Quanto
mais a
tecnologia das câmeras digitais se aperfeiçoa para
suprir uma demanda cada vez maior de filmadoras caseiras, maior
também é o número de filmes de
ficção
que buscam emular essa “estética”,
emular o ponto
de vista do personagem que filma com sua handy-cam,
já
se partindo do pressuposto de que esse recurso garante aos filmes um
ganho de realismo. Acontece que, na maioria das vezes, essa quase
identidade de pontos-de-vista entre personagem e espectador,
estabelecida pela câmera diegética, é
um
procedimento retórico cujas motivações
não
ultrapassam esse pressuposto do realismo. Em poucos casos vemos ser
questionado o olhar "deste que filma"; raramente o cinema
tem buscado investigar o tipo de relação que
esses cada
vez mais numerosos cinegrafistas amadores estabelecem com a imagem.
Definitivamente, trata-se de um tipo diferente de
intermediação
câmera-mundo. Mas de que forma? No limite, apontar uma
câmera
para o mundo não deveria gerar maiores descobertas sobre ele
do que realizar um filme de ficção, mas existe
uma
fissura entre esses dois meios de ação do
dispositivo
que raramente é pensada.
Uma
surpreendente
terceira posição na lista dos dez melhores filmes
de
2008 da Cahiers du Cinéma
(não que isso hoje
possua necessariamente grandes significados, mas acaba incitando
visões e revisões) foi um dos motivos de uma ida
à
locadora à procura de um filme que havia passado bastante
despercebido no circuito carioca: Cloverfield,
filme de
monstro protagonizado por atores desconhecidos e dirigido por um
sujeito cujo trabalho mais significativo de até
então
havia sido a direção de alguns
episódios de
Felicity, há pelo menos uns oito anos
atrás.
Cloverfield é mais um filme desse
subgênero cada
vez mais forte do cinema de terror que inscreve a visão do
espectador por detrás de uma câmera
diegética,
fazendo-o compartilhá-la assim com a visão do
personagem-cinegrafista, que raramente surge em tela. Aqui, o
próprio
filme já é apresentado como um objeto
diegético.
Uma fita encontrada nas redondezas do Central Park e identificada
como propriedade do Governo americano sobre o "caso
Cloverfield".
Mas
o que se difere no
filme de Matt Reeves é justamente o seu interesse pela
construção do olhar por trás da
câmera.
Isso porque, diferentemente do habitual, o personagem-cinegrafista
é
aqui bastante problematizado. Sua relação com o
dispositivo que se coloca entre a experiência e a realidade
nunca deixará de estar em questão em Cloverfield.
Hud, personagem designado em uma das primeiras
seqüências
a colher depoimentos videografados para seu amigo Rob, que
está
de partida para o Japão, se sente a princípio
inseguro
diante dessa tarefa. Porque ele não sabe filmar e
está
talvez longe de querer saber o que isso significa. Ao
contrário:
está mais interessado em se aproximar de Marlena, a garota
de
que ele gosta, do que no registro clichê da festa de
despedida
do amigo – e vemos um zoom nada sutil na garota quando ela
chega na festa cortando um depoimento ao meio. A câmera passa
a
funcionar para Hud como uma possibilidade de estabelecer contato com
Marlena. E, numa das grandes precisões da
direção
de Reeves, vemos ele tentar se aproximar dela e desviar até
terminar de frente para um sujeito aleatório com quem puxa
um
papo estranho, constrangedor, antes de dar stop em
sua câmera.
O
que vemos em grande
parte dos filmes de terror que optam pela equivalência da
câmera do filme com uma câmera diegética
é
a completa anulação do personagem que filma em
função
do registro. Ele deixa de existir a partir do ponto em que assume
para si a tarefa de registrar tudo que acontece de estranho no mundo
– seja uma súbita dominação
do mesmo por
zumbis (como no último filme de Romero), seja a
inexplicável
invasão de Manhatann por um monstro gigantesco surgido
não
sei de onde. Raramente esses dois atores (o personagem que filma e o
dispositivo) serão pensados na maneira como interferem um
sobre o outro nessa dupla operação
experiência/registro
do real. Ao contrário, serão transformados e
simplificados em um único organismo. A partir
daí, na
maioria das vezes, a relação do personagem com a
realidade se dá quase sem atritos e sem lacunas, afinal a
câmera está na posição de
registro,
garantindo à experiência vivida uma maior
credibilidade.
No
filme de Matt
Reeves, contudo, isso se dá de forma bastante diferente. Hud
se torna/sente responsável pelo registro que
possibilitará
àqueles que tiverem acesso a ele uma
noção muito
maior do que se passou no dia em que Nova Iorque foi invadida por um
monstro gigante do que a daqueles que simplesmente o vivenciaram. Ao
mesmo tempo, a partir do momento em que ele decide substituir seus
olhos inteiramente pela câmera, esse mesmo personagem passa a
ter uma experiência do real muito mais conturbada que os
outros. Não é à toa que Hud
é sempre o
mais angustiado com as súbitas
aparições do
monstro, e que é o único do grupo que
não cessa
de questionar o que é aquilo. É que ele
vê o
mundo por trás de um visor. Uma realidade transformada
numericamente, sem solidez, impalpável e
fantástica. E,
quando o personagem finalmente se vê cara a cara com o
monstro,
é incapaz de agir. Seus amigos gritam fora de tela
avisando-o
do perigo, mas ele permanece estático diante da
visão
dessa face monstruosa, sem desligar a câmera, até
ser
mastigado até a morte.
Cloverfield
opta pela
emulação do ponto de vista de um
personagem-cinegrafista sem deixar, ao contrário da maioria
dos filmes (ao menos os recentes) que fazem essa mesma escolha, de
levar em consideração a
preocupação
formal que ela suscita. Justiça seja feita: de maneira muito
diferente, George Romero já pensava em tais
implicações
ao filmar Diário dos Mortos, mas
aí estaríamos
falando de uma outra exceção. É por
isso que,
mesmo com o extremamente frágil "lado Felicity" do
filme de Matt Reeves – uma espécie de montagem
paralela
(possível graças à
inexperiência de Hud em
filmar) alterna a sua gravação a uma outra, feita
dias
atrás, de um passeio de Rob e Beth (por quem este
último
é apaixonado e passa o filme inteiro tentando salvar) a
Coney
Island, ilustrando uma intenção pretensamente
irônica
mas um tanto tola de uma montagem de oposição
entre um
dia feliz a outro apocalíptico – estamos falando
aqui de
um objeto que merece toda a atenção.
Alice Furtado
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