A
câmera observa:
alguém que fala, alguém que chora, os meninos nus
deitados, rolando no chão, uma
situação. A
montagem, à medida que alterna paralelamente entre duas ou
três famílias do sertão cearense e da
periferia
de Fortaleza, avança suavemente de um tema a outro, montando
nas bordas da imagem o conceito e a sociologia do filme – no
interior ou na periferia de uma grande cidade as
situações
se repetem: os filhos em excesso, os maridos alcoólatras e
sem
emprego, a desestrutura, a insalubridade geral, a má
assistência, a fome. A lógica de Garapa
é
tão simples quanto rigorosa: observar e organizar
– os
seres, os dramas e a fome.
Se o
tema da fome –
um dos mais consensuais e presentes dentro do imaginário de
políticas sociais nacional – já foi
excessivamente explorado pelo audiovisual brasileiro (cinema, TV, e
mesmo mídias como a fotografia), o olhar corpóreo
que
Padilha imprime trabalhará justamente no sentido de espantar
as imagens-clichê que por décadas se multiplicaram
junto
com o assunto. Ele quer para si qualquer coisa que faça a
diferença, e nesse sentido, a opção
pela
película (num momento em que a
produção de
documentários é dominada pelo digital) e pela
fotografia em preto e branco estourada são menos uma escolha
estética que uma estratégia de roupagem;
é menos
referência formal deslocada ao cinema direto americano
–
ou a um filme como Vidas secas –, algo
que vá se
somar aos corpos, que um verniz, uma forma de colocar as imagens em
um patamar de filme-ensaio. No ambiente vedado da película,
Padilha tenta reencenar o drama da fome; sai em busca de uma
espécie
de imagem-síntese – uma última-imagem
possível?
–, lacônica, limpa de boa parte das
referências
meta-narrativas, que, ao mesmo tempo, seja capaz de recuperar um
desconforto anterior, primeiro, do espectador em
relação
ao tema. Dito de outra maneira, naquilo que toca à sua
forma,
Garapa pretende nada mais que uma sobrevida chocante
de um
tema que parece excessivamente saturado.
O
maior mal do filme de
Padilha talvez seja aparecer justamente num momento em que
documentários como os de Coutinho ou como Serras
da
Desordem propagam a fluidez e a liberdade na busca pelo gesto
e
pelas imagens, filmes que são em si mesmos sua
própria
procura – pelo homem, pelo mundo ou por aquilo que tematizam
–,
e jamais um ensaio programado de imagens sobre uma determinada
questão. Frente a isso, Garapa acaba
sempre soando
excessivamente preso, fechado, como que atado a um modelo de imagem
ideal da fome – chocante naquilo que tem de humano e coerente
do ponto de vista sociológico. A opção
por um
mundo eloqüente de imagens que funcionassem “por
elas
mesmas”, sem um diálogo meta-narrativo, de
construção,
cria um tipo de encenação aprisionada, retomando
um dos
clichês mais velhos da produção
documental –
o retrato. Falta, certamente, espaço para a
conversação;
os seres estão aí, mas são
“só”
corpos retratados em seu meio.
“Como
filmar a
fome?” talvez seja uma pergunta simples demais para um tema
tão
terrível.
Calac Nogueira
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