CONFISSÕES DE UMA GAROTA DE PROGRAMA
Steven Soderbergh, The Girlfriend Experience, EUA, 2009

É preciso esclarecer uma coisa: o olhar que vê sem julgar, nos casos em que realmente devemos admirá-lo, é o resultado de uma invejável faculdade de meditação e compreensão, e pressupõe que a obra se construa mediante uma coincidência entre o traço do artista e o movimento do mundo. Trata-se de um olhar raríssimo, reservado a poucos (Naruse, Rossellini, Preminger, Hou e mais um ou outro). Fora desse círculo restrito, o que observamos, na maioria dos casos, é que o olhar que nunca julga não passa de um olhar covarde. Julgar é mesmo muito difícil, requer sabedoria, e nem todos estão preparados/capacitados para tal. Soderbergh, por exemplo, não está – mas se arrisca, e isso tem um lado interessante.

A protagonista deste seu novo filme é Chelsea (Sasha Grey), uma garota de programa de luxo que vive e trabalha em Manhattan. O começo do filme acompanha sua rotina em formato de diário. Mas desde cedo fica evidente que o ponto de vista sobre a personagem é crítico, ou no mínimo ambivalente, do contrário o filme não puxaria o tapete dela conforme faz lá pela metade e não contraporia – num artifício discursivo bastante infeliz, diga-se de passagem – às suas roupas de grife e a seus programas com clientes ricos a figura recorrente de músicos de rua ganhando a vida nas calçadas de Nova Iorque (a música deles, inclusive, é incorporada à trilha sonora do filme). Soderbergh, apesar de tudo, respeita e admira a opacidade de Chelsea. A cena mais importante em relação a isso é quando um jornalista insiste em querer extrair dela um segredo qualquer sobre sua personalidade, mas ela resiste, não revela – a prostituição da subjetividade (o tipo de prostituição mais comum hoje em dia, embora não seja condenado por nenhum código social) é o limite moral que ela não se permite ultrapassar, e aí reside o aspecto mais forte da personagem. 

A câmera digital utilizada em Confissões de uma Garota de Programa acentua a frieza da mise en scène, bem como o erotismo glacial das cenas de Chelsea com seus clientes – que pateticamente comentam as eleições norte-americanas e a crise econômica enquanto tiram a roupa –, produzindo imagens de cores neutras, imagens sem carne que são só a embalagem antisséptica das coisas e dos corpos. O filme diagnostica (no sentido clínico mesmo) uma involução da vida sexual do homem civilizado, como o plano final atesta de maneira até caricata.

Em vários momentos, Soderbergh (que dirige a fotografia sob seu já manjado pseudônimo de Peter Andrews) interpõe entre a câmera e a ação alguns obstáculos visuais como áreas de desfoque, elementos do cenário, superfícies que obstruem a passagem da luz etc. A visibilidade turva dessas cenas cria um ruído na aparente limpidez dos restaurantes e hotéis frequentados pela alta roda nova-iorquina, como se os materiais transparentes e translúcidos utilizados na construção daqueles espaços estivessem a serviço, no fundo, de um jogo de disfarce, negociação permanente, disjunção entre o dito e o pensado.

Decepciona que o moralismo, ponto conflitual em sexo, mentiras e videotape, apareça aqui como ponto pacífico – a sociedade é conservadora e hipócrita, that's the way it is, não há mais o que afrontar a respeito do tema. Algo a se notar é que Soderbergh encara a crise atual com um misto de indiferença e escárnio; é bem provável que, no fim das contas, ele esteja fazendo troça de tudo que os personagens discutem, desde as eleições presidenciais até o relacionamento de Chelsea com o namorado. A montagem picotada em vai-e-vem é uma forma também de dizer que as cenas que compõem o filme são mais fragmentos de um discurso do que situações vitais realmente relevantes. É tudo uma orgia de signos, tudo videotape.

Luiz Carlos Oliveira Jr.