Ao
invés da frugal música de acompanhamento
à qual já estávamos habituados
em seus filmes, ouvimos sons da sétima sinfonia
de Beethoven no início de Noite e Dia.
Grandiloqüência de Hong Sang-Soo? Guinada
do discurso menor constante em seus filmes
a vida filtrada pelo cotidiano, pelos encontros fortuitos,
pela graça e leveza subjacentes a cada situação
inusitada ou desajeitada para uma dramaticidade
maior, aquela que ele abandonou desde o final
de seu primeiro filme, O Dia em Que o Porco Caiu
no Poço? Nada disso. Ou melhor, digamos que
em Hong Sang-Soo a partilha entre menor e maior nunca
foi uma escolha absoluta por um deles, mas acima de
tudo uma maneira de tratar o maior em modo menor, e
vice-versa. O que aliás equivale na partilha
de gêneros em seus filmes: a comédia jamais
esconde uma problemática dramática muito
ampla (e isso é coisa que só se pode dizer
de dois ou três gênios do cinema, Lubitsch,
Eustache, Chaplin) e o drama jamais se leva tão
a sério a ponto de fazer esquecer que, de fato,
tudo é passageiro e não devemos atribuir
tanta importância às nossas idéias
fixas, às nossas preocupações,
a tudo que nos tortura a cabeça. Se o drama,
por um lado, solidifica os códigos, a comédia
decodifica e mostra o esqueleto. Daí a sensação
ambígua de ao mesmo tempo desnecessidade e reverência
com que saímos dos filmes de Hong: um mergulho
da alma às profundezas de alguma coisa (que jamais
sabemos bem definir) e uma volta à tona leve
e gentil, sem lição de moral, aprendizagem
ou constatação do trágico. Apenas
algumas braçadas, apenas alguns dias na vida
de algumas pessoas interessantes e um sentimento de
ciclo terminado, sempre provisoriamente.
Noite e Dia deixa a melodia singela por Beethoven,
deixa a Coréia do Sul pela França, deixa
os personagens que trabalham em cinema por pintores
e estudantes de artes plásticas, mas não
abandona em nada seus procedimentos costumeiros. Eles
voltam aqui com uma constância cativante: os reenquadramentos
com zoom in/out iniciados em Conto de Cinema,
as panorâmicas precisas (talvez jamais tão
precisas e investigativas quanto aqui), a forte caracterização
sentimental de seus personagens msaculinos obsessivos
e das mulheres que o rodeiam, o registro em modo cotidiano.
Aqui, é em forma de diário, narrado em
off pelo protagonista, Kim Sung-Nam, um pintor que foge
da Coréia para a França porque está
prestes a ser preso por ter fumado maconha. Sem planos,
dinheiro ou muitos conhecidos, ele vive em errância
passeando, encontrando com pessoas, comprando cigarros
e ligando para a esposa que ficou na Coréia.
Um personagem entregue a situações casuais,
ou seja, o perfeito personagem de Hong Sang-Soo. Naturalmente,
ele há de se encontrar com algumas mulheres,
dar atenção a algumas que não o
cativam e ser cativado por outras a quem ele não
da atenção: uma ex-namorada que ele não
reconhece mais, a amiga de um amigo com quem ele vai
no museu ver Courbet, uma estudante de artes linda e
interesseira, e por fim sua própria esposa. E,
claro, a partir desse restrito universo de personagens
ele vai tirar essas situações que tanto
nos surpreendem (pela meticulosidade, pela verdade,
pela delicada percepção das ambigüidades
do comportamento humano): dar a mão a um homem
para fazer ciúmes a uma outra, ficar atônito
diante de um corpo feminino dormindo e beijar-lhe o
pé, fazer um comentário corriqueiro e
levá-lo às últimas conseqüências
por puro orgulho e bebedeira, passar a querer ficar
com alguém que até então era repelido
sistematicamente, as múltiplas e pequenas perfídias
e mentiras, as causalidades falhadas e as presunções
equivocadas com que vivemos diariamente no convívio
com os outros.
Esses outros, no entanto, não são necessariamente
o inferno. Se, por um lado, a comunicação
entre os seres é impossível TODO
o cinema de Hong Sang-Soo se faz nos déficits
de comunicação, informação
e poder entre os personagens , ela é ao
mesmo tempo o inevitável, já que não
resta opção além de viver entre
os outros (excetuando os personagens de Cao Guimarães).
Tampouco paraíso, o mundo de Hong é bem
um purgatório encarado como parque de diversões.
Daí a necessidade do espelhamento, em Noite
e Dia tão fragmentado e fugindo dos binômios
costumeiros (apesar, ironicamente, do título):
duas vezes visita ao museu (com quadros diferentes),
duas vezes o mesmo trabalho de arte, duas vezes gravidez
(em ambos os casos, um é falso). Repetições
como reiterações de temas, de situações,
dos automatismos com que vivemos. Os espelhamentos e
as repetições, mais do que estratégias
narrativas, são para Hong instrumento para perspectivar
e analisar o comportamento humano, seu objetivo último
e bem mais precioso. Uma análise que, no entanto,
não se fecha numa clínica exasperante
como em Imamura, em Chabrol, em Fassbinder. Sua totalidade
não é fechada, é aberta, como a
fluidez de seus enquadramentos e a inscrição
que seus planos preferidos, os de conjunto, fazem dos
personagens no meio em que habitam (o plano conjunto,
aprendemos na escola, é aquele que dá
igual atenção ao homem e ao espaço
físico em que ele está, sem ênfase
maior na ação ou na descrição).
Em Noite e Dia, o tom de diário é a desculpa
preferida para uma narrativa que não precisa
se amarrar totalmente, que aliás lucra muito
em deixar alguns pontos sem nó e vários
personagens pelo caminho.
Se há uma novidade flagrante no cinema de Hong
Sang-Soo em Noite e Dia, é a utilização
do corpo de seu protagonista como objeto de comicidade.
O ator Kim Yeung-Ho representa um personagem que obviamente
é corpulento demais para suas incertezas, e de
reações lentas demais para os momentos
que vive. Essa pequena diferença já opera
algumas mudanças significativas, já que
sua vulnerabilidade às situações
com as mulheres não corresponde ao presumido
índice visual. O fato de que várias coisas
casuais se correspondem coincidências,
repetições torna ainda mais gritante
a dificuldade de correspondência entre os seres.
Mesmo quando um casal se forma em aparente igualdade
de sentimentos e uma estabilidade se cria, surge uma
ocorrência que obriga a um novo equilíbrio
no caso, um radical, a volta à Coréia
e à esposa legítima. Fato curioso, Hong
Sang-Soo é talvez o cineasta de toda a história
do cinema que filma mais o cotidiano como cotidiano
(com seus acasos, gestos de circunstância, coincidências),
e no entanto ele por vezes se parece com uma história
de ficção científica ou uma obra
surrealista: um porco que bate na janela da casa de
banhos, um passarinho que voa direto no corpo do personagem,
um prendedor de cabelo encontrado num degrau de uma
escada. Todos objetos ou situações aos
quais podemos atribuir uma complicada simbologia. Ou,
ao contrário, considerá-los como figuras
vagas, de sentido volátil, aparecidas com seu
quê de gratuidade, e que no fundo refletem simples
observações de um cinema que celebra a
vida através de suas virtualidades abertas e
testemunha que, a despeito das óbvias limitações
de percepção, conhecimento, comportamento
e comunicação que temos, tudo existe e
ainda consegue compreender. Noite e Dia, como
toda a carreira de seu autor, concilia laconismo e eloqüência
de modo fascinante.
Ruy Gardnier
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