“Veio-me
a
suspeita de que a história, a verdadeira
história, é
mais pudica, e que suas datas essenciais podem assim permanecer por
muito tempo secretas.”
Borges,
O Pudor da
História
“O
que há
de mais profundo é a pele.”
Paul
Valéry
A
sinceridade é
uma virtude. Ela no entanto jamais orientou as receitas
fáceis,
os números expressivos ou as fórmulas decisivas
de
sucesso. Como a lufada mais carregada de um vento que traz consigo
uma nova corrente de ar, seu poder particular é o da
revelação, sua capacidade a de fazer com que a
circunstância seja percebida como descoberta. Um olhar
inadequado é primeiramente um olhar sentencioso, prepotente,
indiferente às palpitações que animam
as forças
e os movimentos naturais, incapaz de se deixar preencher por aquilo
que é vital e por conseqüência nos fala
mais
diretamente, isso quer dizer mais sinceramente, de nós e do
mundo em que vivemos, e mais precisamente do lugar que ocupamos nesse
mundo. Um olhar generoso, em contrapartida, é acima de tudo
um
olhar livre, isso quer dizer liberado das amarras massacrantes de um
conformismo que convém especialmente aos
espíritos já
corrompidos por uma inteligência postiça, confusa
e
artificial – confusa porque perplexa diante daquilo que
há
de mais natural, esse movimento que reconcilia o homem à
natureza, e que na ausência de um contato apropriado
é
como que hostilizado por certos intelectos (imputar aos objetos os
erros de seus julgamentos não é mais que a
confirmação
de uma mesma e compartilhada fraqueza, para não dizer
impostura, desse tipo de “intelectual”); artificial
porque incapaz de detectar num fato o que há de importante
nele no segundo em que se passa. “O que importa é
o que
se tornou importante”; o aforismo de Brecht nos permite
acessar
um ciclo de obras de uma rara unidade, como aquelas que descobrimos
no contato com a breve carreira de cineasta de Ida Lupino.
A
brevidade, curiosamente, é o traço comum dos que
perseguem essa verdade instantânea dos seres. Brevidade
primeiramente do método, o mais adequado e
íntegro, o
relato mais direto e econômico possível, aquele
que
melhor descreve a retidão dos percursos que incitam em
nós
os sentimentos mais raros, e provocam em outros – os atores
destes sentimentos, aos quais nos identificamos – os gestos
mais legítimos. Esses gestos são determinados por
uma
necessidade irrepreensível, nascida da impossibilidade de
penetrar na intimidade do personagem e por fim alcançada
através dessa capacidade única do cinema de
impregnar a
presença do ator, de sua epiderme e seus movimentos,
à
presença concreta do espaço material (o décor)
restrito pela mise en scène. Brevidade
finalmente de
suas atividades artísticas, se levarmos em
consideração
que o principal da obra de Lupino se situa entre 1949 e 1953, assim
como as de algumas sensibilidades semelhantes como Vittorio Cottafavi
(falo dos trabalhos que realizou para o cinema, e especificamente do
que realizou de essencial dentre esses trabalhos, num intervalo que
vai de 1949 – Fiamma che non si spegne
– a 1954 –
Una donna libera), as obras americanas de Joseph
Losey e Paul
Fejos, os seis longas-metragens dirigidos por Paul Newman, os
trabalhos de Rossellini com Ingrid Bergman, o encontro de Preminger
com Jean Seberg, os melodramas que Raffaello Matarazzo realizou com o
casal Amedeo Nazzari-Yvonne Sanson e a obra intermitente do
francês
Jean-Claude Guiguet.
O
que afinal mostram
esses filmes, do que nos falam? De mágoas, de tristezas e
dos
sofrimentos que elas infligem tanto sobre a carne quanto sobre a
alma; de feridas antigas, que apenas um acesso a esse momento em que
a felicidade se converte fisicamente em prazer pode curar e
finalmente cicatrizar. Paralisado no seu grau máximo de
graça
e intensidade, esse prazer é o mais nobre, o mais singular,
o
mais precioso que há: é o raro prazer de se
perceber
receptor e detentor de uma graça que se manifesta somente
nos
momentos definitivos de uma vida já flagelada pelos
suplícios
e pelas dores que conhecemos quando afrontados por um mundo que
oprime mas também liberta. Para tanto, uma pergunta se
impõe:
como conservar matéria tão frágil,
delicada a
ponto de ser ameaçada por qualquer
oscilação; de
que forma mantê-la se, pressentindo qualquer
ameaça, é
próprio dela se suprimir súbita e imediatamente?
O que
nos permite falar de “mundo” mais que em
“situações”,
“circunstâncias” e outras malhas
superficiais
utilizadas por cineastas sem a menor ambição,
cujo
fardo de fazer filmes não devia nos assolar tão
freqüentemente, é justamente a capacidade do cinema
de
fazer coincidir o alargamento de uma ação com um
momento de desinchação do universo, como se nesse
momento o universo conspirasse para que todas as suas energias fossem
condensadas nessa ação. Uma tomada de
fôlego, um
círculo concêntrico, uma “brecha aberta
na argila
de uma barragem”. Griffith, Naruse, Mizoguchi, Rohmer, os
Straub, Michael Cimino, Leo McCarey, Matarazzo, Preminger, Bresson,
Borzage, Hou Hsiao-hsien, Jean-Claude Brisseau, Pedro Costa, Rivette,
Douglas Sirk, Losey, Cottafavi e Ida Lupino sozinhos detiveram em
graus os mais diversos e através de práticas
diferentes
o segredo dessa matéria que se cola perfeitamente, isso quer
dizer irreparável e brutalmente, à epiderme
dramática.
Sim, a sinceridade é brutal.
Necessário porém nos acordarmos quanto ao
significado,
aliás bastante simples, dessa palavra, que remonta a
“bruto”,
“original” e sugere, muito mais que a
possível
estupidez de uma expressão, a nudez dessa
expressão no
momento em que desponta e surpreende em toda sua violência
original – não atenuada, não
dissimulada pelas
incertezas de um olhar hesitante. O espectro dessa materialidade,
dessa brutalidade pouco tem a ver com a vulgaridade dos choques de
parque de diversão que parecem constituir a
gramática
de um novo, e novamente insípido, cinema internacional
(Assayas, Ainouz), nem tampouco com o entorpecimento dos sentidos que
certos siderantes (I’m Not There,
Scorsese) infundem
através da mais completa e bem sucedida
inanição
e privação da consciência por meio de
uma
enxurrada de imagens convulsivas. A fascinação
que essa
brutalidade instiga também não é
aquela que nos
arrebata pelo seu desvario (Resnais, De Palma, Argento) ou que
repelimos por simples exigência e respeito a nós
mesmos
quando confrontados por sua completa inaptidão (Desplechin,
Von Trier, O Labirinto do Fauno). O tema
privilegiado por
Lupino na maioria de seus filmes – a integridade da mulher
moderna num mundo profundamente laico – acaba por
afastá-la
definitivamente tanto de um Hawks (exaltação
viril de
uma economia que permite a corrupção dessa
integridade)
quanto de um Antonioni (itinerário secreto de personagens
desconfortáveis nas suas epidermes sociais). Se acabamos
arrebatados por sua sinceridade é porque ela nos permite ver
mais profundamente aquilo que merece ser visto: a serenidade, o mundo
sob o olhar de alguém que procura a paz, conquistado somente
após sermos privados desse equilíbrio por uma
experiência extrema e terminal – que mais que o
assunto
do filme é a própria substância de sua
matéria
– cuja conclusão nos eleva e faz com que
reencontremos
nossa consciência, agora mais forte e sublimada por esse
contato com as formas concretas de um mundo que, mesmo pleno de
arestas, acolhe-nos.
Esse
é o mundo
dos filmes de Ida Lupino: robusto, cortante e
imprescindível.
O mundo de todos os dias, o nosso mundo, aquele que reconhecemos no
momento em que suas formas incidem sobre a tela: subúrbios,
edifícios, ruas arborizadas, tráfego urbano,
transportes públicos, quartos de hotel, cozinhas,
escritórios,
indústrias, estabelecimentos comerciais... Essa arquitetura
inconfundível dos planos, diante da qual o suporte da
película
parece desaparecer para dar lugar à própria
realidade,
é a mesma que reencontramos mais recentemente nos filmes de
Michael Mann e Eugène Green (e também em Ponto
Final
e O Sonho de Cassandra), e somente ela parece
permitir ao
cinema a culminação de todas as suas premissas: a
encarnação de um sentimento do mundo sobre uma
seleção
de formas designadas meticulosamente para essa
recepção.
Basta nos referirmos ao plano inicial de Not Wanted,
o
percurso de Sally Forrest sobre uma rua deserta numa grande cidade:
de imediato somos absorvidos pela trajetória
inexorável
dessa personagem, a dor se instalando lenta e inelutavelmente sobre
sua alma. Uma tal adequação da matéria
ao drama
sugere uma idéia mais elevada das possibilidades do cinema
que
certos acidentes peliculares incensados por uma crítica
imprudente e sem critérios.
Se constatamos que essas
possibilidades foram, de D. W. Griffith e Cecil B. DeMille a
Jean-Claude Rousseau e Pedro Costa, depositadas no drama de
câmara
como a própria orientação da
modernidade
inerente e inalterável do cinema, não estamos
fazendo
mais do que reconhecer aquilo que essa arte, ao longo dos seus pouco
mais de 110 anos, produziu de melhor e mais durável.
Estabelecendo um registro passional preciso, centrado sobre um ou
dois ou três personagens, o kammerspiel
se conforma
perfeitamente às preocupações da
prática
da mise en scène: entre a
submissão e o
despojamento, a tradição e a
invenção, a
escassez e a profusão. A economia figurativa desse registro,
que jamais separa o laconismo e a beleza, foi responsável
tanto pela glória da usina Hollywoodiana quanto pelo apogeu
de
uma depuração profunda feita longe dos
estúdios
californianos e cujos pioneiros foram Robert Bresson e Roberto
Rossellini. É justamente entre a maquinaria Hollywoodiana e
uma nudez brutal que esses dois cineastas começavam a
investigar (Diário de um Pároco de Aldeia;
Francisco, Arauto de Deus) que localizamos a obra de
Ida
Lupino: alguns corações que batem, alguns
diálogos
entre seres, e por fim uma comunhão entre suas almas (como
em
Not Wanted, Outrage e The
Bigamist), ou sua mais
completa dissolução (como em Hard, Fast
and
Beautiful e The Hitch-Hiker). Em cinco ou
seis filmes uma
certa altura, uma certa nobreza, um certo grau de exigência
foi
alcançado por essa cineasta. A nós resta apenas
reencontrar esse segredo, reconduzir sua alquimia, refazer o percurso
da prudência e do bom senso. Tal será a fortuna
dos
nossos maiores cineastas.
Bruno Andrade
|