagiante tristeza, e Muito Prazer, a ressaca
moral e
física da época.
Por
isso podemos dizer,
sem pestanejar, que o 4º CineOP foi importante à
medida
que se revelou incompleto. Sua força foi percebida e
destacada
pelo que ficou faltando, que não foi mostrado, discutido:
uma
essencial radiografia do extra-campo.
Seria
esse o futuro
para nosso cinema?
Nos
curtas, como
sempre, temos uma amostra do que pode ser o cinema brasileiro daqui a
alguns anos. Felizmente, no caso do CineOP, a
prospecção
é amplamente favorável. Mas devemos fazer a
ressalva: a
curadoria em Ouro Preto têm essa
preocupação rara
e salutar de escolher obras questionadoras, para não dizer
deflagradoras. Na verdade, são as duas coisas. Questionam o
status-quo do cinema brasileiro – mostrado em sua mediocridade, e com
algumas poucas exceções, no recente Festival de
Paulínia – ao mesmo tempo em que deflagram uma
urgência
estética que muitos insistem em varrer para debaixo do
tapete
a fim de conquistar o máximo de público
possível,
angariando novos cordeiros do gosto médio. Parece cruel e
até
arrogante, mas o cinema brasileiro não irá a
lugar
algum com tanta preguiça disfarçada de boa
técnica,
tanto medo escondido por trás de atores famosos e muito
conservadorismo na escolha das tramas. Não ajudam as atuais
leis de incentivo, que parecem pedir para que os cineastas
conheçam
mais de advocacia e economia do que de cinema propriamente. Tinha que
dar na mediocridade vigente, da qual alguns curtas exibidos em Ouro
Preto divergem com gana e fúria.
O
exemplo mais marcante
dessa combatividade é JLG por PG: Paolo
Gregori narra
sua viagem a Paris na tentativa de conversar com seu ídolo,
Godard. Diante da negativa deste último, escreve uma carta,
que seria colocada na caixa de mensagem do diretor de Acossado,
carta essa cheia de impropérios e
provocações,
como o cinema marginal endereçava ao cinema novo, ou a
Nouvelle Vague endereçava ao "cinéma de
qualité"
de Claude Autant-Lara e outros. Cinema inquietante, do mesmo diretor
do belo Corpo Presente: Beatriz.
Outro
exemplo de
inquietação é o cinema de Carlosmagno
Rodrigues,
que com DorianGreen dá continuidade
à sua obra
extremamente pessoal, que não raro é confundida
com
picaretagem – aqui mesmo na Contracampo. Difícil
é
negar a força, o incômodo, o desconforto constante
da
experiência de ver os filmes desse diretor.
O
terceiro vértice
do triângulo dos melhores filmes deste 4º CineOP (e
não
estou considerando apenas os curtas, mas todos os filmes novos
exibidos), é Número 27, o
mais tocante e
incrivelmente bem realizado dos curtas pernambucanos. Um mergulho
sincero e aflitivo na mente de um adolescente que passou mal, foi ao
banheiro e borrou a camiseta, enfrentando, assim, a sede por
zombaria de seus colegas de classe. As opções
radicais
da direção nem sempre funcionam, como no corte
atrasado
na cena em que a menina olha para ele e entra, em seguida, em uma
sala vazia (cena filmada em uma câmera lenta de sonho), ou em
alguns posicionamentos de câmera. Mas é um dos
melhores
exemplos de adoção incondicional de um ponto
de
vista – neste caso, o do menino envergonhado.
Outros
curtas se
destacam, por um motivo ou outro. Preferi enumerá-los a
seguir, por conhecê-los de outros festivais, ou a posteriori,
com pequenos comentários:
- Saltos,
de
Gregório Graziosi, é filme de sentidos, rico em
atmosfera e enquadramentos, um verdadeiro salto de qualidade em
relação a Saba, o premiado
curta anterior do
diretor.
- O
Vampiro de
Pequim, de Cássio Pereira dos Santos, adota uma
estética
que pode parecer preguiçosa, mas dá conta da
efervescência de uma faculdade de cinema em Pequim.
- Bomba!,
de
Lara Lima, Marcelo Lima e Renato Coelho, homenageia 1968 e, por
consequência, a Nouvelle Vague. É muito mais
bacana
quando se abre como apaixonado exercício de cinefilia do que
quando posa de experimental, momentos em que sobressai uma cara de
filme de formação universitária.
- Nas
Duas Almas,
de Vebis Junior, é aquele tipo de filme todo errado, mas que
tem uma força gigante, sem que saibamos exatamente de onde
vem. É um dos curtas de mais vitalidade do CineOP,
justamente
por não fugir desse risco constante da implosão
estética.
- Longa
Vida ao
Cinema Cearense, dos Irmãos Pretti, valoriza a
perambulação e a metalinguagem como meios de
homenagear
o cinema. Como se circunscreve no asfalto cearense, acaba por se
tomar como um legítimo produto regional, sem que essa
bandeira
fique confirmada no discurso interior do filme. Este, carregado de
experimentos com luz e movimento, é um manifesto vivo do
tesão
de fazer cinema.
- Bolívia
Te
Extraño, de Dellani Lima e Joacélio
Batista, é
um interessante road-movie pelo solo boliviano a
bordo de um
trem. Esse trem, bem como as imagens bonitas, que procuram um
significado, são bem mineiros.
- Cães
da
Vizinhança, de Gabriel Sanna, focaliza a
câmera em
um cão que lambe as partes íntimas do outro.
Depois de
um zoom desnecessário, um belo plano em que os dois
descansam
juntinhos, tudo em uma discreta câmera lenta.
- Danças,
de Fernando Watanabe, é irregular, sobretudo no
início,
mas quando encontra seu verdadeiro foco, algo que versa sobre
criação
e execução artísticas, é
belo e tocante.
- Muro,
de Tião,
parece um tanto superestimado. Em muitos momentos parece um filme que
não tem muita idéia do que pretende ser,
arriscando-se
em experimentalismos bonitos, mas vazios. O hermetismo parece fazer
parte dessa indecisão, algo ainda tateante em sua
pretensão.
Algumas cenas, contudo, são difíceis de esquecer,
como
a dos copos balançando na mesa e a da corrida dos meninos,
como espermatozóides querendo atingir o óvulo.
- Nego
Fugido,
de Cláudio Marques e Marília Hughes, mais
extraterrestre e estranho do que o experimentalismo
programático
de Muro, mas igualmente limitado por sua
própria
pretensão. Preferível isso ao acomodamento da
formatação para festivais que acomete a grande
maioria
dos curtas brasileiros.
Esses
foram os curtas
novos que mais me impressionaram. Não significa que outros
não
tenham seus momentos, mas são por demais irregulares,
problemáticos no conjunto. Vale ressaltar que não
vi
alguns curtas que foram muito bem falados por lá, como Sweet
Karolynne, Disforme e Nem
Marcha Nem Chouta. De
qualquer forma, qualquer olhar lançado a um festival
é
parcial, sujeito a reavaliações e novas matizes.
O que
vale é o exercício de dialogar com os filmes, com
quem
os viu, e com quem deseja que o cinema brasileiro saia de sua
habitual prisão do gosto médio.
Sérgio Alpendre
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