O
cinema de Albert Serra é uma busca do simples. De um simples, no
entanto, tão diante de nós que temos dificuldade em
dirigir nossos olhares e reconhecer. Os três reis magos de O Canto dos Pássaros,
bonachões passeando pela areia, pela montanha, deslizando na
relva, não cansam de dizer como o céu é belo, como
a paisagem é magnífica, como as coisas mostram sua
beleza. É claro que não basta simplesmente mostrar essas
coisas, rodar planos descritivos, para que a beleza apareça. Ao
menos, não a beleza buscada por Albert Serra. É preciso
uma acuidade no olhar, é preciso a instalação num
tempo, é preciso harmonizar o diafragma para capturar uma luz
que seja extremamente delicada, chamativa, certamente, porque a
beleza não se esconde, mas sem o contraste e a imponência
habitual no filmar-se a natureza. Os largos espaços de
paisagem aparecem como espaços íntimos, que podem
causar cansaço ou espanto aos viajantes, mas se apresentam como
caminhos "naturais", aos quais os três reis acedem como
pertencendo a eles.. Eles andam pela paisagem descampada como os
personagens de Francisco, Arauto de Deus, como seres da terra, exprimindo a liberdade e a leveza de existir nela.
A graciosidade de O Canto dos Pássaros,
no entanto, não é simples. Ela se organiza ao menos em
duas chaves, não contraditórias, mas ao menos
difíceis de equilibrar com talento. A primeira, mais disseminada
na obra - até e principalmente pela temática - mas menos
visível no despojamento das imagens, é a religiosidade.
Religiosidade da terra, de Rossellini, de Straub, de fixar o olho da
câmera na terra talvez sem mesmo saber ao certo por quê, e
esperar que ela entregue alguma coisa, mesmo não entregando.
Aqui ela existe pela contenção dos elementos, pela
subtração do desnecessário e pela
concreção do que está enquadrado. Como em pintores
com La Tour ou cineastas como Bresson, o religioso surge pelo casto
contorno das formas e pela relação entre presença
e ausência, violenta em termos conceituais mas muito suave em
termos sensíveis (é um filme que se vê como
música). A segunda chave é humorística, pois
além de emissores do sagrado, os três reis são
também figuras estabanadas, em conflitos com seus corpos.
Albert Serra se diverte loucamente enquadrando-os em tela inteira, em tableaux
vistosos em que os corpos e as conversas parecem forçosamente
desajeitados. Um vem à mente em especial, em que os três
reis estão deitados na relva e queixam-se da proximidade entre
eles. A disposição dos corpos diante da tela faz surgir
um humor fino e singelo.
Depois
de acompanhar por um bom tempo o catalão falado dos reis magos,
passamos ao hebraico de um pastor com sua mulher, filho e cabrito. A
estratégia de câmera, luz, ritmo é a mesma. Mas ao
contrário dos reis, os camponeses não estão em
movimento. Ficam parados fazendo atividades corriqueiras ou observando
a natureza mudar. O tempo passa, chegam os reis. Único momento
de música, a tradicional "Cant dels ocells" interpretada por Pau
(Pablo) Casals. O momento se instaura, reverente e ameno como as outras
imagens, mas investido de um maior grau de sagrado. Grau que, no
entanto, vai embora assim como apareceu: em seguida vemos os reis tomando banho ou empreendendo
o caminho de volta. Mesma sensação meio pirandelliana,
meio beckettiana, de personagens vagando por uma história vaga,
em passo minimalista, que vimos já em Honra de Cavalaria. Mas O Canto dos Pàssaros
é um filme com mais respiro, maior graça (em ambos os
sentidos comuns ao termo), e certamente com melhor
utilização do som, aqui levando às últimas
conseqüências a subtração e fazendo com que
alguns poucos sons escolhidos quebrem o silêncio reinante e
venham nos comover por sua eufonia incidental. Associado ao preto
e branco da imagem, o trabalho de som de O Canto dos Pássaros
inscreve o filme num registro de encenação incomum, um
mundo mitológico construído não pela
metáfora mas pela unicidade com que tudo nos é
apresentado. O plano estendido, em voga no circuito dos filmes de arte,
soa aqui absolutamente harmonioso com o projeto e com a necessidade de
instalação do olhar. Albert Serra já era um
cineasta ao qual se devia prestar atenção; aos poucos,
vai se encaminhando para participar do primeiro time.
Ruy Gardnier
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