No
princípio,
havia a cena. Esta evidência pode servir de
“introdução
ao método de Eduardo Coutinho”. Ele é o
cineasta
brasileiro mais teorizado da década, mas um dos menos
compreendidos. O que tem feito não é dar uma
guinada a
cada novo filme, não é tomar uma estrada
diferente para
fugir de itinerários já mapeados. Coutinho
tão-somente
muda as condições de
instalação do seu
cinema e, com isso, faz parecer novidade alguma coisa que já
se oferecia para nós nos filmes anteriores. Precisou que nos
últimos dois trabalhos ele fosse para o palco e escurecesse
o
cenário, de modo a iluminar um teatro que sempre esteve
presente, para que percebêssemos a primordialidade da cena, a
posição central e originária que ela
ocupa em
seu cinema. Mesmo os efeitos de estrutura são
subsidiários
daquela parcela encenada da vida que, em meio às mais
prosaicas conversas frente à câmera, fica retida
na
malha de Coutinho. Não é a estrutura que cria a mise
en scène (como é em Hong Sang-soo), e
sim a mise
en scène que cria a estrutura. E,
em se tratando de Moscou,
devemos dizer as mises en scène,
pois há pelo menos duas: a de Coutinho, naturalmente, e a de
Enrique Diaz, que foi escolhido pelo elenco (os atores do Grupo
Galpão) para dirigir – especialmente para o filme,
sem
proposta de estrear como espetáculo teatral – uma
encenação de As
Três Irmãs,
drama em quatro atos de Tchekhov.
Há
quem diga que toda mise en scène
é já um segundo discurso, uma vez que se
constrói
em cima de uma outra mise en scène
– social, se assim podemos defini-la – incrustada
nos
gestos, comportamentos, falas, para não dizer na
própria
configuração e organização
do espaço.
Tal sobreposição de
encenações tem um
significado a mais em Moscou:
primeiro porque parte de um material de múltiplas camadas (a
leitura de Diaz para o drama de Tchekhov, as memórias
pessoais
de cada ator, o modo como o olhar de Coutinho interpreta o conjunto
etc), segundo porque a relação cinema-teatro
posta em
prática no filme é disjuntiva e não
associativa.
Coutinho não quer que o filme se confunda à
peça
(esta nem chega a ser “narrada”, só
aparece no
filme aos frangalhos), tampouco que o ator se dilua no personagem.
Sua dramaturgia provoca uma clivagem entre um e outro, gerando uma
brecha por entre a qual ressai um terceiro termo, anterior aos outros
dois: o ser humano. É somente nisso que Coutinho
está
verdadeiramente interessado: na aparição desse
homem
que se embrenha entre o personagem e o ator, dessa vida que corta
caminho pelo intervalo incerto entre o drama e o
documentário.
A mise en scène de
Coutinho consiste na aproximação (pelo zoom, por
exemplo) e na fixação dessa
aparição.
Os
cineastas que verdadeiramente conhecem/cultivam o teatro no interior
de sua obra são, não por acaso, apegados aos
elementos
mais antigos da dramaturgia: o ator, a palavra (não
necessariamente o texto). Oliveira, Rohmer, Biette, Green, Straub,
Coutinho: todos eles são
fascinados pela potência naturante (diferente de
estruturante) da palavra, e por conseguinte a tornam
indissociável
do corpo/voz que a profere, que a faz vibrar no ar.
Por
aí já
se vê que Moscou é
um filme mais de dramaturgia que de conceito, é mais um
organismo que uma máquina. Se ele passa a
impressão de
estar mobilizando alguma grande operação
conceitual, é
porque hoje, começo do século XXI, faz-se
às
vezes necessário empreender toda uma série de
idas e
vindas, construções e
desconstruções,
junções e disjunções,
somente para
encontrar, ao cabo do processo, aquilo que um tempo atrás
era
o princípio de tudo: o ator, a palavra. Começo a
me
repetir.
Um
último comentário, à guisa de
observação
e não de conclusão: Coutinho curte uma breguice.
E
algumas de suas cenas
mais marcantes em filmes recentes se destacam por esse aspecto
–
aquele senhor que canta “My Way” em Edifício
Master, a
sobreposição
de vozes cantando “Se essa rua, se essa rua fosse
minha”
em Jogo de Cena. Nem
sempre a cena é boa (o “My Way” de Edifício
Master é
antológico,
mas a cantoria final de Jogo de Cena
é só o lado piegas do brega, não tem o
lado
emocionante). Em Moscou ele
tornou a coisa mais estranha: um homem e uma mulher cantam
“Como
vai você”, do Roberto Carlos, imersos na
escuridão,
acendendo fósforos e isqueiros intermitentemente. As
pequeninas chamas fugidias se procuram no escuro. O teatro das
matérias encontra o teatro abstrato das
emoções.
Uma belíssima cena para coroar um grandioso filme de
Coutinho.
Luiz Carlos Oliveira Jr.
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