INIMIGOS PÚBLICOS
Michael Mann, Public Enemies, EUA, 2009

Inimigos Públicos traz uma decupagem violenta, talvez a mais violenta de Michael Mann. Movimentos drásticos e angulações agressivas surpreenderão quem só o conhece pelo equilíbrio neoclássico de Fogo Contra Fogo e O Último dos Moicanos. A composição das figuras no quadro, agora, é tensa e turbilhonante. A luz e os sons são jogados com força na tela. E, no entanto, o material não se dispersa, não se estilhaça pelos ares, porque cada fragmento se vê atraído pelo mesmo centro de gravidade: a cena. Essa é a constante cósmica do cinema de Michael Mann. As variáveis são muitas, e se multiplicam de um filme para outro, mas todo e qualquer elemento novo se dobra a esse princípio de cenicidade como a planta que se encurva na direção do sol.

A cena, portanto, está em primeiro lugar, e não o mito – o que confere à ação um caráter mais presencial do que simbólico, permitindo um contato direto com o objeto principal da trama, o gangster John Dillinger (Johnny Depp). Nos épicos biográficos desse tipo, a figura é reconhecida por seus atos e hábitos. O personagem é visto sobre um fundo de mitologia, uma cenografia de domínio público. Um retrato de Napoleão Bonaparte em cenário e gestual neutros pode levar o espectador a não reconhecê-lo. Já se ele estiver com a mão no abdômen ou o contexto cênico for Waterloo, qualquer espectador minimamente esclarecido saberá de quem se trata. Referências desse gênero são importantes em Inimigos Públicos. Mas não são o que mais interessa a Michael Mann. Por exemplo: o que é a Chicago dos anos 1930 nesse filme? É um lugar onde as pessoas frequentam clubes noturnos e moram em pequenos apartamentos ao lado da linha do trem. Mann não nos mostra como era “a Chicago dos tempos de Dillinger”; ele simplesmente partilha os elementos irredutíveis da experiência, como se fosse o primeiro a atravessar aquela história com uma câmera. Expandindo os recursos expressivos de seu meio, ele chega às representações mais imediatas que este permite. Em geral, esse mergulho radical de um artista para dentro da qualidade plástica de seus materiais é acompanhado de uma certa indiferença em relação ao tema (quando não uma ausência de tema), uma certa indolência narrativa, para a qual tanto faz atingir uma meta ou não, já que o grande objetivo da obra reside alhures. Mas o aspecto mais admirável de Mann é justamente o fato de que ele, ao desbravar um meio e cavar fundo em suas possibilidades, nada despreza do tema.

Embora não desfrute, conforme já dito, uma prioridade genética e sistemática no processo de composição do filme, a bruma mitológica da história de Dillinger está devidamente presente. A cena em que ele passeia desafiadoramente por um escritório da polícia e vê fotos suas num mural é parcialmente análoga àquela em que Ali vê um retrato seu pintado num muro, no outro filme biográfico dirigido por Mann há oito anos: o homem se olha num “espelho” que reflete sua imagem já transformada em mito. A solidão de Dillinger aí se confirma, nessa imagem dele para ele mesmo. Ele está absolutamente sozinho. A identificação entre policial e bandido, pedra angular em Fogo Contra Fogo, está interditada em Inimigos Públicos. Melvin Purvis, o personagem de Christian Bale, é frio e operacional, e não nutre qualquer simpatia por Dillinger. No face-a-face dos dois, há uma grade entre eles, Depp está dentro da cela da prisão e Bale, naturalmente, fora. Desfeita essa conexão, resta a Dillinger se identificar com a imagem de Clark Gable enquanto assiste a Manhattan Melodrama (W.S. Van Dyke, 1934), num campo-contracampo de tirar lágrimas.

Na cena da emboscada na porta do cinema, Mann efetua uma dupla negação. De um lado, a ação policial é desprovida de heroísmo e, no fundo, configura-se como uma operação assaz covarde. Do outro, a morte de Dillinger não tem dimensão sacrificial. Ao negar o heroísmo de uma parte e o sacrifício da outra, ele justifica a ambiência entrevada em que imergiu seu filme. Mesmo no momento em que Dillinger é ovacionado pela multidão, ele está dentro do carro, e tudo que consegue é dar um adeusinho discreto para as pessoas (em sua maioria, mulheres) que assistem à sua passagem; não é uma saudação a céu aberto, triunfante, como a do ladrão interpretado por Peter Falk em The Brink's Job (1978), de William Friedkin. A perspectiva de Mann é bem mais soturna. A cena epilogal, quando o agente Winstead (Stephen Lang) transmite a Billie Frechette (Marion Cotillard) as últimas palavras de Dillinger, lembra um pouco o final de Céu e Inferno (1963), de Akira Kurosawa, principalmente por conta daquela porta que se fecha alguns segundos antes do corte para os créditos, e que nos deixa sem reação. Assim como Kurosawa (e como Eastwood em seus dois últimos filmes), Mann não filmou nem o céu nem o inferno, embora tenha estado um pouco mais perto deste que daquele. Ele filmou esse espaço que fica entre os dois, mais complicado por natureza: o espaço dos homens.

Winstead, ainda que indiretamente, realiza aquele elo entre o policial e o bandido, que Melvin Purvis não podia realizar. Não à toa foi Winstead quem adivinhou em qual cinema Dillinger estaria na noite de sua execução (“Dillinger não vai assistir a nenhum filme com Shirley Temple; ele estará no Biograph”). Ele guarda as palavras finais de Dillinger para Billie, fingindo para Purvis que não as tinha entendido; foi o máximo de cumplicidade que o filme permitiu existir entre os lados opostos da batalha, mas foi o suficiente para dar ao personagem de Stephen Lang uma grande importância.

Mann enfatiza a diferença entre Dillinger, que arrisca a liberdade e a vida enquanto pratica seus roubos – e que não quer o dinheiro das pessoas, somente o dos cofres dos bancos –, e o roubo de lucro máximo e risco mínimo praticado no mercado de apostas por um bando de escroques para os quais Dillinger, ao atrair a atenção da polícia e da opinião pública estimulando o governo a perseguir crimes interestaduais, é um empecilho. Há a caracterização de uma baixeza nos roubos “invisíveis” desse bando que, se assim quisermos, constitui os dois tostões de Mann sobre a imoralidade especulativa do novíssimo capitalismo.

Os filmes de polícia-e-ladrão de Mann costumam contrastar cenas de forte impacto físico com outras de atmosfera um tanto quanto onírica, como aquela do carro de Neil (De Niro) deslizando pelas highways de Los Angeles sob um céu noturno que parece feito de mercúrio (Heat), ou a da ida a Cuba em Miami Vice, ilha fora do tempo real e da geopolítica, lugar ideal para dar vasão a um amor condenado às entrelinhas. Os heróis de Mann sonham com uma paz perdida. Dillinger fala de uma fuga (para Havana? Não, mais longe dessa vez: Rio), do mesmo modo que o taxista de Colateral guardava a foto de uma ilha paradisíaca que era seu refúgio imaginário (mas há sempre um chamado à ação que adia esses sonhos). Inimigos Públicos vê essa dimensão escapista minimizada. O filme tem um gosto de sangue misturado com terra que impede o vislumbre de uma sublimação qualquer. O movimento dramático preponderante é descendente. Corpos caem.

A cena do assassinato de Dillinger pela polícia é preciosa nos detalhes. A narração toma parte concreta naquilo que narra; a sequência se dilata ao máximo, acompanha a agonia, como se também a mise en scène, e não apenas o personagem, estivesse entre a vida e a morte. É um compromisso moral com a ação em cena que Inimigos Públicos assume e demonstra.

Luiz Carlos Oliveira Jr.