Horas de Verão traz uma
história já conhecida: a matriarca de uma
família morre e os filhos se reúnem para discutir
heranças, patrimônio, posses,
todas as partilhas materiais e, sobretudo, afetivas que a
ocasião obriga.
Olivier Assayas dá novamente vazão a seu gosto
pelo novelesco e pelo melodrama
familiar, agora em linhas até mais claras que em Fim
de Agosto, Começo de
Setembro e Os Destinos Sentimentais. Mas,
como já ocorria nesses
outros filmes, o tom não segue a verve
melodramática que poderia se esperar das
premissas do enredo. A narrativa é flat,
o uso da música é pontual, as disputas de poder são
mínimas, a cena debaixo da
chuva não representa o mundo desabando sobre os personagens
(os dois irmãos
apenas se despedem após um café e uma conversa,
uma das melhores cenas do
filme), a emoção é mais um produto em
meio a outros que circulam, acontecem e
passam – ou seja, a emoção
não é um acúmulo de tudo que
não se pode conter e
que, em algum momento, teria de explodir. Em foco privilegiado, temos
aquilo
que, de uns tempos para cá, se confirma como a grande
preocupação e o grande
arcabouço temático-estético da obra de
Assayas: a herança e a transmissão. O
que fica de uma geração para outra? Como se
dá a passagem dos signos, dos
valores e das memórias de uma época para outra? E
de um espaço para outro? Por
exemplo: se um objeto passa da sala de estar para o museu, muda de
estatuto.
Esse processo de transferência é o que a
câmera de Assayas quer apreender em Horas de Verão. Sua mise en scène
se define pelo movimento de mudança em
si.
O filme leva isso adiante
e a fundo, a ponto de uma
reflexão sobre a procedência, o preço e
a qualidade de um conjunto de objetos
de arte se confundir à própria
problemática da forma. As pinturas, os artefatos
de luxo e os móveis art déco
que estavam na casa, situada em região
pictoricamente bucólica, são vendidos ao Museu
d’Orsay depois que morre a
matriarca. Se, por um lado, as pinturas sempre se valeram pela
expressão
artística, os vasos e os móveis, por outro, devem
percorrer o trajeto
necessário para que um utensílio
doméstico se torne peça de museu, ou seja,
exista exclusivamente por seu valor estético. É
uma questão basal da
modernidade, já depositada sobre as porcelanas de Os
Destinos Sentimentais,
e que Assayas expõe de novo, dando menos
atenção à reflexão
teórica do que às
implicações sentimentais. Por isso a cena que
melhor resume o filme é aquela de
Charles Berling e Dominique Reymond passeando pelo museu e vendo os
objetos da
casa expostos; os personagens que mais estavam perturbados por se
desfazerem de
tudo aquilo se acham enfim em harmonia com o presente dos
acontecimentos. A
cena comporta também a beleza singela de ver Assayas
tentando encontrar um
equilíbrio interno em seu cinema, equilíbrio que
se manifesta sobretudo no tom.
A seqüência final, contudo, por vezes soa como a
versão esmaecida de algo que
em Água Fria era muito melhor. Mas
é o epílogo compreensível e
necessário, o momento em que o filme une as pontas do
passado e do futuro
através da pura vibração do presente.
Uma hipótese
razoável sobre Assayas é que ele representaria
hoje um cruzamento improvável do cinema francês de
bom gosto, de uma arte de
boa etiqueta, com um ecletismo – manifesto num olhar
não-impositivo (Assayas se
caracteriza, em geral, menos por efeitos de assinatura do que por um
diálogo incessante com suas referências e,
principalmente, por uma
sensibilidade a certos momentos da narrativa e dos atores) –
que vai desde a
exaltação do flutuante e do efêmero,
que lhe chega principalmente através de Hou
Hsiao-hsien, até o intermundo da droga, do
ciberespaço, dos novos regimes de
imagem, das farsas corporativas etc. Horas
de Verão fala
bastante sobre o próprio cinema de Assayas, que transita de maneira
inquieta pela esfera de interseção entre a preservação de uma França
aristocrática e erudita e o tropismo pela Ásia, pela América, pela
autodiluição no espaço global. O filme representa o mais límpido ponto
de encontro das duas linhas de força de Assayas até agora,
conseguindo esclarecer as fragilidades e, no mais das vezes, as
virtudes de
seu cinema.
Luiz Carlos Oliveira Jr.
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