Tantas
maneiras de descartar Minha Mágica: simplicidade
demasiada da narrativa, imagem sem beleza, show de horrores
nas performances extremas do ator (que atende por seu
nome real no filme) e também na construção
dramática do personagem, que bebe até
cair, se vomita todo etc. E o fato de haver feito anteriormente
Fica Comigo, misturando singeleza pré-fabricada
com malandragens de roteiro pós-modernas (estilo
multiplot com encontros "surpreendentes" de
histórias), não ajuda em nada.
Ainda assim, Minha Mágica não se
deixa definir com facilidade. É um filme extremamente
frontal, a ponto mesmo de tornar sua simplicidade em
algo constrangedor para o espectador (o que, de certa
forma, está às antípodas de um
certo cinema de autor blasé e poseur
reinante no mundo, Lisandro Alonso que o diga).
O filme acompanha a vida de um pai e um filho, ele garçom
e servente num clube noturno elegante e o filho estudante.
O pai, homem corpulento, alto, gordo, de cabelos grandes
aflitivos, é uma imagem em paradoxo: sem sentimentos,
bebe dose atrás de dose, fica agressivo, mas
ao mesmo tempo é capaz de mostrar uma desbragada
vulnerabilidade quando faz ligações aos
prantos para a mulher que o abandonou ou quando mostra
seu servilismo ao gerente que o contrata. E, no entanto,
dele sai mágica: fogos, cartas, moedas, tudo
some e reaparece nas mãos dele. Mas o filme não
constrói nenhuma figura encantada e cafona aos
moldes de tantos filmes toscos que usam o circo como
metáfora da pureza e da beleza (O Toque do
Oboé vem por acaso à mente). Sua mágica
não o redime, não o coloca num plano de
transcendência: ele permanece um homem destruído,
perdedor, capaz tanto de fazer desaparecer e reaparecer
objetos de forma delicada quanto de mastigar vidro,
engolir fogo, ser espancado, andar e deitar sobre superfícies
cortantes etc. Uns bons 3/5 fo filme, aliás,
evoluem por provas cada vez mais difíceis do
corpo humano suportar (e do espectador tolerar o espetáculo
real desse mondo cane).
Mas, do outro lado da cadeia, existe a relação
com o filho. Inicialmente, de repulsa: ao ver o pai
jogado no chão e ter que limpar seu vômito,
é pela obstinação em ser outra
pessoa, em se desfazer da linhagem, que Minha Mágica
estabelece o personagem do menino. E, apesar de fácil,
é de aguda beleza ver o processo de compreensão,
por parte do menino, da arte perdida do pai, que vai
aos poucos ensinando sua mágica e que vira o
diferencial do menino em seu colégio (ao invés
de apanhar ou fazer os deveres de casa dos outros, ele
passa a impressionar seus colegas com as mágicas
aprendidas do pai). Daí o dilema, que o filme
sabiamente não resolve: de um lado, espetáculo
extremo da decadência e dos sentimentos violentos;
do outro, o sentimentalismo do drama familiar. Tudo
sem o menor comedimento, sem notas intermediárias.
Da tensão entre esses humores contrastantes,
nasce o charme do filme.
Um charme que atinge a condição de real
beleza no fim, quando uma fotografia montada
faz surgir na imaginação do filho
um passado ao qual ele não teve acesso: pai e
mãe, juntos, fazendo espetáculos de mágica
cheios de pompa, vestidos adequadamente para o grande
espetáculo, ostentando juventude e vigor. Essa
seqüência, a última, esconde outra,
a do futuro do menino órfão, que o filme
naturalmente não mostra e dá apenas a
nós, encantados pelas cores das cortinas vermelhas
que se fecham ao fim, para imaginar. A tensão
entre sutil e duro, belo e feio, persiste agora não
mais no corpo do pai, mas no futuro do filho entre um
passado mitológico e um presente sem possibilidades.
Fazer brotar a ingenuidade dessa forma, fazer surgir
o cândido a partir do vermelho do sangue e do
escuro da sujeira, é algo digno do maior respeito
possível. Fazer viver de modo frontal dois códigos
cinematográficos opostos (e que possivelmente
fazem metáfora com o próprio fazer cinematográfico,
arte, beleza, comércio, exploração
sem no entanto entrar em modo discursivo) é
o que faz de Minha Mágica um filme notável.
Ruy Gardnier
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