HORAS DE VERÃO
Olivier Assayas, L’Heure d’Été, França, 2008

Horas de Verão traz uma história já conhecida: a matriarca de uma família morre e os filhos se reúnem para discutir heranças, patrimônio, posses, todas as partilhas materiais e, sobretudo, afetivas que a ocasião obriga. Olivier Assayas dá novamente vazão a seu gosto pelo novelesco e pelo melodrama familiar, agora em linhas até mais claras que em Fim de Agosto, Começo de Setembro e Os Destinos Sentimentais. Mas, como já ocorria nesses outros filmes, o tom não segue a verve melodramática que poderia se esperar das premissas do enredo. A narrativa é flat, o uso da música é pontual, as disputas de poder são mínimas, a cena debaixo da chuva não representa o mundo desabando sobre os personagens (os dois irmãos apenas se despedem após um café e uma conversa, uma das melhores cenas do filme), a emoção é mais um produto em meio a outros que circulam, acontecem e passam – ou seja, a emoção não é um acúmulo de tudo que não se pode conter e que, em algum momento, teria de explodir. Em foco privilegiado, temos aquilo que, de uns tempos para cá, se confirma como a grande preocupação e o grande arcabouço temático-estético da obra de Assayas: a herança e a transmissão. O que fica de uma geração para outra? Como se dá a passagem dos signos, dos valores e das memórias de uma época para outra? E de um espaço para outro? Por exemplo: se um objeto passa da sala de estar para o museu, muda de estatuto. Esse processo de transferência é o que a câmera de Assayas quer apreender em Horas de Verão. Sua mise en scène se define pelo movimento de mudança em si.

O filme leva isso adiante e a fundo, a ponto de uma reflexão sobre a procedência, o preço e a qualidade de um conjunto de objetos de arte se confundir à própria problemática da forma. As pinturas, os artefatos de luxo e os móveis art déco que estavam na casa, situada em região pictoricamente bucólica, são vendidos ao Museu d’Orsay depois que morre a matriarca. Se, por um lado, as pinturas sempre se valeram pela expressão artística, os vasos e os móveis, por outro, devem percorrer o trajeto necessário para que um utensílio doméstico se torne peça de museu, ou seja, exista exclusivamente por seu valor estético. É uma questão basal da modernidade, já depositada sobre as porcelanas de Os Destinos Sentimentais, e que Assayas expõe de novo, dando menos atenção à reflexão teórica do que às implicações sentimentais. Por isso a cena que melhor resume o filme é aquela de Charles Berling e Dominique Reymond passeando pelo museu e vendo os objetos da casa expostos; os personagens que mais estavam perturbados por se desfazerem de tudo aquilo se acham enfim em harmonia com o presente dos acontecimentos. A cena comporta também a beleza singela de ver Assayas tentando encontrar um equilíbrio interno em seu cinema, equilíbrio que se manifesta sobretudo no tom. A seqüência final, contudo, por vezes soa como a versão esmaecida de algo que em Água Fria era muito melhor. Mas é o epílogo compreensível e necessário, o momento em que o filme une as pontas do passado e do futuro através da pura vibração do presente.

Uma hipótese razoável sobre Assayas é que ele representaria hoje um cruzamento improvável do cinema francês de bom gosto, de uma arte de boa etiqueta, com um ecletismo – manifesto num olhar não-impositivo (Assayas se caracteriza, em geral, menos por efeitos de assinatura do que por um diálogo incessante com suas referências e, principalmente, por uma sensibilidade a certos momentos da narrativa e dos atores) – que vai desde a exaltação do flutuante e do efêmero, que lhe chega principalmente através de Hou Hsiao-hsien, até o intermundo da droga, do ciberespaço, dos novos regimes de imagem, das farsas corporativas etc. Horas de Verão fala bastante sobre o próprio cinema de Assayas, que transita de maneira inquieta pela esfera de interseção entre a preservação de uma França aristocrática e erudita e o tropismo pela Ásia, pela América, pela autodiluição no espaço global. O filme representa o mais límpido ponto de encontro das duas linhas de força de Assayas até agora, conseguindo esclarecer as fragilidades e, no mais das vezes, as virtudes de seu cinema.

Luiz Carlos Oliveira Jr.