Kitano
em modo auto-reflexivo? Isso, de certa forma, já
não é novo há algum tempo, quando
depois de Hana Bi Fogos de Artifício,
uma obra-prima absoluta do cinema e a definitiva lapidação
de tudo aquilo que ele vinha construindo, ele decidiu
variar o registro e passar por diferentes gêneros
do cinema e, ao contrário de buscar um lento
aprimoramento, parece desejar esfacelar sua identidade
de cineasta junto com sua imagem de bronco melancólico.
Esse desejo de auto-esfacelamento produziu um de seus
mais belos filmes, Dolls, mas também fez
nascer alguns títulos que, ausentes de sua filmografia,
não ocasionariam grandes perdas (Zatoichi,
Kikujiro, ainda que nenhum desses seja exatamente
dispensável). Takeshis', não exibido
no Brasil nem em mostras nem em lançamento comercial,
inaugura um processo de radicalização
do qual Glória ao Cineasta é a
continuação: auto-referência, fragmentação,
inconstância levados ao extremo da gaiatice e
do niilismo sorvete na testa. Trata-se de um filme sobre
falta de inspiração, falta de rumo a seguir,
mas acima de tudo sobre a busca da liberdade dentro
de um esquema pré-formatado de criação
de expectativas acerca de uma carreira. Há inúmeras
maneiras de tratar do tema, da angústia à
auto-análise, do delírio ao miserabilismo
existencial. Kitano, sendo quem é, escolheu a
galhofa.
As imagens iniciais já dizem tudo. Ou melhor,
não dizem nada. Temos, na verdade, um colosso
de opacidade, a figura de um boneco fantasiado de Kitano,
um dublê, que entra num túnel de aparelho
de ressonância magnética. Passa por testes
e ao final do exame o médico recomenda: é
melhor que da próxima vez ele venha em pessoa.
Esse humor lacônico, cruel em sua pouca chance
para retórica, encanta e dá charme. Glória
ao Cineasta se constrói um pouco como a notável
cena de Hana-Bi em que o protagonista, Takeshi
toujours, finge que vai devolver a bola de baseball
aos jovens que estão jogando mas acaba atirando-a
lateralmente para uma outra rua. E o plano dura mais
alguns segundos, apenas para realçar o humor
grave da situação. Glória ao
Cineasta é a transformação
disso em esquetes, ora mais engraçados, ora menos
irregularidade constitituva da obra obriga ,
mas o tempo inteiro rodeados de um vazio que deixa o
humor com um gosto rasgante.
Assim, o filme se desenvolve como uma série de
idéias dispersas para filmes que nunca serão
realizados, pelos motivos mais estapafúrdios
(incapacidade para lidar com as regras do gênero,
falta de presumido interesse do público, ineficiência
do tipo físico de Kitano para o papel, roteirista
que não escreveu o final do roteiro, etc.). Isso
corresponde à primeira parte do filme. Na segunda,
uma narrativa mais fixa se estabelece, os personagens
parece ter seu espaço e tempo na trama, a própria
trama parece adquirir consistência, até
que Kitano novamente faça a brincadeira de prestidigitador
insano, pronto a implodir tudo novamente. O que espanta
em Glória ao Cineasta é essa agressividade
latente que sempre povoa seus filmes, geralmente na
visão de mundo do protagonista, aqui ser levada
ao próprio nível da tentativa da narrativa
em existir, nesse desejo constante de auto-implosão
de sua imagem visual e da "imagem" de seus
filmes o que, de certa forma, equivale aos suicídios
constantes dos personagens de sua obra.
Porém, em todo caso, podemos por instantes esquecer
parcialmente essa vertente mórbida e nos deleitar
com alguns dos mais belos momentos de humor rítmico
do cinema recente. "Humor rítmico",
termo estranho, mas que parece ser o mais apropriado
para chamar a atenção de como a montagem
(co-assinada pelo próprio Kitano, como de costume)
cria certos efeitos de humor pela simples persistência
de um plano ou por um corte na hora certa. E, em se
tratando de um projeto como Glória ao Cineasta,
selvagem por natureza e desgarrado por corolário,
o poder rítmico da montagem atinge a graça
na primeira parte do filme, rompendo bruscamente de
uma situação para outra, algumas ainda
com o amparo de um narrador, algumas de forma totalmente
treslocada e imprevisível. Já na segunda
parte, à medida que o filme vai se cristalizando
de forma mais definida, o ritmo se atenua e os momentos
de insanidade como um enorme falo de plástico
sendo empunhado com a imagem em câmera rápida
ou um jato espacial , ainda que hilários
por vezes, ficam sacrificados pela diminuição
da velocidade e da anarquia da construção.
Os limites de Glória ao Cineasta, no entanto,
são bem determináveis. De um lado, é
a faceta um tanto próxima aos filmes de paródia
do estilo Todo Mundo em Pânico (ainda que
renda uma zoação merecida ao cinema recente
de Zhang Yimou); de outro, é o próprio
desgaste do modelo auto-reflexivo hiperconsciente do
processo, uma vez que muitos decidem uma hora ou outra
prestar seu tributo a Fellini e seu Oito e Meio.
Só que esses limites não impedem que Takeshi
Kitano desenvolva uma verve humorística que ele
sempre teve, e que a aplique com a precisão de
um mestre em período de férias criativas:
cara-de-pau, elegante, autista, infame, Kitano pode
talvez nunca mais encontrar um nicho de cinema para
apoderar-se e levar à perfeição,
mas mesmo que não o faça, tudo ok para
nós, porque até sua busca é apaixonante.
Ruy Gardnier
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