Desde A Promessa e Rosetta,
cada plano dos Dardenne funciona como um plano-intensidade que se mede pela energia gasta na
sua
execução; a mise en scène
deles é trabalho no sentido físico
(multiplicação da força pela
distância). De um lado, as injunções
misteriosas
de um mundo invernal (os Dardenne só filmam em dias frios e
nublados),
violento, mecânico, onde um ser sobrevive ao apagar o outro e
impor seu nome,
Rosetta, Lorna. Do outro
lado, o desenrolar quase didático de parábolas
morais típicas de um socialismo
cristão voluntarista e professoral – eles cada vez
mais se aproximam do
Kieslowski do decálogo. Entre os dois, a atividade de um
corpo.
Até aí, a essência dos realizadores
teria se mantido em O Silêncio de Lorna,
talvez menos concentrada do que em O Filho,
porém certamente mais
depurada do que em A Criança, no qual
tudo soava meio programático,
parecendo mais a repetição automática
de uma fórmula do que a vitalidade
contínua de uma forma. Em O Silêncio de
Lorna, nem tudo é repetição,
nem
tudo obedece unicamente a um programa. Mas ao invés de
apontar o que é e o que
não é sistemático nesse novo filme dos
irmãos Dardenne, é preferível
constatar,
por exemplo, que aquele plano de Lorna olhando seu marido Claudy
dormindo num
quarto de hospital é a pausa para observar um
silêncio que perfura a superfície
da personagem mostrando que ela não é
simplesmente a mediadora de um discurso,
mas corpo realmente engajado no suspense do filme. A cena perturba um
padrão de
encenação que os diretores pareciam dispostos a
tornar inabalável e insere a
hesitação que, ao vencer os pretextos
retóricos, nos apresenta uma atitude, um
olhar, uma dúvida, um sentimento, e escapa àquele humanismo cada vez mais demagogo que
– de A Criança a
Linha de Passe – se faz passar por olhar delicado e generoso quando na
verdade é só uma tese qualquer sobre um mundo
cheio de defeitos (claro).
No começo de O Silêncio de Lorna,
a referência explícita a L’Argent
planta
uma inquietação: será que os Dardenne
terão cabeça e estômago para refilmar a
mais brutal e magnífica obra de Bresson? Mas logo depois
percebemos que não é
bem assim. A citação a Bresson faz parte do
pacote-Dardenne básico, todo ele
mais ou menos presente no filme: elipses abruptas, câmera
condicionada aos
movimentos dos atores, personagens que não param quietos,
trama sub-hitchcockiana
que na verdade é um subterfúgio para atingir um
certo estado de nervos e de
alma. O dinheiro é o McGuffin da vez. E é o
artifício perfeito, pois ninguém se
interroga sobre a necessidade de ganhar dinheiro; ele é um
valor automático,
que permite também uma proliferação
automática das cenas (tão automática
que
algumas nem precisam ser mostradas, ficam nas elipses). Por que esses
personagens agem assim? Porque por trás disso tudo existe o
dinheiro. Do
casamento de fachada entre Lorna e um viciado até
o assassinato – tão frio e asséptico quanto
monstruoso – deste último, tudo teve sua origem no fato de
que o mundo é
regrado pelo
dinheiro. Os Dardenne radicalizam esse artifício e se
arriscam no absurdo de
algumas situações (a morte de Claudy por overdose
induzida é um exemplo), convictos
que são quanto ao pragmatismo de sua forma narrativa. Eles
não querem enumerar
argumentos, eles querem encerrar a conversa. Contestável,
sim, mas antes esse
pragmatismo do que um falatório pusilânime.
Alguma coisa no olhar dos Dardenne sugere que eles estão
buscando um novo
abrigo para seu cinema. A energia é a mesma, mas parece à procura de novos
recipientes. Menos desperdício, mais solidez. À semelhança dos outros filmes dos Dardenne, O Silêncio de Lorna
possui uma agitação, uma ebulição interna
dos personagens e da narrativa. Essa agitação, contudo,
é balanceada por algumas brisas calmas, como se a personagem
ganhasse uma pausa para pensar. O momento de fusão é a
seqüência final, quando Lorna foge para uma cabana no meio
da floresta. Ela catando galhos
secos no chão remete à cena com
os personagens de O Filho guardando a madeira no
final: a repetição
mecânica dos gestos retoma o filme de onde ele havia sido interrompido e afirma
que o presente está se reconstruindo ali mesmo, naquelas ações empilhadas sobre o tempo. A falsa gravidez
de Lorna é o último e mais potente subterfúgio: ela precisa
inventar dentro dela uma outra
vida, como condição para preservar a sua. Desfecho que, como estrutura de
fábula e como
proposição moral, expõe os
irmãos Dardenne em sua inexorável
tendência a um
auto-esgotamento. Mas é o final mais coerente e, por incrível que pareça, menos
apelativo que eles já
filmaram até agora, com uma positividade menos disfarçada de mensagem aos bons
de coração e com um olhar mais fiel à
situação da personagem.
Luiz Carlos Oliveira Jr.
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