NA CIDADE DE SYLVIA
José Luis Guerín, En la ciudad de Sylvia, Espanha/França, 2007

Cherchez la Femme

Na Cidade de Sylvia é a história de um labirinto e de um enigma; das ruas de Estrasburgo e dos rostos femininos captados pela câmera de José Luis Guerín. Sobre uma âncora dramatúrgica mínima (homem retorna a Estrasburgo tentando reencontrar uma mulher que ele conheceu lá seis anos antes), Guerín nos reensina a ver. Nosso homem sem nome (Xavier Lafitte) trafega pelas ruas de Estrasburgo em busca de um rosto. Porém, mais que tudo, ele olha. Sylvie está em todos os lugares e ao mesmo tempo em lugar nenhum, em todos os belos rostos de mulheres que nosso protagonista encontra (são belas as seqüências em que ele faz esboços de rostos femininos em seu cadernos, esboços sempre incompletos, vagos, assombrados por um rosto que ilude o olhar).  Já no filme anterior de Guerín, En construcción, no meio de uma construção num bairro pobre de Barcelona era descoberto um cemitério datado do império romano. A pedido do cineasta, a escavação era aberta para os passantes da região e a história envolvia fantasmagoricamente todo o local. Um efeito similar é conseguido aqui, enquanto a câmera de Guerín passeia pelas ruas de Estrasburgo. A presença do mundo é sentida. Guerín tem um pé num impressionismo realista e outro no cinema fantástico. A cidade de Sylvie sugere outras vidas, outras histórias, sugere um filme como verdadeiro organismo vivo; o extracampo ressurgindo com toda força, cada rosto, cada construção sugerindo um passado e um futuro, um maravilhamento do instante e uma existência para muito além daqueles planos.

José Luis Guerín gosta de dizer que faz seus filmes sempre em trânsito porque o cinema é uma arte de viajantes, assim ele já filmou as locações irlandesas do Depois do Vendaval de Ford (Innisfree), a Normandia (Trem das Sombras) e sua Barcelona natal (En construcción). O que este movimento constante busca é sempre localizar nos lugares algo que poderia passar batido para um olhar habituado. O que mais impressiona em Na Cidade de Sylvia é a maneira como nos eventos mais cotidianos esta impresso um olhar. Olhar esse que repara cada movimento a sua volta que extrai de tudo, algo único. Pensemos na seqüência em que nosso viajante esta sentado num bar e fica a observar as outras mesas. Cada pequeno evento da discussão com a garçonete sobre um pedido errado até como vento bate num rosto passando pela maneira como uma jovem mexe nos cabelos são representados da mesma maneira límpida, como se Guerín eliminasse todo o cinema e recomeçasse do zero. Neste sentido se aproxima de um Philippe Garrel, ambos cineastas que crêem que o cinema existe a parte de qualquer teoria evolutiva. Em certos momentos parece que Na Cidade de Sylvia refunda o cinema a partir dos Lumière, é capaz de causar uma imersão nos movimentos, na força do cotidiano, no poder de fascinação do rosto humano, em suma na matéria-prima básica do cinema como poucas vezes podemos desfrutar.

O corpo de Na Cidade de Sylvia é composto da mesma idéia: um homem observa uma série de mulheres. José Luis Guerín nos oferece o rosto feminino com uma riqueza de gesto e expressão raras. Trata-se de um filme feito genuinamente por um homem que ama as mulheres. Guerín até mesmo abstrai do filme a população masculina de Estrasburgo (homens só surgem aqui quando estritamente necessário). Na longa seqüência do café, é como se o cineasta estivesse catalogando diferentes maneiras da mulher de estar e se portar diante do mundo. É inegavelmente um filme feito por um homem; um que não foge das implicações deste voyeurismo, mas também assume todo o prazer estético do ato do homem a observar a beleza feminina. Se a história do cinema é a história de um bando de diretores a filmar suas belas atrizes como o jovem Godard certa vez afirmou, então Na Cidade de Sylvia é parte essencial dessa história.

Naquela que é a seqüência central do filme – se estende por exatamente 30 dos 84 minutos de sua duração – o protagonista segue a mulher que ele acredita ser Sylvie (uma maravilhosa Pilar Lopez de Aylala cuja performance é uma questão de porte). Vemos todas as etapas desta perseguição, enquanto Guerín mapeia as ruas do centro de Estrasburgo e nos imerge no seu exercício de contemplação encarada como verdadeira experiência religiosa. Todo filme inevitavelmente será composto de uma série de olhares, mas poucos filmes compõem uma tão precisa ontologia do olhar. Na Cidade de Sylvia, mais especialmente esta seqüência, é todo construído a partir de um sofisticado jogo entre o olhar subjetivo e olhar objetivo, que em certo momento parece até mesmo tomar espaço no mesmo plano. Ao longo desta perseguição fica claro o parentesco do filme com Um Corpo que Cai de Hitchcock, mas com a possível exceção de Chris Marker, ninguém o reimaginou com tamanho cuidado e inteligência. Todos os filmes de José Luis Guerín sempre foram filmes sobre o cinema, mas em Na Cidade de Sylvia este enfoque encontra sua representação mais básica: um corpo, um espaço, um olhar.  O que mais é preciso para um grande filme?

Mas há muito mais a se dizer. É preciso destacar o trabalho de mixagem de som, já que Na Cidade de Sylvia é um filme para ser ouvido tanto quanto para ser visto. Auxiliado por um trabalho de foley nunca menos que impressionante, Guerín nos imerge na ambiência de Estrasburgo em todos os seus sons tanto quanto em suas imagens. A fauna sonora completando com precisão o espaço que Guerín desnuda. Igualmente marcante é a maneira como o cineasta chama atenção para os menores detalhes, como um movimento de luz ou uma garrafa deslizando sobre a rua ganham sentido, assim como a importância dada aos tipos recorrentes que circulam pelo local. A lógica que rege o cinema de Guerín sempre foi a da impressão do mundo sobre a película, algo que encontra aqui uma bela tradução na seqüência em que vemos um carro se aproximar e afastar da câmera e ao mesmo tempo a música que emana dele tomar conta do ambiente e depois desaparecer.

O segredo do filme talvez esteja no coração da operação que ele realiza. O que é deslumbrante, mas assustador em Na Cidade de Sylvia, é que trata-se de um filme sobre como o material desemboca no imaterial. Como o corpo da mulher elusiva, viva apenas na memória e por isso mesmo muito mais perfeita, é transmutado na cidade. Sylvie pode existir apenas com um fantasma, um enigma perdido no labirinto das ruas de Estrasburgo, mas ela reside com força impressa na película a cada instante, a cada gesto, a cada deslocamento do ar. A cidade é de Sylvie de fato, ao menos na maneira como ela é experimentada por aquele homem e por todos nós deslumbrados na poltrona do cinema.

Filipe Furtado

 

 





O observador...



...e o objeto observado