Deixa Ela Entrar é um filme
pautado pelo binômio aceitação-rejeição. Se o vampiro é um outro da humanidade,
que rasteja pelas sombras, que deve mover-se subrepticiamente ali onde nossa
visão é precária, seu eventual pacto com o homem deve se dar nas franjas da sociedade.
Neste sentido, a aproximação de Eli a Oskar é a aproximação entre dois párias.
A aceitação do diferente só pode se dar de forma completa por um também
diferente. E este afastamento de uma coletividade instituída constitui menos um
embate com o entorno do que um embate consigo mesmo. Trata-se de um problema de
sangue. Aquele com sangue ruim deve deixar os seus.
Oskar interessa-se espontaneamente
por assassinatos e evidências escabrosas de gestos humanos no limite da
humanidade. Sua alienação escolar talvez seja, portanto, mais derivada de seus
impulsos interiores do que do bullying de que é vítima. Impulsos que se
traduzem na capacidade de performar um ato violento de pura intensidade.
Diferentemente da covardia de seus colegas, que armam-se em grupo e utilizam-se
de subterfúgios para intimidá-lo, Oskar é capaz de gestos estritamente aniquiladores.
Gestos que o tornam hábil a ser o sucessor do “pai” de Eli e provê-la dali em
diante.
A vampira, por sua vez, é regida por
suas necessidades vitais, que mal consegue administrar. Seu esforço consiste em
sublimar sua condição: não expandir sua raça (ela mata suas vítimas para que
não dêem origem a novos vampiros) e ser capaz de desenvolver uma convivência afetiva
com um humano, transcendendo suas próprias limitações. Ovelha desgarrada, Eli sente
a dor da morte e o peso de seu destino. Destino-fardo: de ter que exterminar
para continuar viva, de ter que viver para sempre, de ter que encontrar alguém
para amar e, ao mesmo tempo, condená-lo a uma vida subserviente e criminosa.
A busca por uma moralidade
impossível atravessa Deixa Ela Entrar. A aquiescência de um “mal necessário”
paira por sobre a inevitabilidade de se fazerem escolhas. A justiça, que
deveria estar do lado da vida, passa a obedecer a desígnios subterrâneos. Plano
a plano, a narrativa nos enreda numa lógica inelutável, em que os parâmetros
externos encontram-se em suspensão. Se há beleza no relacionamento
pré-adolescente dos dois personagens, ou se há fragilidade e ingenuidade em sua
delicadeza infantil, é na medida em que a origem do afeto em questão afina-se
com uma brutalidade milenar que corre nos interstícios da sociedade.
O homem montou cidades e governos
para controlar a selvageria que poderia ameaçar sua soberania; mas no momento
em que a selvageria encontra caminhos seguros nos quais circular, os caminhos
de uma soberania da ordem perfeita e excludente, torna-se preciso reencontrar o
“bom” gesto violento. Ao trabalhar uma tradição de gênero por vias
absolutamente singulares, Tomas Alfredson afronta uma organização social
inabalável e um cinema equilibrado com uma violência “justa” e “grosseira”. Ao
fim, resta o gosto ruim na boca, a amargura de ser um eterno fugitivo,
esgueirando-se pelas áreas de penumbra, condenado a lutar por um espaço a
habitar.
Tatiana Monassa
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