Em Copacabana, mon amour, Helena
Ignez proferia o seguinte bordão: “O pior
é que eu tenho pavor da velhice!”. Ao
seu lado, passava alguém coberto por um lençol
branco, espécie de
fantasma-parangolé, enquanto uma voz over
gritava: “O fantasma! É o pesadelo ao
vivo!”. O ano era 1970, e o pavor estava
dentro de nós; o pesadelo, bem ao lado. Ambos
visíveis, melhor dizendo, postos
em cena (câmera, corpo e voz), por Helena Ignez e
Rogério Sganzerla.
Talvez seja irônico constatar que, naquele momento, tudo
conduzia a fechar os
olhos e a calar a boca, mas em certos casos o que se fazia era o
contrário.
Olhos arregalados, alguns (poucos) filmes buscavam encarar de frente o
horror,
que não era feito de sangue jorrando em
direção à objetiva, mas de um pesado
clima de eterno meio-dia. Como dizia o cartaz de Nosferatu
no Brasil (Ivan Cardoso, 1971) onde se vê
“dia” veja-se
“noite”. O resultado era o grito surdo.
A lembrança de Copacabana, mon
amour
vem a propósito de Meu nome
é Dindi
(Bruno Safadi, 2008), filme que apresenta pontos de
ligação com o cinema
realizado por Sganzerla e Bressane durante o “ano
Belair” (1970). Dito assim,
pode parecer que o filme de Safadi é uma homenagem ou uma
releitura mais ou
menos reverente do dito “cinema marginal”. Mas
não é nada disso. As referências
existem, são facilmente reconhecíveis, mas
é preciso desconfiar delas, pois
podem ser muito mais o produto de um olhar viciado que se acostumou a
relacionar alhos com bugalhos do que de fato uma
apreciação mais cuidadosa do
que o filme parece estar querendo dizer ou simplesmente mostrar.
A tônica de Meu nome é
Dindi é uma
melancólica nostalgia − ou uma
nostálgica melancolia, tanto faz. Nada
mais distante do cinema experimental vivenciado por Bressane e
Sganzerla do que
esse sentimento. Mas para além da melancolia e da nostalgia,
eu diria ainda que
o filme de Bruno Safadi é também
um
filme de horror. E é nesse ponto − o horror
− que Meu nome é Dindi
se aproxima das
produções da Belair − e, talvez com
maior intensidade, do Bressane mais
recente de A erva do rato (2008).
Seria aqui o caso de perguntar se o horror de 1970 é o mesmo
do de 2008.
Certamente não. Embora um dos ícones dos anos 70,
Carlo Mossy, na pele de um
açougueiro agiota, assombre a jovem Dindi (vivida por Djin
Sganzerla), o horror
trabalhado por Safadi não nos remete àquela
época hoje tão cultuada. Mossy é
uma figura quase lendária; não sentimos
propriamente medo de seu
personagem, mas simpatia. Outras figuras marcantes dos
anos 1970 também são homenageadas −
Nildo Parente, Maria Gladys. Mas seus
personagens não inspiram qualquer temor, nem mesmo o de
Parente, que poderia
ter transformado o Palhaço Alegria em pelo menos algo de
inquietante.
O horror de Meu nome é Dindi
diz
respeito a um sentimento muito particular da sua própria
época, de nosso
momento atual. Trata-se do horror ao futuro. E o indício
maior desse horror é a
ameaçadora sombra do passado, que parece nublar tudo ao
redor e paralisar o
tempo. A atitude de um filme como Meu
nome é Dindi traduz-se em um jogo
agônico, entre desviar os olhos do
passado e adiar a visão do futuro como quem prorroga
desesperadamente o
reencontro consigo próprio. O filme assume esse momento
crítico, é uma
expressão dessa agonia. É, em si mesmo, um rito
de passagem, do qual só temos acesso à
travessia, e não ao seu início ou ao
seu fim.
É essa agonia, é esse horror ao futuro, que
parecem definir a melancolia e a
nostalgia de Meu nome é Dindi.
Aqui é
necessário compreender esses sentimentos como
expressão de um movimento ainda
indefinido − mas que eu arriscaria dizer que pode ser visto
como um
movimento de recusa. Recusa a quê, ou a quem? Ao
próprio “passado” cultuado,
isto é, ao próprio modelo com o qual “Dindi”
tem a consciência de dialogar. Recusa à
herança da qual − ainda − o
filme faz uso.
Uma advertência: não se trata aqui de retrabalhar
o tema da “morte do pai”,
especialmente marcante no caso da relação cinema
marginal x cinema novo. Também aqui devemos
guardar as devidas distâncias. Meu
nome é Dindi não é um novo Orgia, ou homem que deu cria
(João
Silvério Trevisan), que aliás tinha como
título original Foi assim que
matei meu pai, clara alusão ao pai cinemanovista
Glauber Rocha. No filme de Trevisan, o personagem de Pedro Paulo Rangel
de fato
mata o pai (Ozualdo Candeias) e parte. É uma atitude
irracional/consciente,
eivada de ambigüidades, portanto. Em Meu
nome é Dindi há também um
parricídio: Dindi e Marcão, seu namorado, matam o
Palhaço Alegria (Nildo Parente), pai da protagonista. Mas
essa morte não é vivida
como tal. Ambos matam sem saber que a vítima é o
pai. Tudo é revelado ao final,
pela TV, num lance de conotação
melodramática/paródica, que tem pouco a ver com
a atitude de ruptura tão característica da
geração de 1968.
Portanto, Meu nome é Dindi
parece nos
dizer que, hoje, nem mesmo se pode ter a sensação
plena de se estar rompendo
com algo. Além do mais, não é Dindi, a
filha, quem executa o crime, mas Marcão.
A ela só resta a sensação de absoluta
ausência presente − o vazio
melancólico de uma nostalgia do passado
não-vivido. É contra essa angústia
− de resto, um clichê − que a personagem
luta. A arma para vencer
esse sentimento de horror seria o domínio do
próprio tempo. Mas, como afirmou
certa vez Cesare Pavese, “ser jovem é
não se possuir a si mesmo”. Entre enfiar
uma faca no passado e cegar o próprio olho, Dindi escolhe a
segunda opção
− mesmo que o olho atingido seja aquele que se volta,
única e
exclusivamente, para dentro dela mesma. A cena que simboliza esse gesto
é
aquela em que Dindi desfere um golpe de facão sobre a imagem
de um grande olho
aberto pintado na parede de seu quarto.
Na verdade, é mesmo difícil romper com o passado,
sobretudo − extremo
paradoxo − quando o passado é utópico. Meu nome é Dindi tem o grande
mérito de evidenciar não só esse
esforço de rompimento, como também seu eventual
fracasso. No caso, um fracasso que
não é demérito, mas sintoma. E que,
como tal, forçosamente faz parte do
projeto.
Outros filmes brasileiros recentes, como Conceição
- Autor bom é autor morto (André
Sampaio, Cynthia Sims, Daniel Caetano,
Guilherme Sarmiento e Samantha Ribeiro, 2007) e O
fim da picada (Christian Saaghard, 2007) compartilham do
sentimento do horror, embora em chaves diversas. Curiosamente,
são filmes que
também dialogam com heranças de um passado
cinematográfico marcante.
O caso de O fim da picada, por
exemplo, é bastante curioso. O filme de Saaghard
aparentemente retrabalha um
estilo formal próximo ao do “cinema
marginal”. No entanto, seus laços mais
profundos − dos quais em grande medida nascem o horror e a
repulsa
− nos remetem a um momento anterior a esse cinema. O horror
ao qual O fim da picada
está preso tem suas
raízes em uma determinada concepção de
“cultura brasileira”, em particular
aquela ligada ao folclore. Assim sendo, pode fazer mais sentido
relacionar O fim da picada
não propriamente ao
cinema experimental, mas ao cinema novo
ou, recuando ainda mais, ao cinema do Humberto Mauro
funcionário do Instituto
Nacional do Cinema Educativo.
Há, no filme de Saaghard, um didatismo talvez
involuntário que transforma a
narrativa em uma espécie de desfile de personagens
folclóricos. O garoto de rua
que vira Saci, a burguesa que se transforma em uma
mula-sem-cabeça e até mesmo
o demoníaco Mickey Mouse raptando a criança
são figuras que surgem como dívidas
de um imaginário comum ao cinema dos anos 1930-50 a serem
devidamente
enterradas. Mas, como num filme de terror convencional, todas se erguem
novamente da terra. A cidade de São Paulo,
miserável e assustadora, é o palco
do reencontro. Aqui, ao contrário de Meu
nome é Dindi, o reencontro de fato se
dá. Exatamente por causa disso não se
identifica em O fim da picada
qualquer traço de melancolia ou de nostalgia. Em
compensação, não se vê no
filme de Saaghard a angústia e a inquietude presentes no
tratamento de Bruno
Safadi. O fim da picada afirma um
olhar cínico e cheio de si. No entanto, o que define esse
olhar é ainda o
horror ao futuro. A diferença é que, no caso de
Saaghard, o passado está
presentificado nas
“tradições” (o folclore)
permanentemente aterrorizantes. O fim da
picada é, nesse sentido, uma
reflexão sobre uma determinada idéia tradicional
de cinema no Brasil. Um filme involuntariamente
“paulemiliano”, pautado pela idéia de
que o que nos define ainda é a cruel
marca do subdesenvolvimento. E essa marca é historicamente
determinada. Não por
acaso, O fim da picada explicita o
tempo (a História) como ferramenta da narrativa: gestos que
se dão no passado e
no presente, flash-backs,
ações
paralelas.
O tempo, em O fim da picada,
é
exterior, é um dado cultural, ao contrário do que
ocorre em Meu nome é Dindi,
cujo fluxo temporal é
interior, subjetivo. Essa diferença marca uma grande
distância entre os dois
filmes, embora em ambos se possa identificar o mesmo embate com as
“tradições”
e a mesma insegurança em relação
à possibilidade de se criar algo de fato novo.
Isso é absolutamente
desconcertante, pois os dois filmes tendem a promover um discurso no
sentido do
“novo”. Ambos se apresentam como propostas de
linguagem que escapam ao
lugar-comum ou ao convencional. Ambos a princípio recusam o
cinema da narrativa
bem-comportada. Mas, em igual medida, ambos também
conscientemente explicitam o
fracasso dessas propostas − de forma melancólica,
no caso de Meu nome é Dindi,
ou cinicamente, como
em O fim da picada.
Dois outros recentes filmes de horror − Filmefobia
(Kiko Goiffman, 2008) e Encarnação
do demônio (José Mojica Marins, 2008)
− parecem
apontar para outras direções. Do primeiro
é possível falar do horror às
imagens, talvez um passo além em
relação à melancolia ou ao cinismo,
certamente
uma discussão mais antenada com o círculo da
crítica de arte, e não é por acaso
que a figura principal de Filmefobia
seja justamente o crítico/ator/cineasta/performer Jean-Claude Bernardet. Quanto à Encarnação
do demônio, trata-se de um dos mais claros
discursos sobre a autoria como
gesto de resistência, dentro de um filme que paradoxalmente
se apresenta como a
mais bem acabada “embalagem” de uma das mais
originais criações do cinema, isto
é, Zé do Caixão.
Filmefobia assume o processo da
realização de um filme como um estágio
para o qual distinções entre
“ficção” e
“documentário” já
não fazem mais sentido. Fazer imagens não
é seguir um
receituário − ou pode até
sê-lo, desde que possa ser explicitado como
sendo exatamente isto que ele é: um receituário.
É essa ambigüidade que faz de Filmefobia
um filme em muitos aspectos
instigante. Ele oscila entre o objeto e o conceito do objeto. Em
cinema,
trata-se de uma operação bastante complexa.
É contudo essa oscilação que
promove o horror à imagem: o que de fato ela é? o
que de fato ela pode criar? a
imagem “cria” alguma coisa? Tal como em Meu
nome é Dindi, esses questionamentos
também conduzem a uma espécie de
“sub-clímax”, no qual um olho
é também perfurado − no caso, em uma
cena
que mostra Jean-Claude Bernardet recebendo uma
injeção em seu olho, durante um
tratamento médico.
Saindo da prisão depois de 40 anos, Zé do
Caixão volta a aterrorizar São Paulo.
Antes disso, é ele quem se aterroriza com a cidade. Ela se
tornou, independente
dele, num inferno muito pior do que suas próprias
alucinações. Por isso, Zé do
Caixão precisa se adequar às novas regras, para
logo depois enfrentá-las. O
coveiro vai morar em uma favela, em uma espécie de bunker no qual pode reinar absoluto e dar
ordens aos seus
subordinados. A subserviência, a
superstição, a ignorância e a
miséria
continuam a rodeá-lo, mas, ao contrário do que
ocorre em Á meia-noite levarei sua
alma (1964) e em Esta noite
encarnarei no teu cadáver (1967), Zé
terá inimigos bem
mais violentos com os quais irá lidar. A Polícia
e a Igreja agora formam um só
braço armado. Zé do Caixão,
porém, é remanescente de uma outra
época. Sua
missão já não é apenas
pôr no mundo um herdeiro, mas antes de mais nada sobreviver aos novos tempos.
De certa maneira, Filmefobia e Encarnação do
demônio respondem à
contemporaneidade de forma semelhante a Meu
nome é Dindi e O fim da
picada.
Nos filmes de Kiko Goiffman e Bruno Safadi há processo,
investigação interior,
angústia diante da imagem. Nos filmes de Christian Saaghard
e José Mojica
Marins há um corpo-a-corpo com a
tradição, um aberto enfrentamento com o
espaço
exterior, cinismo diante da imagem.
O que nos parece inquietante, porém, é o fato de
que as reflexões mais
conseqüentes relativas a essas questões parecem
mais uma vez surgir de figuras
ligadas aos anos 1960 − justamente Jean-Claude Bernardet e
José Mojica
Marins. Não deixa de ser irônico o fato de que, a
certa altura de Filmefobia, haja
uma cena em que
Jean-Claude, que no filme interpreta um diretor de cinema, surja em uma
ilha de
edição mostrando as imagens
recém-gravadas para José Mojica Marins
analisá-las
criticamente.
Meu nome é Dindi e O fim da picada ainda se encontram
presos às tradições contra as quais
lutam. Filmefobia
e Encarnação do
demônio cruzam essa
fronteira. Se o filme de Goiffman trafega pela
indefinição dos gêneros e das
categorias, levando ao extremo o questionamento das imagens, Encarnação do
demônio se afirma como
gênero, claro e definido, “cinema de
autor” adequado aos novos tempos, isto é,
capa de mainstream sob os rufares
da
20th Century Fox. Ambos, porém, gritam, tal como na cena do
parque de
diversões, no fim de Encarnação
do
demônio: “Desconfiem das imagens.
São apenas... imagens!”.
Luís Alberto Rocha Melo
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