Leonard
(Joaquin
Phoenix) é um rapaz de humor bipolar que vive com os pais
num
apartamento de classe média no Brooklyn. Num jantar em casa,
ele conhece Sandra (Vinessa Shaw), cuja abastada família
está
prestes a fechar uma parceria comercial com a sua. As duas
famílias,
ambas formadas por judeus imigrantes, fazem votos para o namoro dos
jovens, já que seria bom para os ânimos e para os
negócios. Sandra se mostra interessada. Leonard
também,
ou talvez não (ainda é difícil saber,
ele não
é o tipo de personagem que se deixa radiografar
só com
alguns minutos de filme). Pouco depois, Leonard conhece Michelle
(Gwyneth Paltrow),
vizinha de
prédio que mora alguns andares acima. Ele se sente
imediatamente atraído por ela. Nas semanas que se seguem,
fica
dividido entre o namoro com Sandra e a paixão quase
adolescente por Michelle.
O
que faz Amantes
ser muito mais que um drama romântico como outro qualquer
são
alguns detalhes. Recapitulemos uma cena que ocorre ainda na primeira
metade do filme: Leonard e Michelle vão numa boate,
dançam
muito perto um do outro, ele tentando beijar o pescoço dela.
De repente ela saca o celular da bolsa e se afasta. Leonard vai
atrás
e a encontra chorando do lado de fora da boate. Ela diz que tem um
namorado, um homem casado, que ia encontrá-la mas avisou que
esta noite não poderá, terá de ficar
com a
esposa. Leonard desaba internamente com a notícia de que
há
um namorado na jogada, mas precisa escorar um outro desabamento,
naquele momento mais grave que o seu: o de Michelle. Os
eflúvios
sensuais bruscamente se convertem numa avalanche negativa, e a cena
passa da euforia à desilusão em
questão de
segundos – o filme, em si, também é
bipolar.
Michelle vai pegar sua bolsa na boate, pede que Leonard a aguarde
lá
fora. Ele fica esperando. O tempo passa e ela não volta.
Ele,
apreensivo, descasca um adesivo que está colado num poste:
é
isso, é esse gesto que o filme busca, esse ponto culminante
–
ainda que discreto – do fluxo dramático, esse
momento
pleno em que o evento já traz em si sua própria
narração,
o objeto sua mise
en place,
o gesto sua mise
en scène.
Há muitos outros
momentos assim no filme – alguns até
cômicos, como
aquele de Leonard confundindo um mexedor de drinque com um canudo. As
marcas de escritura somem por trás da presença do
ator
e do gesto (mesmo uma câmera lenta ou um travelling mais
longo,
comuns no cinema de Gray, não possuem aqui
conotação
de virtuosismo). James Gray já dera provas de brilhantismo,
já
demonstrara ser um grande diretor de atores (a começar pela
escolha do elenco, sempre perfeita) e de cenografia, mas não
havia ainda atingido tamanho equilíbrio, o que faz de Amantes
seu melhor filme até agora.
O
diretor se dá
ainda o prazer de flertar – sem tom de pastiche, o que
é
quase um milagre a esta altura do campeonato – com os dois
filmes de Hitchcock mais plagiados e citados da história do
cinema: Janela Indiscreta e
Um Corpo que Cai.
Leonard,
fotógrafo tal como Jeff (James Stewart em Janela
Indiscreta),
observa Michelle
pela janela dos fundos do prédio de tijolinhos onde mora.
Lá
no filme de Hitchcock, dentre as muitas janelas que se ofereciam a
Jeff, uma era do apartamento de uma jovem solteira e liberal e outra
era de um casal recém-casado que começava uma
família
aos moldes tradicionais: é entre esses dois pólos
que o
personagem de Joaquin Phoenix em Amantes parece
estar perdido. Já a relação com Um
Corpo que Cai
se torna explícita
numa cena em que Leonard
persegue Michelle até o metrô como quem persegue
uma
Imagem ou uma Idéia, ou seja, movido pela mesma
obsessão
platoniana do inesquecível detetive Scottie.
Só que Leonard não é
acrofóbico: sua
vertigem é sentimental.
Há uma tendência a se considerar James Gray como formalista (no sentido de alguém que se
preocupa mais com o quadro e com a luz do que com o conteúdo
da cena), mas a verdade é que ele está bastante
focado
nos atores e nas
técnicas de
que eles dispõem para transformar os sentimentos numa
linguagem palpável. Em tempos de
desertificação
da sexualidade no cinema, é preciso salientar que ele filmou
duas belas e expressivas cenas de sexo. Uma delas, a primeira e
única
transa entre Leonard e Michelle, é particularmente forte: a
cena acontece no terraço do prédio onde eles
moram, num
frio de gelar os ossos que os tons cinza-azulados da fotografia nos
fazem sentir como se estivéssemos lá. Gray ousa
um
plano bastante longo, com a câmera praticamente parada nos
rostos, aumentando a intensidade da interpretação
e
permitindo que o paroxismo da cena venha dos atores, e não
de
efeitos de encenação. Phoenix é
tão
verdadeiro que parece não estar atuando ao sussurrar
“You're
so beautiful”, e Paltrow está tranquilamente em
seu
melhor momento desde que resolveu ser atriz. O ato sexual para eles
é
quase um pacto suicida (sensação
reforçada pela
localização à beira do
terraço); é
o coito ao mesmo tempo sôfrego e extasiante de dois amantes
destroçados, dois seres suscetíveis. O
diálogo
que ocorre antes pode se resumir às frases “I'm a
fucked
up” e “Me too”. Um pouco mais tarde, por
telefone, eles
combinam a “fuga” para São Francisco.
Mas
o filme, sabemos,
não termina por aí. Tem aquela cena no
pátio do
edifício (o que é aquilo?). E tem aquele final.
Incrivelmente tocantes, também, são as cenas de
Leonard
com sua mãe (que bom rever Isabella Rossellini numa
atuação
tão bonita, como no momento em que
“se
despede” do filho na escadaria do prédio). Ao
contrário
da maioria dos diretores surgidos nos últimos vinte anos,
que
confundem mise en scène com um mero
engarrafamento de
signos, Gray possui admirável fluência
dramática.
Ele não se esquiva dos confrontos, e faz os personagens
realmente viverem as emoções deles surgidas
– até
o fundo, até o fim. Ou seja, um cineasta.
Luiz Carlos Oliveira Jr.
|