O que é essa zona limítrofe a que Philippe Garrel
nos conduz, a “fronteira da
alvorada”? É mais um de seus títulos
poéticos e inspirados, mas é também um
endereço, o nome de um país
imaginário onde a faixa de divisão da luz e das
emoções se torna via obrigatória, o
único caminho possível para se fazer um
filme. Garrel é um cineasta que estabelece na fronteira sua
capital. De tão
elementar que é o processo, um filme como A
Fronteira da Alvorada nos
obriga a ser fiel a seus meios expressivos primeiros e não
falar senão da luz,
do quadro, do som, do corte, da duração e de tudo
mais que for evidência e não
apenas indício. O zoom que chega no rosto da atriz quando
sua personagem decide
que não quer fazer as fotos naquele dia, o plano de um rapaz
atormentado pela
atenção exclusiva que a namorada concede a um
outro homem na profundidade de
campo (a mise en scène do
ciúme, voilà), o corpo
feminino se
contorcendo em uma dor irremediável que evoca
simultaneamente o parto, o
esforço e a morte e lembra uma cena de Je Vous
Salue, Marie, os diálogos
que variam de frases passageiras provocadas por encontros casuais a
fantásticas
teorias sobre o amor são algumas das cenas de A
Fronteira da Alvorada
que trazem todo o peso que podemos esperar de Garrel.
A fotografia segue o mesmo preto-e-branco áspero de Amantes
Constantes. O
som traz a primeiro plano a respiração entre uma
frase e outra, os soluços, os
pigarros, a mumunha, o dedo arrastando no tecido, a bebida descendo
pela
garganta, toda uma galáxia de micro-eventos sonoros que
tornam o mundo visível
mais real, sólido e complexo. A montagem de Yann Dedet (seu
currículo, para
resumir a importância, inclui os filmes de Pialat de Loulou
em diante –
além, é claro, de alguns dos melhores filmes do
próprio Garrel, como O
Nascimento do Amor e J’entends plus la
guitare) é das poucas que
podem ainda ser sentidas, para usar a prodigiosa metáfora de
Godard, como um
“batimento do coração”, um
instrumento emocional indispensável cuja
função não
é organizar – ou seja, não é
reiterar a noção canônica da montagem
como etapa
geradora de sentido, raccord, sutura – a
matéria tão lírica quanto
rudimentar da mise en scène, mas bombear
vida no corpo do filme,
respeitar a força do fragmento e, ao mesmo tempo, afirmar a
unidade do ponto de
vista sobre aquele mundo.
E o mundo de Garrel é habitado por pessoas que ainda vivem e
morrem por amor.
Ele filma nas ruínas do romantismo, do outro lado da
fronteira que separa os
homens de suas utopias, em cenários destinados somente ao
primeiro e ao último
ato. Os homens nunca estão maduros para o amor, ou
então já passaram do ponto.
As mulheres são o que são, e por isso mesmo
ocupam o centro do universo. As
forças de atração são
diretamente proporcionais às de fuga: lei do
coração que
se submete ao experimento e se mostra irrevogável na mise
en scène (e na
montagem como sua continuação lógica).
Ter ou não ter um filho, estar perto ou
não de outrem: as questões afetivas fundamentais
são aquelas que melhor
estruturam o cinema de Garrel, culminando no dilema existencial
último, viver
ou não viver. Não fosse pelo choque do plano
final, talvez um pouco dissonante
(mas A Fronteira da Alvorada é dos
raros filmes que nos fazem admirar
justamente a renúncia ao equilíbrio e
à perfeição em prol de algo que o
cineasta julga essencial), a cena do suicídio de
François (Louis Garrel) seria
equivalente à forma como Mizoguchi encenava a morte, tamanha
a serenidade dos
planos (sobretudo o da janela aberta). Elogio maior não
poderia existir.
Luiz Carlos Oliveira Jr.
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