A busca
por uma “justeza de tom” do drama é o
que parece
definir o cinema de Ida Lupino – que faria parte de um pequeno
conjunto de cineastas que buscaram no arco dramático a
essência de um olhar para o mundo e não apenas uma
estrutura ou forma narrativa. Para Lupino, o pathos não associa-se, pois, ao acontecimento trágico,
à
profundidade da violência por ele compreendida, mas
à
banalidade de gestos que constituem na prática a
vivência
destes acontecimentos, da mesma forma que os momentos que os precedem
ou sucedem. Talvez por isso seus filmes centrem-se em percursos, em
deslocamentos (espaciais ou não), em trajetórias
através das quais a tragédia – e sua
superação – se manifesta de forma diluída, em cada cena, em cada
olhar,
em cada gesto.
É, portanto, no cotidiano da experiência
social que Lupino vai buscar seus cenários, em “aventuras” protagonizadas por
seres comuns, obrigados a atravessar provações para afirmar (ou reafirmar) seu
lugar no mundo, seu espaço na ordem das coisas. Não por acaso, a figura
feminina é central em sua obra: sua apropriação – ou reinterpretação – do
melodrama passa pela reconfiguração de plots paradigmáticos que envolvam
papéis sociais a serem desempenhados. E sua percepção original (no contexto de
produção em que ela se encontrava) é a de que, embora o drama peça uma
estrutura reconhecível na qual se apoiar (seja ela uma estrutura narrativa ou uma
estrutura social), a experiência é feita de detalhes, de particularidades. Toda
a história contada mil vezes, toda peça pré-formatada da engrenagem, possui,
longe das generalizações do relato ficcional, necessariamente um aspecto único.
E é justamente este aspecto único que
Lupino vai buscar como cineasta. O que torna uma história assemelhada a tantas
outras digna de interesse? O que faz um personagem na mesma posição de tantos
outros merecedor de inegável empatia? Em suma: como criar o diferencial para uma
narrativa que flerta com o clichê, que se decalca de um mundo que só sabe
repetir a si mesmo? Nos créditos iniciais de Not Wanted, um letreiro
anuncia que aquela história se repete um milhão de vezes a cada ano. Isto não
impede, no entanto, que tudo que se passa com a personagem pareça absolutamente
singular e que seus sentimentos sejam indubitavelmente genuínos aos nossos
olhos. Isto porque, a cada cena, o foco está nos gestos, nas palavras, na
entonação da fala, no olhar, nas expressões faciais, em tudo aquilo que compõe
uma atmosfera e que nunca poderia ser copiado de maneira idêntica, reproduzido
sem alteração.
Toda esta rede de sensações derivadas do
impalpável constitui, curiosamente, não os efeitos do drama, mas sua
matéria-prima: as suspeitas, distrações, hesitações, receios, apreensões ou
desconfianças dos personagens são os propulsores da ação ao invés de suas
conseqüências. Isto, aliado ao encadeamento rápido e direto de fatos, ao desdobramento
veloz e sem rodeios da narrativa, cria um sentimento de deslocamento singular:
todo o mundo exterior, a realidade palpável, passa a corresponder à
subjetividade dos personagens. A dicotomia entre interior e exterior
desaparece: a mise-en-scéne comprime materialidade e interioridade numa
só evidência. A evidência de que algo está em processo; narrar corresponde,
pois, a acompanhar o movimento de um mundo que não pára para que se organizem
os dados da história (motivo pelo qual ela deve ser a mais simples possível),
que se furta à ordenação. Cabe, portanto, ao narrador ser o porta-voz do
personagem em dificuldade, conduzi-lo através da história, encaminhá-lo em meio
às suas provações, para que ele possa seguir livre.
E talvez o filme de Ida Lupino que
melhor condense toda esta sua delicada “estratégia” cinematográfica seja seu
último, Trouble With Angels (1966). Nele, uma serenidade suprema guia a
narrativa que flerta com o gênero “filme de high-school”, traçando um
percurso de aprendizado e amadurecimento para as personagens sem que nos demos propriamente
conta. O deslocamento do cenário clássico (de uma escola normal para uma escola
de freiras) e a distensão das ações no tempo (o ritmo segue o cotidiano um quê morto
de um colégio interno) nos fazem acompanhar a seqüência de travessuras das
personagens com a atenção voltada para suas individualidades, sem nunca, no
entanto, nos distanciarmos a ponto de querer alinhavar através de uma percepção
crítica o que se passa com elas. A adesão afetiva torna-se cúmplice de uma
apreensão instintiva dos acontecimentos – bem a exemplo do que se passa durante
a adolescência. Qual não é nossa surpresa, pois, quando ao final nos damos
conta de que uma mudança profunda processou-se ao longo do filme, nas
entrelinhas das irreverências que acompanhamos?
Se entramos em Trouble With Angels sem nada saber sobre as protagonistas (seu passado, o motivo de terem sido
enviadas para aquele colégio), nos despedimos dele com a certeza de termos
conhecido duas meninas como conhecemos as pessoas com quem convivemos:
presenciando seus atos, ouvindo suas palavras, intuindo suas razões profundas.
E, por conta desta certeza da incerteza, a escolha de Mary, a mais rebelde da
dupla, de integrar a ordem das freiras ao fim do curso, não nos vem como um
choque, ou como a revelação do inesperado. Afinal era perceptível que alguma
coisa se passava com a menina, que ela ansiava por um espaço de acolhimento,
por um lugar no qual suas ações pudessem ganhar sentido. E, da afronta e
postura desafiadora do início à compreensão do estilo de vida das freiras ao
final, em seu particular percurso de conquista e descoberta, Mary reconhece que
ali naquele convento os gestos reverberam e adquirem sentidos. A exemplo de
toda a obra da cineasta que por trás do filme, que a conduziu o tempo todo, rumo
ao futuro. A um futuro desconhecido, porque ao drama cabe ocupar-se precisamente
dos momentos mais difíceis.
Tatiana Monassa
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