O
ano de 1945 costuma
ser lembrado como uma espécie de fronteira a demarcar uma
nova
fase do cinema mundial. Em termos mais amplos, a data evoca o
surgimento do cinema moderno, intrinsecamente ligado à
reconfiguração geopolítica e
econômica do
pós-guerra. No bojo dessas
transformações, a
noção de que as estruturas tradicionais do cinema
estavam sendo abaladas, percepção corrente seja
na
Europa, nos Estados Unidos ou aqui no Brasil.
No
caso do cinema
hollywoodiano, a segunda metade dos anos 40 apresenta uma
sucessão
de crises internas e externas, tais como a
desestruturação
dos grandes estúdios e a perseguição
anticomunista. Lá, um dos efeitos mais visíveis
desse
conjunto de mudanças é a
proliferação dos
chamados produtores independentes, resultado da crise das grandes
companhias, de um novo entendimento estético e
político
do cinema e de questões mais pragmáticas e
decisivas,
como o alívio da carga fiscal sobre as receitas dos que,
naquele momento, investiam os altos salários na
produção
de filmes, sobretudo astros e estrelas libertos de contratos a longo
prazo.
O
caso de Ida Lupino –
atriz de fama que começou sua carreira bem no
início
dos anos 30 e se tornou produtora independente e diretora no final
dos anos 40 – é, nesse sentido, bastante
significativo.
A trajetória de Lupino se inscreve exatamente na
confluência
desses fatores acima descritos. No entanto, fundando com seu marido e
colaborador Collier Young a produtora The Filmakers, a atriz
realizou, entre os anos 1949-53, alguns filmes bastante incomuns para
os padrões hollywoodianos.
Em
geral, de um ponto
de vista restrito e um tanto esquemático, o termo cinema
independente sugere ousadia estética e temática.
Os
filmes produzidos pela Filmakers seriam, nesse sentido,
típicos
produtos “independentes”. Afinal, Not
wanted
(1949), Outrage (1950), Hard, fast and
beautiful (1951)
e The bigamist (1953), por exemplo, são
trabalhos cujo
principal chamariz “exterior” reside nos chamados
“temas
fortes”. Em Not wanted acompanhamos a
trajetória
de uma moça pobre e ingênua que se torna
mãe
solteira e é obrigada a “doar” seu filho
recém-nascido para uma instituição de
caridade.
Outrage trata de estupro e preconceito. Em Hard,
fast and
beautiful, uma mãe “agencia” a
filha, uma
talentosa tenista, para, por meio dela, conseguir ascender
socialmente. O título The bigamist já
diz tudo.
Essa
opção
por temas fortes – e por títulos impactantes
– não
deixa de ter vínculos com as estratégias
publicitárias
do chamado “filme de
exploração”
(exploitation film), importante veio do cinema
independente
norte-americano de baixo orçamento nos anos 1940 e 50.
Aliando
a “exploração” ao melodrama,
Lupino não
deixa de reforçar certa dose de apelo popular em suas
produções.
Mas
essas referências
típicas de um cinema abertamente comercial não
desembocam em uma jogada de marketing; ao contrário, elas se
tornam base para um curioso e singular trabalho de
direção.
A singularidade se deve à forma como esses “temas
fortes” são tratados: com extrema delicadeza.
Os
filmes de Lupino,
sobretudo os dessa primeira fase de sua carreira como produtora e
diretora, conservam um encanto particular: “filhos”
da
época inaugurada pelo pós-guerra, são,
ao mesmo
tempo, filmes “clássicos”, ou seja,
ainda
atrelados às convenções gramaticais de
um cinema
que claramente se eclipsava no horizonte, e
“modernos”,
isto é, carregados de uma ambiguidade e de um distanciamento
ainda não de todo explorados.
A
experiência de
direção chegou a Lupino por meio de uma
fatalidade. Em
Not wanted, o diretor Elmer Clifton, veterano
egresso do
cinema silencioso, sofreu um ataque cardíaco após
o
terceiro dia de filmagem. Lupino, que desempenhava as
funções
de co-roteirista (com Paul Jarrico) e de produtora, teve de assumir
também a direção. O
episódio lembra os
próprios filmes de Lupino: diante da adversidade, os
personagens se vêem arrastados e forçados a tomar
decisões radicais, muitas vezes errôneas ou
desastrosas.
No caso de Lupino não poderia ter havido acerto maior: em
que
pesem as atribulações enfrentadas na filmagem, Not
wanted é um trabalho de estréia de
rara
organicidade, sobretudo de uma sinceridade surpreendente. Nos
créditos, Clifton surge como diretor. Mas, para usarmos a
fórmula autorista, já se trata de “um
típico
filme de Ida Lupino”.
Dentre
os títulos
citados alguns parágrafos acima, The bigamist é
certamente um dos mais fascinantes, seja pela cuidadosa
construção
do personagem central, o bígamo Harry Graham, vivido por
Edmond O’Brien, seja pela recusa em julgar não
só
Harry mas também as duas esposas, Eve Graham (Joan
Fontaine),
e Phyllis Martin (Lupino), seja ainda pela sutil reflexão a
respeito do próprio cinema (voltarei a este ponto mais
adiante). The bigamist inscreve-se na fronteira
entre o
“clássico” e o
“moderno” a que aludi
anteriormente. Em certa medida, dialoga com o Roberto Rossellini de
Viagem à Itália (1953) e
antecipa em muitos anos
um filme como Encontros e desencontros (Sofia
Coppola, 2003).
Harry
Graham é
um bem-sucedido chefe de vendas de uma empresa própria,
distribuidora de eletrodomésticos. Ele tem exclusividade nas
vendas de uma fábrica de congeladores na ensolarada Los
Angeles, razão pela qual se ausenta com frequência
de
casa, em San Francisco, e passa longas temporadas longe de Eve. Ela,
por sua vez, controla os negócios da empresa. Dotada de
talento para iniciativas empresariais, acaba levando esse
espírito
para o próprio relacionamento com Harry, que não
vai
muito bem. O que causa maior desgosto em Eve, porém,
não
são as ausências do marido, mas o fato de
não
poder ter filhos.
Em
um passeio casual
num ônibus de turismo pelas ruas de Bervely Hills, Harry
conhece Phyllis, uma jovem tão solitária quanto
ele. Os
dois se envolvem e dessa união nasce um filho. Harry casa-se
com Phyllis em Los Angeles enquanto se prepara para adotar um
bebê
com Eve, em S. Francisco. Essa última decisão
desencadeará uma investigação em torno
da vida
privada do casal Graham. O que seria um procedimento de praxe, levado
adiante pelo prestimoso senhor Jordan (Edmund Gwenn),
responsável
pelo processo de adoção, acaba por selar o
destino de
Harry, que será descoberto em sua “vida
dupla” e
levado a julgamento no tribunal.
Uma
história de
amor? Certamente, mas não construída a partir da
manipulação dos pares de indivíduos
que se
encontram ou que se opõem (esquema ao qual, de maneira
certamente tênue, Lupino ainda se via presa em filmes como Not
wanted ou mesmo Hard, fast and beautiful).
Há aqui,
claro, a duplicidade presente na própria natureza das
relações
de Harry Graham e nas diferenças que ele vê entre
Eve e
Phyllis. Mas a “vida dupla” não
é o
verdadeiro suplício de Graham. Seu drama é
justamente
não conseguir compartimentar os próprios
sentimentos,
separá-los, institucionalizá-los. Ao conhecer
Phyllis,
Harry não a vê como “amante”.
Não a
enquadra em uma “função
social”, por assim
dizer. O que se dá de fato é um encontro. E como
classificar um encontro no qual o que está em primeiro plano
não é a praticidade de seu sentido, mas o milagre
em si
mesmo?
O
embate entre Harry e
o mundo que o cerca não se dá a partir de lances
espetaculares ou de um mar de lágrimas. Trata-se de um drama
em surdina, feito de pequenos gestos, de silêncios, de olhos
que se fecham ou se abrem para o que está ao redor.
Não
é por acaso que Phyllis de início nada procura
saber
sobre a vida de Harry, quem ele é, o que faz exatamente ou
quais os seus vínculos sociais e familiares; o que importa
é
o que ambos sentem um pelo outro e isso basta.
Quando
Harry embarca no
ônibus de turismo que circulará pelas ruas de
Bervelly
Hills, ele se senta em uma poltrona no corredor, bem ao lado de uma
outra fileira na qual, também no corredor, Phyllis se
encontra
confortavelmente recostada. O trajeto do ônibus abrange a
longa
avenida margeada pelas mansões dos astros e estrelas
hollywoodianos, anunciados com graça e entusiasmo pelo
motorista: James Stewart, Barbra Stanwyck, Jack Benny, Oscar Levant,
Louella Parsons, Jane Wyman... No veículo, os turistas
esticam
corpos e torcem pescoços para ver os casarões que
passam pelas janelas como fotogramas de um mundo à parte.
Somente Harry olha para dentro do ônibus, especificamente
para
Phyllis. Quanto a ela, parece cochilar, de olhos tranquilamente
cerrados.
Essa
admirável
sequência traduz de forma sintética não
só
os dois personagens, como também uma maneira muito
particular
de encarar o cinema. Para Harry e Phyllis, pouco importa onde mora
Clark Gable. Aquele mundo lá fora é feito de
coisas
impalpáveis, corriqueiras, absolutamente
destituídas de
um sentido além daquele que lhes dá o motorista
de
ônibus. O mundo que realmente importa é o
interior,
aquele que nasce de um olhar voltado para dentro de nós
mesmos, seja num breve momento de descanso em que os olhos se fecham,
seja quando observamos encantados um rosto humano.
Da
mesma forma, o
cinema de Lupino parece compartilhar desse entendimento. Trata-se de
um cinema de personagens comuns, mas de maneira alguma banais; tal
como esses dois passageiros do ônibus que atravessa Bervely
Hills, trata-se de um cinema que pode fechar os olhos para as longas
avenidas ostentatórias, pois prefere os becos e as travessas
desprezadas pelos turistas mais afoitos, ou então observar
não
propriamente a paisagem exterior que surge e desaparece
atrás
dos vidros de uma janela, mas um rosto que se desenha à
nossa
frente, isto é, a paisagem de uma alma que se revela ao
nosso
olhar. Nesse sentido, essa sequência é quase um
manifesto: sutil, mas muito próximo da profissão
de fé
que nortearia um cineasta como Cassavettes, por exemplo.
Quando
Harry Graham
acaba de contar a sua história para o senhor Jordan, este
já
abandonou a indignação anterior e se mostra
não
apenas sensibilizado mas sobretudo perturbado:
“Não
consigo definir o que sinto por você”, diz o sr.
Jordan,
“Eu o desprezo e me compadeço; não
quero apertar
sua mão e quase lhe desejo boa sorte”. Essas
palavras
igualmente traduzem o sentimento que nos invade ao fim do filme. Elas
também definem, em termos precisos, uma postura
fundamentalmente contrária às “leis
morais”
que então ainda regiam os códigos
cinematográficos
hollywoodianos. Muito embora trabalhe com a
tradição do
melodrama e do “filme de tribunal”, The
bigamist
já aponta para um cinema futuro, de personagens
insondáveis
ou, pelo menos, libertos de uma “narrativa
judicial”. Os
olhares que as duas mulheres lançam para Harry Graham, ao
fim
do julgamento, selam a ação com uma nota
antológica.
Em nenhuma das expressões apresentadas por Eve ou Phyllis
conseguimos definir um sentimento único,
classificável,
enfim, confortável para nós espectadores.
Justamente
porque não cabe ao cinema reduzir os sentimentos a um
“fim”.
Luís Alberto Rocha Melo
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