Cherchez la Femme
Na Cidade de Sylvia é a história de um labirinto
e de um enigma; das ruas de Estrasburgo e dos rostos
femininos captados pela câmera de José Luis Guerín.
Sobre uma âncora dramatúrgica mínima (homem retorna
a Estrasburgo tentando reencontrar uma mulher que ele
conheceu lá seis anos antes), Guerín nos reensina
a ver. Nosso homem sem nome (Xavier Lafitte) trafega
pelas ruas de Estrasburgo em busca de um rosto. Porém,
mais que tudo, ele olha. Sylvie está em todos os lugares
e ao mesmo tempo em lugar nenhum, em todos os belos
rostos de mulheres que nosso protagonista encontra (são
belas as seqüências em que ele faz esboços de rostos
femininos em seu cadernos, esboços sempre incompletos,
vagos, assombrados por um rosto que ilude o olhar).
Já no filme anterior de Guerín, En
construcción, no meio de uma construção num bairro
pobre de Barcelona era descoberto um cemitério datado
do império romano. A pedido do cineasta, a escavação
era aberta para os passantes da região e a história
envolvia fantasmagoricamente todo o local. Um efeito
similar é conseguido aqui, enquanto a câmera de Guerín
passeia pelas ruas de Estrasburgo. A presença do mundo
é sentida. Guerín tem um pé num impressionismo
realista e outro no cinema fantástico. A cidade
de Sylvie sugere outras vidas, outras histórias, sugere
um filme como verdadeiro organismo vivo; o extracampo
ressurgindo com toda força, cada rosto, cada construção
sugerindo um passado e um futuro, um maravilhamento
do instante e uma existência para muito além daqueles
planos.
José Luis Guerín gosta de dizer que faz seus
filmes sempre em trânsito porque o cinema é uma arte
de viajantes, assim ele já filmou as locações irlandesas
do Depois do Vendaval de Ford (Innisfree),
a Normandia (Trem das Sombras) e sua Barcelona
natal (En construcción). O que este movimento
constante busca é sempre localizar nos lugares algo
que poderia passar batido para um olhar habituado. O
que mais impressiona em Na Cidade de Sylvia é a maneira como nos eventos mais cotidianos esta impresso
um olhar. Olhar esse que repara cada movimento a sua
volta que extrai de tudo, algo único. Pensemos na seqüência
em que nosso viajante esta sentado num bar e fica a
observar as outras mesas. Cada pequeno evento da discussão
com a garçonete sobre um pedido errado até como vento
bate num rosto passando pela maneira como uma jovem
mexe nos cabelos são representados da mesma maneira
límpida, como se Guerín eliminasse todo o cinema e recomeçasse
do zero. Neste sentido se aproxima de um Philippe Garrel,
ambos cineastas que crêem que o cinema existe a parte
de qualquer teoria evolutiva. Em certos momentos parece
que Na Cidade de Sylvia refunda o cinema a partir dos Lumière, é
capaz de causar uma imersão nos movimentos, na força
do cotidiano, no poder de fascinação do rosto humano,
em suma na matéria-prima básica do cinema como
poucas vezes podemos desfrutar.
O corpo de Na Cidade de Sylvia é composto
da mesma idéia: um homem observa uma série de mulheres.
José Luis Guerín nos oferece o rosto feminino
com uma riqueza de gesto e expressão raras. Trata-se
de um filme feito genuinamente por um homem que ama
as mulheres. Guerín até mesmo abstrai do filme
a população masculina de Estrasburgo (homens só surgem
aqui quando estritamente necessário). Na longa seqüência
do café, é como se o cineasta estivesse catalogando
diferentes maneiras da mulher de estar e se portar diante
do mundo. É inegavelmente um filme feito por um homem;
um que não foge das implicações deste voyeurismo, mas
também assume todo o prazer estético do ato do homem
a observar a beleza feminina. Se a história do cinema
é a história de um bando de diretores a filmar suas
belas atrizes como o jovem Godard certa vez afirmou,
então Na Cidade de Sylvia é parte essencial
dessa história.
Naquela que é a seqüência central
do filme – se estende por exatamente 30 dos 84 minutos
de sua duração – o protagonista segue a mulher que ele
acredita ser Sylvie (uma maravilhosa Pilar Lopez de
Aylala cuja performance é uma questão de porte). Vemos
todas as etapas desta perseguição, enquanto Guerín
mapeia as ruas do centro de Estrasburgo e nos imerge
no seu exercício de contemplação encarada como verdadeira
experiência religiosa. Todo filme inevitavelmente será
composto de uma série de olhares, mas poucos filmes
compõem uma tão precisa ontologia do olhar. Na Cidade de Sylvia, mais especialmente esta seqüência,
é todo construído a partir de um sofisticado jogo entre
o olhar subjetivo e olhar objetivo, que em certo momento
parece até mesmo tomar espaço no mesmo plano. Ao longo
desta perseguição fica claro o parentesco do filme com
Um Corpo que Cai de Hitchcock, mas com a possível
exceção de Chris Marker, ninguém o reimaginou com tamanho
cuidado e inteligência. Todos os filmes de José Luis
Guerín sempre foram filmes sobre o cinema, mas
em Na Cidade de Sylvia este enfoque
encontra sua representação mais básica: um corpo, um
espaço, um olhar. O que mais é preciso para um
grande filme?
Mas há muito mais a se dizer. É preciso destacar o trabalho
de mixagem de som, já que Na Cidade de Sylvia é um filme para ser ouvido tanto quanto para
ser visto. Auxiliado por um trabalho de foley
nunca menos que impressionante, Guerín nos imerge
na ambiência de Estrasburgo em todos os seus sons tanto
quanto em suas imagens. A fauna sonora completando com
precisão o espaço que Guerín desnuda. Igualmente
marcante é a maneira como o cineasta chama atenção para
os menores detalhes, como um movimento de luz ou uma
garrafa deslizando sobre a rua ganham sentido, assim
como a importância dada aos tipos recorrentes que circulam
pelo local. A lógica que rege o cinema de Guerín
sempre foi a da impressão do mundo sobre a película,
algo que encontra aqui uma bela tradução na seqüência
em que vemos um carro se aproximar e afastar da câmera
e ao mesmo tempo a música que emana dele tomar conta
do ambiente e depois desaparecer.
O segredo do filme talvez esteja no coração da operação
que ele realiza. O que é deslumbrante, mas assustador
em Na Cidade de Sylvia, é que trata-se
de um filme sobre como o material desemboca no imaterial.
Como o corpo da mulher elusiva, viva apenas na memória
e por isso mesmo muito mais perfeita, é transmutado
na cidade. Sylvie pode existir apenas com um fantasma,
um enigma perdido no labirinto das ruas de Estrasburgo,
mas ela reside com força impressa na película
a cada instante, a cada gesto, a cada deslocamento do
ar. A cidade é de Sylvie de fato, ao menos na maneira
como ela é experimentada por aquele homem e por todos
nós deslumbrados na poltrona do cinema.
Filipe Furtado
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