AMANTES
James Gray, Two Lovers, EUA, 2008

Leonard (Joaquin Phoenix) é um rapaz de humor bipolar que vive com os pais num apartamento de classe média no Brooklyn. Num jantar em casa, ele conhece Sandra (Vinessa Shaw), cuja abastada família está prestes a fechar uma parceria comercial com a sua. As duas famílias, ambas formadas por judeus imigrantes, fazem votos para o namoro dos jovens, já que seria bom para os ânimos e para os negócios. Sandra se mostra interessada. Leonard também, ou talvez não (ainda é difícil saber, ele não é o tipo de personagem que se deixa radiografar só com alguns minutos de filme). Pouco depois, Leonard conhece Michelle (Gwyneth Paltrow), vizinha de prédio que mora alguns andares acima. Ele se sente imediatamente atraído por ela. Nas semanas que se seguem, fica dividido entre o namoro com Sandra e a paixão quase adolescente por Michelle.

O que faz Amantes ser muito mais que um drama romântico como outro qualquer são alguns detalhes. Recapitulemos uma cena que ocorre ainda na primeira metade do filme: Leonard e Michelle vão numa boate, dançam muito perto um do outro, ele tentando beijar o pescoço dela. De repente ela saca o celular da bolsa e se afasta. Leonard vai atrás e a encontra chorando do lado de fora da boate. Ela diz que tem um namorado, um homem casado, que ia encontrá-la mas avisou que esta noite não poderá, terá de ficar com a esposa. Leonard desaba internamente com a notícia de que há um namorado na jogada, mas precisa escorar um outro desabamento, naquele momento mais grave que o seu: o de Michelle. Os eflúvios sensuais bruscamente se convertem numa avalanche negativa, e a cena passa da euforia à desilusão em questão de segundos – o filme, em si, também é bipolar. Michelle vai pegar sua bolsa na boate, pede que Leonard a aguarde lá fora. Ele fica esperando. O tempo passa e ela não volta. Ele, apreensivo, descasca um adesivo que está colado num poste: é isso, é esse gesto que o filme busca, esse ponto culminante – ainda que discreto – do fluxo dramático, esse momento pleno em que o evento já traz em si sua própria narração, o objeto sua mise en place, o gesto sua mise en scène. Há muitos outros momentos assim no filme – alguns até cômicos, como aquele de Leonard confundindo um mexedor de drinque com um canudo. As marcas de escritura somem por trás da presença do ator e do gesto (mesmo uma câmera lenta ou um travelling mais longo, comuns no cinema de Gray, não possuem aqui conotação de virtuosismo). James Gray já dera provas de brilhantismo, já demonstrara ser um grande diretor de atores (a começar pela escolha do elenco, sempre perfeita) e de cenografia, mas não havia ainda atingido tamanho equilíbrio, o que faz de Amantes seu melhor filme até agora.

O diretor se dá ainda o prazer de flertar – sem tom de pastiche, o que é quase um milagre a esta altura do campeonato – com os dois filmes de Hitchcock mais plagiados e citados da história do cinema: Janela Indiscreta e Um Corpo que Cai. Leonard, fotógrafo tal como Jeff (James Stewart em Janela Indiscreta), observa Michelle pela janela dos fundos do prédio de tijolinhos onde mora. Lá no filme de Hitchcock, dentre as muitas janelas que se ofereciam a Jeff, uma era do apartamento de uma jovem solteira e liberal e outra era de um casal recém-casado que começava uma família aos moldes tradicionais: é entre esses dois pólos que o personagem de Joaquin Phoenix em Amantes parece estar perdido. Já a relação com Um Corpo que Cai se torna explícita numa cena em que Leonard persegue Michelle até o metrô como quem persegue uma Imagem ou uma Idéia, ou seja, movido pela mesma obsessão platoniana do inesquecível detetive Scottie. Só que Leonard não é acrofóbico: sua vertigem é sentimental.

Há uma tendência a se considerar James Gray como formalista (no sentido de alguém que se preocupa mais com o quadro e com a luz do que com o conteúdo da cena), mas a verdade é que ele está bastante focado nos atores e nas técnicas de que eles dispõem para transformar os sentimentos numa linguagem palpável. Em tempos de desertificação da sexualidade no cinema, é preciso salientar que ele filmou duas belas e expressivas cenas de sexo. Uma delas, a primeira e única transa entre Leonard e Michelle, é particularmente forte: a cena acontece no terraço do prédio onde eles moram, num frio de gelar os ossos que os tons cinza-azulados da fotografia nos fazem sentir como se estivéssemos lá. Gray ousa um plano bastante longo, com a câmera praticamente parada nos rostos, aumentando a intensidade da interpretação e permitindo que o paroxismo da cena venha dos atores, e não de efeitos de encenação. Phoenix é tão verdadeiro que parece não estar atuando ao sussurrar “You're so beautiful”, e Paltrow está tranquilamente em seu melhor momento desde que resolveu ser atriz. O ato sexual para eles é quase um pacto suicida (sensação reforçada pela localização à beira do terraço); é o coito ao mesmo tempo sôfrego e extasiante de dois amantes destroçados, dois seres suscetíveis. O diálogo que ocorre antes pode se resumir às frases “I'm a fucked up” e “Me too”. Um pouco mais tarde, por telefone, eles combinam a “fuga” para São Francisco.

Mas o filme, sabemos, não termina por aí. Tem aquela cena no pátio do edifício (o que é aquilo?). E tem aquele final. Incrivelmente tocantes, também, são as cenas de Leonard com sua mãe (que bom rever Isabella Rossellini numa atuação tão bonita, como no momento em que “se despede” do filho na escadaria do prédio). Ao contrário da maioria dos diretores surgidos nos últimos vinte anos, que confundem mise en scène com um mero engarrafamento de signos, Gray possui admirável fluência dramática. Ele não se esquiva dos confrontos, e faz os personagens realmente viverem as emoções deles surgidas – até o fundo, até o fim. Ou seja, um cineasta.

Luiz Carlos Oliveira Jr.