Cristine Collins vive uma
rotina
programada. Vai de casa para o trabalho, concede alguns
empréstimos
para os clientes que merecem, sai no horário de
almoço
para encontrar-se com o namorado (que trabalha a apenas alguns
quarteirões de distância), depois volta em seguida
ao
banco para cumprir as horas de trabalho que ainda faltam. Uma
ausência de singularidade rege os espaços que a
cercam e
caracteriza as pessoas à sua volta. Sobretudo nesse primeiro
segmento de filme, os atores terão rostos neutros,
inexpressivos (ou, ao contrário, de fácil
leitura), e a
composição visual dos ambientes, tanto no
trabalho
fotográfico quanto cenográfico, parece ter ecos
não
muito distantes de imagens publicitárias. Exceto pelo
passado
de adolescente gordinha do interior que ela luta para esconder
praticando pronúncia e fazendo dieta, não
há
bizarrices na vida de Cristine. Ao contrário, tudo parece
estar excessivamente correto, meticulosamente no lugar e, com a
perspectiva de uma promoção no trabalho, as
coisas
parecem caminhar em um ritmo bom e na direção
certa.
Até que surge a Sra. Ganush em sua mesa para lhe pedir uma
terceira extensão de seu crédito, sob o risco de
perder
a casa por inadimplência.
É aqui que Sam
Raimi cria, com
uma decupagem absolutamente funcional, um dos melhores momentos de
seu novo filme. Representando a decisão de Cristine,
seguem-se
três planos-ponto-de-vista: primeiro a pobre velhinha, depois
Stu (seu rival no trabalho, que ambiciona a mesma
promoção
que ela), em seguida a cadeira vazia do cargo que deseja ocupar,
nessa ordem. É uma cena rara na maior parte do cinema americano de
gênero
feito hoje, que parece ter excluído de sua cartilha a
possibilidade de lidar com tamanha frontalidade com as
motivações
dos personagens, que aqui são psicologicamente muito mais
simples que nos últimos filmes de Sam Raimi.
Mais do que uma simples
questão
de gêneros, Arraste-me
para o inferno é
um
filme que de uma maneira geral transita muito bem entre
pólos
opostos. Chama atenção a naturalidade com que Sam
Raimi
articula universos tão distintos e incompatíveis
quanto
o ordinário/material e o fantástico/sobrenatural
sem
nunca esbarrar em velhos clichês. Exemplo maior disso
é
a própria personagem da Sra. Ganush, que se torna uma
presença
demoníaca na vida de Cristine depois que tem seu pedido de
empréstimo negado. Na cena antológica em que as
duas
lutam no estacionamento, vemos que a Sra. Ganush é capaz de
se
metamorfosear em um lencinho e de se materializar aonde bem entende.
No entanto, seu corpo é frágil e se fere com os
golpes
de Cristine, e veremos mais tarde que também
é suscetível
à morte como todos os outros. Ainda no início da
cena,
a Sra. Ganush aparece magicamente dentro do carro de Cristine, mas a
jovem consegue expulsá-la para fora após muita
luta.
Nesse momento, a fisicalidade do carro de repente se torna uma
questão, e a Sra Ganush precisa recorrer a um enorme tijolo
para quebrar o vidro do carona. Curioso como as fronteiras entre os
poderes sobrenaturais e as limitações da
matéria
se submetem muito naturalmente aos jogos estéticos/visuais
de
Sam Raimi nessa cena muitíssimo bem filmada.
É nesse momento
fatídico
que a Sra. Ganush evoca uma terrível
maldição em
Cristine. Ao fim de três dias, se não conseguir se
livrar da magia negra, a jovem irá diretamente para o
inferno.
Há um desequilíbrio visível
não apenas na
rotina da personagem, mas também na própria
estrutura
do filme. Os quadros harmônicos e centralizados se tornam
oblíquos, a câmera fixa dá lugar a
movimentos de
câmera complexos, a montagem se liberta do ritmo regular do
início do filme. A partir desse dia, a vida de Barbie
de
Cristine se
transforma num show de horrores, e ela passa a contar com a ajuda de
figuras bizarras como o guia espiritual junguiano
Rham
Jas para tentar se
livrar de Lâmia,
o espírito maligno que a atormenta. O filme assume um tom
mais
debochado (não confundir com descrente), o roteiro se
treslouca, cada vez mais simples e elementar, e Sam Raimi extrapola
de vez sua vocação para a comédia.
Rham Jas tem
a cada nova visita de Cristine uma idéia mais mirabolante
para
combater a maldição, sempre com base nas
consultas que
faz aos seus livros de magia negra. Quanto mais o filme prossegue no
absurdo, mais crível é Lâmia
e a luta desses personagens adoravelmente estúpidos para
vencê-la.
Arraste-me
para o inferno possui uma
estrutura bem mais simples que os últimos filmes de Sam
Raimi.
Ao contrário do que vinha acontecendo com Homem-Aranha
(especialmente
no terceiro
episódio), a narrativa aqui se movimenta sob a
ação
de uma só força – a protagonista que
tenta
resolver esse único e gigantesco problema que acometeu sua
vida. Um argumento excelente porque vagabundo. O
estranhíssimo
prólogo do filme já queria anunciar: em Arraste-me
para o inferno,
Sam Raimi
retorna de certa maneira ao gore/trash
pelo
qual ele próprio
começou a fazer cinema lá no início
dos anos 80,
e parece divertir-se imensamente com isso. Os bonecos e o stop-motion
de duas décadas atrás dão lugar a
seres e
cenários criados digitalmente, mas ainda estão
lá
os mortos que retornam malignos para infernizar os vivos, ainda
estão
lá os corpos demoníacos em
levitação, as
gosmas sendo vomitadas. É incrível como, entre
seu
primeiro e seu último filme, Sam Raimi obteve resultados
tão
distintos mesmo trabalhando com elementos de um mesmo
imaginário,
de uma mesma mitologia e de um mesmo gênero. A
diferença
passa menos pelo rebuscamento de uma produção
muito
mais cara que pela experiência de um diretor que deixou de
ser
o jovem cineasta deslumbrado de início de carreira para se
tornar um dos poucos dentro do cinema americano de grande
orçamento
com um real domínio da mise-en-scène.
Alice Furtado
|