É
preciso esclarecer uma coisa: o olhar que vê sem julgar, nos
casos em que realmente devemos admirá-lo, é o
resultado
de uma invejável faculdade de
meditação e
compreensão, e pressupõe que a obra se construa
mediante uma coincidência entre o traço do artista
e o
movimento do mundo. Trata-se de um olhar
raríssimo,
reservado a poucos (Naruse, Rossellini, Preminger, Hou e mais um ou
outro). Fora desse círculo restrito, o que observamos, na
maioria dos casos, é que o olhar que nunca julga não
passa de um olhar covarde.
Julgar é mesmo muito difícil, requer sabedoria, e
nem
todos estão preparados/capacitados para tal. Soderbergh, por
exemplo, não está – mas se arrisca, e
isso tem
um lado interessante.
A
protagonista deste seu novo filme é Chelsea (Sasha Grey), uma garota de
programa de luxo que vive e trabalha em Manhattan. O começo do
filme
acompanha sua rotina em formato de diário. Mas desde cedo
fica
evidente que o ponto de vista sobre a personagem é
crítico,
ou no mínimo ambivalente, do contrário o filme
não
puxaria o tapete dela conforme faz lá pela metade e
não
contraporia – num artifício discursivo bastante
infeliz, diga-se de passagem – às suas roupas de
grife e
a seus programas com clientes ricos a figura recorrente de
músicos
de rua ganhando a vida nas calçadas de Nova Iorque (a
música
deles, inclusive, é incorporada à trilha sonora
do
filme). Soderbergh, apesar de tudo, respeita e admira a opacidade de
Chelsea. A cena mais importante em relação a isso
é
quando um jornalista insiste em querer extrair dela um segredo
qualquer sobre sua personalidade, mas ela resiste, não
revela
– a prostituição da subjetividade (o
tipo de
prostituição mais comum hoje em dia, embora
não
seja condenado por nenhum código social) é o
limite
moral que ela não se permite ultrapassar, e aí
reside o
aspecto mais forte da personagem.
A
câmera digital
utilizada em Confissões de uma Garota de Programa
acentua a frieza da mise en scène,
bem como o erotismo glacial das cenas de Chelsea com seus
clientes – que pateticamente comentam as
eleições
norte-americanas e a crise econômica enquanto tiram a roupa
–,
produzindo imagens de cores neutras, imagens sem carne que
são
só a embalagem antisséptica das coisas e dos
corpos. O
filme diagnostica (no sentido clínico mesmo) uma
involução
da vida sexual do homem civilizado, como o plano final atesta de
maneira até caricata.
Em
vários momentos, Soderbergh (que dirige a fotografia sob seu
já manjado pseudônimo de Peter Andrews)
interpõe
entre a câmera e a ação alguns
obstáculos
visuais como áreas de desfoque, elementos do
cenário,
superfícies que obstruem a passagem da luz etc. A
visibilidade
turva dessas cenas cria um ruído na aparente limpidez dos
restaurantes e hotéis frequentados pela alta roda
nova-iorquina, como se os materiais transparentes e
translúcidos
utilizados na construção daqueles
espaços
estivessem a serviço, no fundo, de um jogo de disfarce,
negociação permanente,
disjunção entre o
dito e o pensado.
Decepciona
que o moralismo, ponto conflitual em sexo,
mentiras e
videotape,
apareça aqui
como ponto pacífico – a sociedade é
conservadora
e hipócrita, that's the way it is,
não há mais o que afrontar a respeito do tema.
Algo a
se notar é que Soderbergh encara a crise atual com um misto
de
indiferença e escárnio; é bem
provável
que, no fim das contas, ele esteja fazendo troça de tudo que
os personagens discutem, desde as eleições
presidenciais até o relacionamento de Chelsea com o
namorado.
A montagem picotada em vai-e-vem é uma forma
também de
dizer que as cenas que compõem o filme são mais
fragmentos de um discurso do que situações vitais
realmente relevantes. É tudo uma orgia de signos, tudo
videotape.
Luiz Carlos Oliveira Jr.
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