A
luminescência da discoteca apenas ajudava a perceber a realidade triste e desoladora dos
personagens de Os Embalos de Sábado
à Noite (John Badham, 1977), um
filme-catástrofe em escala íntima. Em
Tony Manero, segundo
filme do chileno Pablo Larraín, essa amarga
constatação é ampliada e deportada para outro
universo. Raúl (Alfredo Garcia) é um cover de Tony Manero
que se comporta como alma penada.
Num país de ruas desertas (o Chile da ditadura Pinochet),
ele
dissemina a morte. É isso o que ele tem para compartilhar
com
o mundo. Sua dança é um
emulação
cadavérica da coreografia de John Travolta. A
atração
que ele desperta nas mulheres com que vive é uma
atração
necrofílica. Seus momentos de mais solta
emoção
se dão no escuro do cinema, no anonimato, só
nós
espectadores sabemos
que ele chora todas as tardes.
Existe
uma curiosa coerência estética em Tony
Manero:
assim como Raúl imita gestos e trejeitos de um personagem
que
ele vê à exaustão no cinema,
Larraín
reproduz – com a mesma afasia – os procedimentos
que viu
em filmes de arte que circulam às dúzias por
qualquer
festival de cinema hoje em dia. Filmar o personagem de perto sempre,
não criar distanciamento, é a principal
lição
aprendida, aquela que cada vez mais parece isentar os cineastas de
suas deficiências. Mas o tiro sai pela culatra: a
planificação
do registro, sua ambivalência, não obriga o
espectador a
um exercício de consciência para além
do
moralismo mais rasteiro. Pelo contrário: todas as
consciências
estão silenciadas e tacitamente absolvidas por essa
técnica
de um ponto de vista unidimensional sobre um personagem de
ações
detestáveis mas que tem vida sentimental. O
desagradável
de algumas cenas são de uma imaturidade tremenda, diluindo a
estratégia de choque em uma
“construção de
atmosfera”, o que só a torna mais covarde.
Apresentar
essa
história como quem se vê na impossibilidade de
ultrapassar certos limites – impostos pelo personagem? ou
pela
cartilha do cinema-de-personagem versão anos 2000?
– é
apenas uma pílula de retórica dentre tantas
outras.
Personagem e câmera se declaram impotentes. A montagem corta
com violência, aumenta o desconforto que os
cenários já
exprimem em cada ranhura das paredes e do assoalho. Há
aquele
já conhecido descompromisso
com as elipses e aquela aparente arbitrariedade da
duração
e da mobilidade dos planos. Essa
“libertação”
da câmera, arrancada de qualquer molde pictórico,
acompanhada de uma oclusão (porém não
necessariamente anulação) das marcas teatrais do
espaço, constitui hoje uma
sistematização formal
tão hegemônica, dentro de um circuito de world
cinema, quanto
a narrativa em
vaivéns temporais havia sido nos anos 90. A
suposta
periculosidade desse relato, sua abertura ao acidente e à
descoberta, se acha devidamente integrada a um projeto
pré-formatado
e pré-aprovado; a
substância inflamável do presente está
totalmente
domesticada. E não se trata de um método, mas de
um
cacoete formal.
Além
das “certas tendências” já
citadas, destaco
o modo como se delineia o contexto histórico: nas bordas do
filme, no fora-de-campo, limitado a invasões
momentâneas.
Um caminhão do exército passa, o personagem
– e,
portanto, a câmera – se esconde: perfeita imagem de
um
cinema que não consegue mais afirmar com clareza o que
é
a História e se protege na sombra da
estilização.
O suspense da cena é falso: sabemos que Larraín
não
corre risco algum de ser capturado pela política e pela
História. O contexto é só um
ingrediente
efervescente, é só a “febre”,
o sintoma de
uma estética parasitada.
Luiz Carlos Oliveira Jr.
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