Versalhes é um desses filmes que segue
desestabilizando e redefinindo, a cada novo movimento narrativo, o próprio
entendimento que temos sobre ele. Durante a primeira meia-hora de projeção,
acreditamos estar potencialmente vendo um filme sobre Nina, uma moradora de rua
de Paris que, ao lado de seu filho Enzo, passa os dias vivendo da maneira que
dá, contando intermitentemente com o apoio do serviço de assistência social
francês. A importância de Enzo para o filme, no início, parece ligada ao fato
de que é ele o único motivo para que Nina siga se esforçando para sobreviver
tão miseravelmente. É com uma delicadeza quase sem paralelos que Pierre
Schöller filma e constrói essa relação entre mãe e filho, em especial nas cenas
recorrentes em que Nina e Enzo se deitam para dormir – a câmera permanece
filmando na penumbra, num registro de imagem abaixo do limite do visível, e
ouvimos a voz do menino dizer “Mão.”. A imagem que se segue, das mãos que se
apertam no escuro, jamais fica evidente na tela, mas é uma das coisas mais
belas de Versalhes.
Aos poucos, Enzo vai ganhando importância diante da câmera, que,
desde o início moralmente comprometida com este personagem, o enquadra sempre
frontalmente e de acordo com sua altura, jamais em plongée. É quando ele
se perde momentaneamente de sua mãe em um bosque em Versalhes e encontra Damien,
um homem que vive proscrito da sociedade, que o filme passa por sua primeira
grande mudança. Nina passa a noite com esse homem e foge na manhã seguinte,
deixando Enzo aos seus cuidados. No momento em que Nina abandona seu filho, ela também se despede do filme. Aqui se torna claro que Enzo é o
protagonista de Versalhes, e por mais que uma ou outra seqüência tente
recuperar o sentimento do primeiro ato, incluindo o final um tanto desajeitado,
não é mais tanto a relação entre Nina e Enzo que está em questão, mas sim a
relação de Enzo com o mundo. Todas as demais presenças e estados são
transitórios e fluidos, e a única instância permanente é o olhar de Enzo sobre
elas.
O menino passa a viver com Damien em sua cabana, em meio a
uma pequena comunidade de homens que, como este último, escolheram isolar-se
nesse bosque nas redondezas de Versalhes, alheios a qualquer instituição ou
instância de regulação social. As imagens registradas desse universo têm a
força de um ineditismo, e ao mesmo tempo de uma ancestralidade, que é difícil
não pensar o quão conflitantes são com o próprio fazer cinematográfico, uma
forma de registro tão rigorosa, hierarquizada e tecnológica, tão essencialmente
vinculada a uma lógica social de produção e exibição. É imerso nesse universo
“ancestral” que Enzo passa a desenvolver sua própria visão de mundo, e quando
Damien decide, após quase morrer por uma doença, retornar do exílio para dar a
ele um futuro melhor, o confronto do menino com a sociedade, que se impõe
imediatamente com suas regras e leis que tão pouco sentido fazem àqueles que
estão em posição de estranhá-las, passa a ser a questão central de Versalhes.
Enzo prefere a cabana improvisada à confortável casa do pai de Damien. Não quer
ir à escola e, uma vez lá, se sente distante de seus colegas. Até que, sem
qualquer justificativa por parte do filme, ele é mais uma vez abandonado, desta
vez por Damien.
À exceção de Enzo, Versalhes nunca parece saber ao
certo o que fazer com seus personagens. Nina deixa de existir logo no início,
mas retorna em momentos inesperados, já sem a mesma força. O mesmo ocorre com
Damien, que em boa parte da película parece ser um personagem tão central
quanto Enzo, mas que de repente desaparece sem explicação. A ausência de
controle, no entanto, por mais que possa fazer o filme cambalear em
determinados momentos, não contraria (ao contrário, apenas reforça) o
comprometimento que este tem com seu protagonista, e esta relação, inerente à
maneira como Pierre Schöller aponta sua câmera para o pequeno Enzo, fica talvez
entre as coisas mais bonitas vistas até aqui nesse Festival.
Alice Furtado
|