MOSCOU
Eduardo Coutinho, Brasil, 2009

No princípio, havia a cena. Esta evidência pode servir de “introdução ao método de Eduardo Coutinho”. Ele é o cineasta brasileiro mais teorizado da década, mas um dos menos compreendidos. O que tem feito não é dar uma guinada a cada novo filme, não é tomar uma estrada diferente para fugir de itinerários já mapeados. Coutinho tão-somente muda as condições de instalação do seu cinema e, com isso, faz parecer novidade alguma coisa que já se oferecia para nós nos filmes anteriores. Precisou que nos últimos dois trabalhos ele fosse para o palco e escurecesse o cenário, de modo a iluminar um teatro que sempre esteve presente, para que percebêssemos a primordialidade da cena, a posição central e originária que ela ocupa em seu cinema. Mesmo os efeitos de estrutura são subsidiários daquela parcela encenada da vida que, em meio às mais prosaicas conversas frente à câmera, fica retida na malha de Coutinho. Não é a estrutura que cria a mise en scène (como é em Hong Sang-soo), e sim a mise en scène que cria a estrutura. E, em se tratando de Moscou, devemos dizer as mises en scène, pois há pelo menos duas: a de Coutinho, naturalmente, e a de Enrique Diaz, que foi escolhido pelo elenco (os atores do Grupo Galpão) para dirigir – especialmente para o filme, sem proposta de estrear como espetáculo teatral – uma encenação de As Três Irmãs, drama em quatro atos de Tchekhov.

Há quem diga que toda mise en scène é já um segundo discurso, uma vez que se constrói em cima de uma outra mise en scène – social, se assim podemos defini-la – incrustada nos gestos, comportamentos, falas, para não dizer na própria configuração e organização do espaço. Tal sobreposição de encenações tem um significado a mais em Moscou: primeiro porque parte de um material de múltiplas camadas (a leitura de Diaz para o drama de Tchekhov, as memórias pessoais de cada ator, o modo como o olhar de Coutinho interpreta o conjunto etc), segundo porque a relação cinema-teatro posta em prática no filme é disjuntiva e não associativa. Coutinho não quer que o filme se confunda à peça (esta nem chega a ser “narrada”, só aparece no filme aos frangalhos), tampouco que o ator se dilua no personagem. Sua dramaturgia provoca uma clivagem entre um e outro, gerando uma brecha por entre a qual ressai um terceiro termo, anterior aos outros dois: o ser humano. É somente nisso que Coutinho está verdadeiramente interessado: na aparição desse homem que se embrenha entre o personagem e o ator, dessa vida que corta caminho pelo intervalo incerto entre o drama e o documentário. A mise en scène de Coutinho consiste na aproximação (pelo zoom, por exemplo) e na fixação dessa aparição.

Os cineastas que verdadeiramente conhecem/cultivam o teatro no interior de sua obra são, não por acaso, apegados aos elementos mais antigos da dramaturgia: o ator, a palavra (não necessariamente o texto). Oliveira, Rohmer, Biette, Green, Straub, Coutinho: todos eles são fascinados pela potência naturante (diferente de estruturante) da palavra, e por conseguinte a tornam indissociável do corpo/voz que a profere, que a faz vibrar no ar.

Por aí já se vê que Moscou é um filme mais de dramaturgia que de conceito, é mais um organismo que uma máquina. Se ele passa a impressão de estar mobilizando alguma grande operação conceitual, é porque hoje, começo do século XXI, faz-se às vezes necessário empreender toda uma série de idas e vindas, construções e desconstruções, junções e disjunções, somente para encontrar, ao cabo do processo, aquilo que um tempo atrás era o princípio de tudo: o ator, a palavra. Começo a me repetir.

Um último comentário, à guisa de observação e não de conclusão: Coutinho curte uma breguice. E algumas de suas cenas mais marcantes em filmes recentes se destacam por esse aspecto – aquele senhor que canta “My Way” em Edifício Master, a sobreposição de vozes cantando “Se essa rua, se essa rua fosse minha” em Jogo de Cena. Nem sempre a cena é boa (o “My Way” de Edifício Master é antológico, mas a cantoria final de Jogo de Cena é só o lado piegas do brega, não tem o lado emocionante). Em Moscou ele tornou a coisa mais estranha: um homem e uma mulher cantam “Como vai você”, do Roberto Carlos, imersos na escuridão, acendendo fósforos e isqueiros intermitentemente. As pequeninas chamas fugidias se procuram no escuro. O teatro das matérias encontra o teatro abstrato das emoções. Uma belíssima cena para coroar um grandioso filme de Coutinho.

Luiz Carlos Oliveira Jr.