Inimigos
Públicos
traz uma
decupagem violenta,
talvez a mais violenta de Michael Mann. Movimentos drásticos
e
angulações agressivas surpreenderão
quem só
o conhece pelo equilíbrio neoclássico de Fogo
Contra Fogo e
O Último
dos Moicanos.
A composição
das figuras no quadro, agora, é tensa e turbilhonante. A luz e os sons são jogados com
força
na tela. E, no entanto, o material não se dispersa,
não
se estilhaça pelos ares, porque cada fragmento se
vê
atraído pelo mesmo centro de gravidade: a cena.
Essa é
a constante cósmica do cinema de Michael Mann. As
variáveis
são muitas, e se multiplicam de um filme para outro, mas
todo
e qualquer elemento novo se dobra a esse princípio de
cenicidade como a planta que se encurva na
direção do
sol.
A
cena, portanto, está
em primeiro lugar, e não o mito – o que confere
à
ação um caráter mais presencial do que
simbólico, permitindo um contato direto com o objeto
principal
da trama, o gangster John Dillinger (Johnny Depp). Nos
épicos
biográficos desse tipo, a figura é reconhecida
por seus
atos e hábitos. O personagem é visto sobre um
fundo de
mitologia, uma cenografia de domínio público. Um
retrato de Napoleão Bonaparte em cenário e
gestual
neutros pode levar o espectador a não
reconhecê-lo. Já
se ele estiver com a mão no abdômen ou o contexto
cênico
for Waterloo, qualquer espectador minimamente esclarecido
saberá
de quem se trata. Referências desse gênero
são
importantes em Inimigos Públicos.
Mas não são o que mais interessa a Michael Mann.
Por
exemplo: o que é a Chicago dos anos 1930 nesse filme?
É
um lugar
onde as pessoas frequentam clubes noturnos
e moram em
pequenos apartamentos ao lado da linha do trem. Mann não nos
mostra como era “a Chicago dos tempos de
Dillinger”; ele
simplesmente partilha os elementos irredutíveis da
experiência, como se fosse o primeiro a atravessar aquela
história com uma câmera. Expandindo os recursos
expressivos de seu meio, ele chega às
representações mais imediatas que este permite.
Em
geral, esse mergulho radical de um artista para dentro da qualidade
plástica de seus materiais é acompanhado de uma
certa
indiferença em relação ao tema (quando
não
uma ausência de tema), uma certa indolência
narrativa,
para a qual tanto faz atingir uma meta ou não, já
que o
grande objetivo da obra reside alhures. Mas o aspecto mais
admirável
de Mann é justamente o fato de que ele, ao desbravar um meio
e
cavar fundo em suas possibilidades, nada despreza do tema.
Embora
não
desfrute, conforme já dito, uma prioridade
genética e
sistemática no processo de composição
do filme,
a bruma mitológica da história de Dillinger
está
devidamente presente. A cena em que ele passeia desafiadoramente por
um escritório da polícia e vê fotos
suas num
mural é parcialmente análoga àquela em
que Ali
vê um retrato seu pintado num muro, no outro filme
biográfico
dirigido por Mann há oito anos: o homem se olha num
“espelho”
que reflete sua imagem já transformada em mito. A
solidão
de Dillinger aí se confirma, nessa imagem dele para ele
mesmo.
Ele está absolutamente sozinho. A
identificação
entre policial e bandido, pedra angular em Fogo Contra Fogo,
está interditada em Inimigos Públicos.
Melvin
Purvis, o personagem de Christian Bale, é frio e
operacional,
e não nutre qualquer simpatia por Dillinger. No face-a-face
dos dois, há uma grade entre eles, Depp está
dentro da
cela da prisão e Bale, naturalmente, fora. Desfeita essa
conexão, resta a Dillinger se identificar com a imagem de
Clark Gable enquanto assiste a Manhattan Melodrama
(W.S. Van
Dyke, 1934), num campo-contracampo de tirar lágrimas.
Na
cena da emboscada na
porta do cinema, Mann efetua uma dupla negação.
De um
lado, a ação policial é desprovida de
heroísmo
e, no fundo, configura-se como uma operação assaz
covarde. Do outro, a morte de Dillinger não tem
dimensão
sacrificial. Ao negar o heroísmo de uma parte e o
sacrifício
da outra, ele justifica a ambiência entrevada em que imergiu
seu filme. Mesmo no momento em que Dillinger é ovacionado
pela
multidão, ele está dentro do carro, e tudo que
consegue
é dar um adeusinho discreto para as pessoas (em sua maioria,
mulheres) que assistem à sua passagem; não
é uma
saudação a céu aberto, triunfante,
como a do
ladrão interpretado por Peter Falk em The Brink's
Job (1978), de William Friedkin. A perspectiva de Mann
é
bem mais soturna. A cena epilogal, quando o agente Winstead (Stephen
Lang) transmite a Billie Frechette (Marion Cotillard) as
últimas
palavras de Dillinger, lembra um pouco o final de Céu
e
Inferno
(1963), de Akira
Kurosawa, principalmente por conta daquela porta que se
fecha
alguns segundos antes do corte para os créditos, e que nos
deixa sem reação. Assim como Kurosawa (e como
Eastwood
em seus dois últimos filmes), Mann não filmou nem
o céu
nem o inferno, embora tenha estado um pouco mais perto deste que
daquele. Ele filmou esse espaço que fica entre os dois, mais
complicado por natureza: o espaço dos homens.
Winstead,
ainda
que indiretamente, realiza aquele elo entre o policial e o bandido,
que Melvin Purvis não podia realizar. Não
à toa
foi Winstead quem adivinhou em qual cinema Dillinger estaria na noite
de sua execução (“Dillinger
não vai
assistir a nenhum filme com Shirley Temple; ele estará no
Biograph”). Ele guarda as palavras finais de Dillinger para
Billie, fingindo para Purvis que não as tinha entendido; foi
o
máximo de cumplicidade que o filme permitiu existir entre os
lados opostos da batalha, mas foi o suficiente para dar ao personagem
de Stephen Lang uma grande importância.
Mann
enfatiza a
diferença entre Dillinger, que arrisca a liberdade e a vida
enquanto pratica seus roubos – e que não quer o dinheiro das
pessoas, somente o dos cofres dos bancos –, e o roubo de lucro
máximo
e risco mínimo praticado no mercado de apostas por um bando
de
escroques para os quais Dillinger, ao atrair a
atenção
da polícia e da opinião pública
estimulando o
governo a perseguir crimes interestaduais, é um empecilho.
Há
a caracterização de uma baixeza nos roubos
“invisíveis” desse bando que, se assim quisermos,
constitui os
dois tostões de Mann sobre a imoralidade especulativa do
novíssimo capitalismo.
Os
filmes de
polícia-e-ladrão de Mann costumam contrastar
cenas de
forte impacto físico com outras de atmosfera um tanto quanto
onírica, como aquela do carro de Neil (De Niro) deslizando
pelas highways de Los Angeles sob um céu
noturno que
parece feito de mercúrio (Heat),
ou a da ida a Cuba em Miami Vice,
ilha fora do tempo real e da geopolítica, lugar ideal para
dar
vasão a um amor condenado às entrelinhas. Os
heróis
de Mann sonham com uma paz perdida. Dillinger fala de uma fuga (para
Havana? Não, mais longe dessa vez: Rio), do mesmo modo que o
taxista de Colateral
guardava a foto de uma ilha paradisíaca que era seu
refúgio
imaginário (mas há sempre um chamado à
ação
que adia esses sonhos). Inimigos
Públicos vê
essa dimensão escapista minimizada. O filme tem um gosto de
sangue misturado com terra que impede o vislumbre de uma
sublimação
qualquer. O movimento dramático preponderante é
descendente.
Corpos
caem.
A
cena do assassinato
de Dillinger pela polícia é preciosa nos
detalhes.
A
narração toma parte
concreta naquilo que narra; a sequência se dilata ao
máximo,
acompanha a agonia, como se também a mise
en scène,
e não apenas o personagem, estivesse entre a vida e a morte.
É um compromisso moral com a ação em cena
que
Inimigos Públicos assume e demonstra.
Luiz Carlos Oliveira Jr.
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