GARAPA
José Padilha, Brasil, 2009

A câmera observa: alguém que fala, alguém que chora, os meninos nus deitados, rolando no chão, uma situação. A montagem, à medida que alterna paralelamente entre duas ou três famílias do sertão cearense e da periferia de Fortaleza, avança suavemente de um tema a outro, montando nas bordas da imagem o conceito e a sociologia do filme – no interior ou na periferia de uma grande cidade as situações se repetem: os filhos em excesso, os maridos alcoólatras e sem emprego, a desestrutura, a insalubridade geral, a má assistência, a fome. A lógica de Garapa é tão simples quanto rigorosa: observar e organizar – os seres, os dramas e a fome.

Se o tema da fome – um dos mais consensuais e presentes dentro do imaginário de políticas sociais nacional – já foi excessivamente explorado pelo audiovisual brasileiro (cinema, TV, e mesmo mídias como a fotografia), o olhar corpóreo que Padilha imprime trabalhará justamente no sentido de espantar as imagens-clichê que por décadas se multiplicaram junto com o assunto. Ele quer para si qualquer coisa que faça a diferença, e nesse sentido, a opção pela película (num momento em que a produção de documentários é dominada pelo digital) e pela fotografia em preto e branco estourada são menos uma escolha estética que uma estratégia de roupagem; é menos referência formal deslocada ao cinema direto americano – ou a um filme como Vidas secas –, algo que vá se somar aos corpos, que um verniz, uma forma de colocar as imagens em um patamar de filme-ensaio. No ambiente vedado da película, Padilha tenta reencenar o drama da fome; sai em busca de uma espécie de imagem-síntese – uma última-imagem possível? –, lacônica, limpa de boa parte das referências meta-narrativas, que, ao mesmo tempo, seja capaz de recuperar um desconforto anterior, primeiro, do espectador em relação ao tema. Dito de outra maneira, naquilo que toca à sua forma, Garapa pretende nada mais que uma sobrevida chocante de um tema que parece excessivamente saturado.

O maior mal do filme de Padilha talvez seja aparecer justamente num momento em que documentários como os de Coutinho ou como Serras da Desordem propagam a fluidez e a liberdade na busca pelo gesto e pelas imagens, filmes que são em si mesmos sua própria procura – pelo homem, pelo mundo ou por aquilo que tematizam –, e jamais um ensaio programado de imagens sobre uma determinada questão. Frente a isso, Garapa acaba sempre soando excessivamente preso, fechado, como que atado a um modelo de imagem ideal da fome – chocante naquilo que tem de humano e coerente do ponto de vista sociológico. A opção por um mundo eloqüente de imagens que funcionassem “por elas mesmas”, sem um diálogo meta-narrativo, de construção, cria um tipo de encenação aprisionada, retomando um dos clichês mais velhos da produção documental – o retrato. Falta, certamente, espaço para a conversação; os seres estão aí, mas são “só” corpos retratados em seu meio.

“Como filmar a fome?” talvez seja uma pergunta simples demais para um tema tão terrível.

Calac Nogueira