O SILÊNCIO DE LORNA
Jean-Pierre e Luc Dardenne, Le Silence de Lorna, Bélgica/França/Itália/Alemanha, 2008

Desde A Promessa e Rosetta, cada plano dos Dardenne funciona como um plano-intensidade que se mede pela energia gasta na sua execução; a mise en scène deles é trabalho no sentido físico (multiplicação da força pela distância). De um lado, as injunções misteriosas de um mundo invernal (os Dardenne só filmam em dias frios e nublados), violento, mecânico, onde um ser sobrevive ao apagar o outro e impor seu nome, Rosetta, Lorna. Do outro lado, o desenrolar quase didático de parábolas morais típicas de um socialismo cristão voluntarista e professoral – eles cada vez mais se aproximam do Kieslowski do decálogo. Entre os dois, a atividade de um corpo.

Até aí, a essência dos realizadores teria se mantido em O Silêncio de Lorna, talvez menos concentrada do que em O Filho, porém certamente mais depurada do que em A Criança, no qual tudo soava meio programático, parecendo mais a repetição automática de uma fórmula do que a vitalidade contínua de uma forma. Em O Silêncio de Lorna, nem tudo é repetição, nem tudo obedece unicamente a um programa. Mas ao invés de apontar o que é e o que não é sistemático nesse novo filme dos irmãos Dardenne, é preferível constatar, por exemplo, que aquele plano de Lorna olhando seu marido Claudy dormindo num quarto de hospital é a pausa para observar um silêncio que perfura a superfície da personagem mostrando que ela não é simplesmente a mediadora de um discurso, mas corpo realmente engajado no suspense do filme. A cena perturba um padrão de encenação que os diretores pareciam dispostos a tornar inabalável e insere a hesitação que, ao vencer os pretextos retóricos, nos apresenta uma atitude, um olhar, uma dúvida, um sentimento, e escapa àquele humanismo cada vez mais demagogo que – de A Criança a Linha de Passe – se faz passar por olhar delicado e generoso quando na verdade é só uma tese qualquer sobre um mundo cheio de defeitos (claro).

No começo de O Silêncio de Lorna, a referência explícita a L’Argent planta uma inquietação: será que os Dardenne terão cabeça e estômago para refilmar a mais brutal e magnífica obra de Bresson? Mas logo depois percebemos que não é bem assim. A citação a Bresson faz parte do pacote-Dardenne básico, todo ele mais ou menos presente no filme: elipses abruptas, câmera condicionada aos movimentos dos atores, personagens que não param quietos, trama sub-hitchcockiana que na verdade é um subterfúgio para atingir um certo estado de nervos e de alma. O dinheiro é o McGuffin da vez. E é o artifício perfeito, pois ninguém se interroga sobre a necessidade de ganhar dinheiro; ele é um valor automático, que permite também uma proliferação automática das cenas (tão automática que algumas nem precisam ser mostradas, ficam nas elipses). Por que esses personagens agem assim? Porque por trás disso tudo existe o dinheiro. Do casamento de fachada entre Lorna e um viciado até o assassinato – tão frio e asséptico quanto monstruoso – deste último, tudo teve sua origem no fato de que o mundo é regrado pelo dinheiro. Os Dardenne radicalizam esse artifício e se arriscam no absurdo de algumas situações (a morte de Claudy por overdose induzida é um exemplo), convictos que são quanto ao pragmatismo de sua forma narrativa. Eles não querem enumerar argumentos, eles querem encerrar a conversa. Contestável, sim, mas antes esse pragmatismo do que um falatório pusilânime.

Alguma coisa no olhar dos Dardenne sugere que eles estão buscando um novo abrigo para seu cinema. A energia é a mesma, mas parece à procura de novos recipientes. Menos desperdício, mais solidez. À semelhança dos outros filmes dos Dardenne, O Silêncio de Lorna possui uma agitação, uma ebulição interna dos personagens e da narrativa. Essa agitação, contudo, é balanceada por algumas brisas calmas, como se a personagem ganhasse uma pausa para pensar. O momento de fusão é a seqüência final, quando Lorna foge para uma cabana no meio da floresta. Ela catando galhos secos no chão remete à cena com os personagens de O Filho guardando a madeira no final: a repetição mecânica dos gestos retoma o filme de onde ele havia sido interrompido e afirma que o presente está se reconstruindo ali mesmo, naquelas ações empilhadas sobre o tempo. A falsa gravidez de Lorna é o último e mais potente subterfúgio: ela precisa inventar dentro dela uma outra vida, como condição para preservar a sua. Desfecho que, como estrutura de fábula e como proposição moral, expõe os irmãos Dardenne em sua inexorável tendência a um auto-esgotamento. Mas é o final mais coerente e, por incrível que pareça, menos apelativo que eles já filmaram até agora, com uma positividade menos disfarçada de mensagem aos bons de coração e com um olhar mais fiel à situação da personagem.

Luiz Carlos Oliveira Jr.