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Quarta-feira, 29 de outubro de 2008
Num ano de Festival do Rio e Mostra de São Paulo com muito
poucas surpresas (destaque máximo dado a Aquele Querido
Mês de Agosto nesse quesito, e a poucos outros, em menor medida),
há de se atentar para o enorme interesse de um filme bizarro
como Steak, dirigido pelo
francês Quentin Dupieux (e que, como informa o amigo Eduardo
Valente, responde na música pelo pseudônimo de Mr. Oizo),
que mistura futurismo cômico, laconismo humorístico
kitaniano e parasitamento terrorista dos códicos adolescentes
(de filmes) americanos. Se falávamos ontem de
respiração dentro de tradições desgastadas,
Steak
parece traduzir da melhor forma o empenho de uma nova
geração – partilhado, em certa medida, por
Serge Bozon e seus grupinhos em Mods e em menor medida em A França,
pelos filmes mais esquemáticos (e melhores) de François
Ozon – em renovar através de uma gratuidade pop e frontal
alguns gêneros de predileção (comédia, filme
de amigos, Joana d'Arc, melodrama etc.). O fetiche pelo figurino e
pelos objetos, além da lógica de grupo, podem remeter
também a Wes Anderson, mas aqui estamos em terreno distinto,
mais próximo de Kitano mesmo: um humor cruel, que seria
dadaísta se não fosse extremamente minucioso na forma de
trabalhar a hipérbole e parodiar os grupinhos fechados, a
necessidade e o conforto de estar inserido em códigos sociais
estritos, os modismos no vestir e se comportar. Curiosamente, é
um filme que não precisa a época diegética, mas
parece um futuro moldado nos anos 80 – como aliás muito da
música pop francesa de hoje, delirando em timbres de technopop
80s e shoegaze 90s, maior exemplo M83. Já no outro lado do
espectro, temos Nuri Bilge Ceylan, que é um mistério.
Nada fascinante, porque é o mistério de como conseguiu
chegar até a posição de hoje fazendo o cinema que
faz. Filma mal, dirige mal seus atores, não tem qualquer
criatividade na mise en scène,
deixa os planos durando infinitamente sem qualquer propósito a
não ser parecer profundo e ainda por cima reitera tudo que
já se fez em matéria de cinema lento que passa por
"observação delicada das relações humanas"
(hello, Angelopoulos). Three Monkeys
poderia ser uma fábula sobre servilismo como
prostituição (e a transformação de um no
outro), mas prefere filmar contemplativamente rostos,
ações e paisagem com predileções tão
idiossincráticas quanto tolas. Os rostos tristes e as posturas
cabisbaixas dos personagens poderiam até ser referência a
Bresson, caso houvesse o mínimo de sistemática no
processo. Mas não, é apenas "toque autoral", é o
miserabilismo existencial conseguido a toques de "requinte
artístico", ou seja, é o refúgio dos cultores de
uma arte oficialesca e desvitalizada, porém "relevante". Sem
dúvida, o aspecto mais pernicioso e de mau gosto do cinema de
autor praticado hoje (e sempre, mas hoje é Ceylan o nome da
vez).
Em tempo: que tal acabar com a Rain antes que a Rain acabe com o
cinema? Confesso que eu me sinto ludibriado toda vez que vejo a vinheta
da empresa antes dos letreiros iniciais dos filmes, pois isso vai
significar uma perda de fidelidade maior do que ver o filme baixado de
internet. E é o que muitos sentem e conversam, em bares, em
corredores de salas entre um filme e outro: filme da Rain, melhor ver
baixado. O teste foi feito com Alexandra de Sokurov e é impossível discordar. (Ruy Gardnier)
Segunda-feira,
27, e Terça-feira, 28 de outubro de 2008
Como escapar (ou não) das fôrmas do cinema – Natural
que, uma vez fecundado o terreno, haja uma instalação,
uma transformação do solo indesbravado numa economia
metódica, ou, mais ainda, numa reprodução algo
mecânica de códigos. Talvez funcione para a agricultura,
mas para a arte esse tipo de processo é um bocado
questionável, quando não perigoso. Deixar assentar, na
arte, costuma significar a institucionalização dos
procedimentos e a criação de uma placidez que em geral
destrói o gesto artístico. Daí a
importância, senão da eterna reinvenção (o
que algusn gênios conseguem mas que seria impossível pedir
de todos), ao menos de uma relação vigorosa com seu
assunto, com suas formas, uma tensão na relação
com o processo criativo. Em geral, quando percebemos isso, é que
separamos o artista do artesão, o homem com uma visão do
talentoso e rotineiro repetidor de formas (ainda que repetir
talentosamente as formas seja algo digno de respeito). Aos filmes: Khamsa
de Karim Dridi. Seres entregues a si mesmo, despojamento na
filmagem, toda uma herança adquirida a partir do neo-realismo e
da nouvelle vague e transformada em novo modus operandi
de qualquer filme que queira retratar "a realidade", ou seja, problemas
sociais e políticos a partir de personagens que encarnam na pele
e metaforizam o todo (as estratégias de metaforizar o grande ao
pequeno variam, do personagem típico ao painel). Como
veículo para discussão sobre a pobreza dos guetos ciganos
e árabes em Marselha, vá lá. Mas como meio da
imagem em movimento criar uma outra relação com o
imaginário retratado, o filme falha clamorosamente. Ele persegue
com constãncia todos os clichês possíveis de filmes
com personagens desgarrados, entregues à marginalidade e ainda
assim adoráveis por serem ainda crianças e com carinha de
bebê (ameaçadores mas não ameaçadores).
Triste destino para alguém que fez ao menos em dois filmes, Pigalle e Bye-Bye,
obras com real tensão da câmera ao descobrir pessoas e
lugares. Mania Akbari, já elogiada aqui como atriz em Dez e diretora em 20 Dedos, em 10+4
utiliza a câmera e o princípio formal do filme de
Kiarostami para realizar um processo de recuperação
emocional de um câncer no seio tratado com quimioterapia.
À medida que lida com o visual e com índices diretos
de feminilidade (cabelos grandes, seios), o conceito do filme
é preciso e a parasitagem a Dez
é justificada. A forma pode se transformar em fôrma sem
perder o essencial. Mas é na execução que tudo
degringola. Akbari é astuciosa em algumas de suas
opções, como só revelar aos poucos a natureza do
câncer e mostrar as reações dos familiares e amigos
à sua doença, mas no momento que o filme se fecha,
não aparece nenhuma clarividência que liga todas as partes
e as transforma num todo redefinidor – o que fazia boa parte
da grandeza de Dez. 10+4,
por sua vez, mais lembra uma videoterapia sem uma estrutura que lhe
garanta um interesse maior. E aí temos o caso de Desplechin.
Pode-se dizer que talvez seja o realizador mais incomodado com uma
certa herança do cinema de sua terra e alguém que tenta
dispor de todos os modelos para preenchê-lo com nova
respiração (o que o coloca, em certa medida, a total
distância de Olivier Assayas, cada vez mais tragado pelo cinema
francês canônico, bom – Techiné – ou
ruim – a qualité française). Esse desejo de fugir da tradição o leva a experimentar muitas coisas – coisas demais, até. Assim, Um Conto de Natal
é uma experiência tão entusiasmante quanto
irregular de fragmentação do conceito e da forma,
decidindo ad hoc como filmar
e pôr som em cada cena sem aparentemente pensar na
coerência do todo. É uma bravata que nem sempre dá
certo, mas cuja consistência (ainda que no errático) e
ousadia sem dúvida merecem elogios. Fora os atores, soberbos.
Mas isso é outro papo. Arnaud Desplechin, ainda que não
se admire completamente seus últimos filmes, representa como
poucos um dos dilemas principais do cinema feito hoje. (Ruy Gardnier)
Sábado,
25 de outubro de 2008
Fazer o filme que está na cabeça – É claro
que ninguém concorda que isso é ruim. É
aliás, há séculos, o cavalo de batalha de
críticos e entusiastas que pedem que o artista se liberte das
amarras do gosto comum, do sucesso fácil, das exigências
dos produtores e do mercado. O que não impede que, diante de uma
obra, o artista tenha ficado tão aproximado de seu material, ou
tenha tido tanta coisa para dizer, ou ainda queira dar vazão a
muito ao mesmo tempo, que a obra desanda. É chato ver isso
sobretudo quando o talento do cineasta é evidente, mas que ele
se deixa levar pelos excessos, ou não percebe quais são
suas forças e suas fraquezas. Exemplo maior da 32ª Mostra,
até agora: José Eduardo Belmonte e Se Nada Mais Der Certo.
Curta-metragista dos mais significativos dos anos 90, sua carreira em
longa até agora (ao menos os que pudemos ver) carrega filmes com
altos e baixos, belos momentos seguidos de clichês ou facilidades
incômodas. Belmonte sabe filmar, sabe retirar visceralidade e
excelentes interpretações de seus atores (Cauã
Reymond está excelente como protagonista, por exemplo). Sempre
quando o filme está disposto a mostrar seus personagens em
ação, o filme é impactante e belo. Quando, ao
contrário, provoca momentos "poéticos" com vozes em off
ou personagens sozinhos (João Miguel sofrendo com
revólver em topo de prédio), ou ainda quando coloca
pensamentos filosóficos na boca de seus personagens –
repetidos à exaustão, enésima
variação do "choose life" de Trainspotting ou do discurso de Clube da Luta
–, o filme incorre na mesmice e na falta de tato. Claro
está que Belmonte quer exercitar seu lado reflexivo, dosar o
andamento da história com outros pensamentos e idéias,
mas até agora não conseguiu achar o diapasão
correto: seu lirismo é forçado e sem
imaginação (poesias em off, imagens de Super 8), suas
idéias sobre o mundo cão um tanto tolas e posudas (ainda
que se possa concordar com elas). Mas quando se põe a filmar
personagens instáveis, cheios de força e sem destino
certo, Belmonte faz gol de placa. Não são só esses
problemas – há, entre outros, uma certa falta de jeito em
levar tantas linhas de tensão narrativa, por exemplo –, e Se Nada Mais Der Certo
é sem dúvida um dos mais interessantes filmes brasileiros
surgidos nesse ano, mas a gente sai com a impressão que o
cineasta poderia ter feito um grande filme quando fez só um bom,
ou até muito bom filme. Caso semelhante, em outra escala,
é o de Jacques Doillon. O legal de acompanhar sua carreira
é que ele é um fio desencapado. A cada momento
está fazendo uma coisa diferente. O que é interessante,
mas não necessariamente bom. Em O Primeiro a Chegar,
utiliza uma premissa estapafúrdia para estabelecer o que
realmente interessa ao filme, uma certa relação de
personagens e, sobretudo, de atores. É o que guia o filme, uma
dinâmica cênica de gestos e movimentos nada especial
mas que imprime certa pulsação em uma ocasião ou
outra. Mas o filme vaga sempre à deriva, quase um filme do
Bertrand Blier, e em diversos momentos sentimos uma mão muito
forte do diretor colocando pensamentos nas bocas de seus personagens ou
criando encontros gratuitos e entediantes entre personagens ("Ah,
não, ela de novo com ele não", é um pensamento que
surge um punhado de vezes assistindo ao filme, ainda que o ela e o ele
variem). É a graça do filmar por filmar, que se por vezes
constrói grandes sopros de liberdade de criação,
em outros é apenas desculpa para prender o filme a outros
códigos e/ou procedimentos que dão tudo menos o frisson
da criatividade e do gesto criador. (Ruy Gardnier)
Quinta-feira,
23 de outubro de 2008
De piadinha de bar a texto, todo mundo fala das semelhanças de 24 City, mais novo filme de Jia Zhang-Ke, com Jogo de Cena,
de Eduardo Coutinho. Parece, no entanto, que não perceberam
direito a função exercida pela mistura de depoimentos
"reais" com depoimentos encenados por atores. No filme de Coutinho, o
interesse era atentar para a idéia de performance, testemunhar o
"documento" que é a ficção (e o processo de
criá-la, acertando ou errando). O ilusionismo, em todo caso,
é apenas a parte superficial do processo, e o "desmascaramento"
também. Para Jia, é o exato oposto. Quando coloca
atores encenando depoimentos como pessoas que não
são, ele atenta ao contrário para como a
ficção é, sim, documento de alguma coisa, ou de
muitas ao mesmo tempo. No caso de Jia Zhang-Ke, sabemos que ele
constrói seus filmes à maneira do Rossellini dos anos 40
e 50, com personagens criados pelas circunstâncias sociais e
culturais das modificações na sociedade chinesa, e
talhados a partir da exigência de efetivar através de seu
percurso um olhar sobre a China de hoje e do passado recente. Se
há um filme que vem à mente o tempo inteiro assistindo a 24 City, é Além dos Trilhos,
de Wang Bing. Aliás, em todas as cenas de
destruição do parque industrial, das suntuosas salas de
pé direito altíssimo totalmente vazias, Jia parece fazer
apenas um desdobramento daquilo que Wang fez. Não que isso
signifique uma capitulação estética ou um
descaminho. Jia Zhang-Ke está lá em seus travellings
laterais especulativos, em seus flagrantes da vida acontecendo, e
principalmente no painel de depoimentos que ele constrói a
partir das tensões sociais e culturais criadas a partir da
construção de um bairro supermoderno nos escombros de uma
antiga fábrica obsoleta. Não é um filme da
envergadura de um Still Life, de um Plataforma, de um O Mundo.
É, ainda assim, uma intensa experiência de cinema que
remete à famosa idéia de que o cinema é a arte que
registra a morte em ação. Vistos também: Terra
Firme Sob os Nossos Pés, cretino documentário sobre o
Tsunami sem interesse cinematográfico e que só se
recomenda aos fissurados pelo assunto, e o belo Patti Smith – Sonho de Vida
(que alguém, sabe-se lá por que diabos, "traduziu" como
Patty – mas se no Masp Matisse aparece como "Henry", pourquoi pas?),
tão delicado, vigoroso e agitador quanto a obras musical da
cantora. Mas isso a gente deixa pra crítica. (Ruy Gardnier)
Quarta-feira,
22 de outubro de 2008
Fazia dez anos que eu não via Fanny e Alexander.
Não lembrava de tudo, portanto algumas imagens me atingiram como
se voltassem a ser inéditas (revisão como
revelação). Hoje, assumindo o risco de fazer
afirmações ainda sob o impacto da projeção,
diria que é o melhor filme de Bergman que já vi. É
o acúmulo e a superação (talvez não seja
essa a palavra, superação, porque o filme não
ultrapassa uma coisa para atingir outra, apenas cristaliza uma forma no
que ela possui de mais essencial e belo) do que havia de mais vigoroso
em filmes como Cenas de um Casamento, Sonata de Outono, Gritos e Sussurros – e também Morangos Silvestres, O Sétimo Selo.
Sem falar que é seu melhor trabalho com a cor (no início,
Sven Nykvist combina o vermelho de Tiziano à neve de Bruegel).
Assim como Hitchcock, Resnais, Welles e alguns outros
prestidigitadores, Bergman compreende a vida por meio do
artifício. Só que isso não é uma forma de
se distanciar do mundo e se trancar na imaginação;
é antes uma ferramenta de conhecimento sensível. A mise en scène de Bergman em Fanny e Alexander
se faz presente em tudo: não devemos procurá-la somente
no quadro, nos movimentos, na angulação, na
distância com o ator etc, mas também nos
mínimos gestos, nas roupas, no cenário, na quantidade de
velas acesas dentro de um cômodo. O mestre das marionetes
está mais atento que nunca, e o resultado é uma
multiplicação da carga emocional do filme atingida
exatamente pelo analitismo da técnica. Para chegar à
fluidez e ao "natural", Bergman precisa passar antes pela
análise, pelo cálculo, pelo método. Tarefa
difícil. Em inúmeros planos podemos sentir a
presença austera do teatro, da pintura, da ação
dramática atomizada e estudada, da posse do diretor sobre os
personagens. Mas quando tudo isso se encaixa, Bergman desperta as
reações mais instintivas e emotivas nos
espectadores – como se fizesse um filme de terror (o que Fanny e Alexander, aliás, não deixa de ser).
(Luiz Carlos Oliveira Jr.)
Terça-feira,
21 de outubro de 2008
Perseguição
infinita, amizade fraternal, o risco iminente da morte criando
laços profundos entre os personagens. Estes seriam alguns
dos elementos narrativos que ligam Segurando as Pontas
ao filme anterior de David Gordon Green, Contracorrente.
No campo formal, uma depuração singular dos
gêneros, que retém destes apenas o essencial, para
embarcar numa montanha-russa de fôlego ininterrupto. De fato,
é admirável a habilidade de Green em desdobrar
situações indefinidamente e prolongar
tensões ali onde nem se supunha que elas existissem. Segurando
as Pontas é uma comédia sem
parâmetros, cujas piadas se atropelam numa velocidade que
desbanca qualquer organização de cena. Por vezes
nos perguntamos como aquilo tudo pôde ser filmado, uma vez
que a verdade dos atores parece não supor
interrupções, marcas, ou diálogos
bem-escritos. Na outra ponta disto que poderia ser chamado de um estilo
autoral “dissimulado”, teríamos o cinema
de Antonio Campos: mise en scène que
grita sua originalidade e singularidade a cada plano. É
preciso fazer o grande esforço de afastar todas as
afetações de linguagem do filme para buscar sua
real proposição cinematográfica. A
tarefa é árdua e não garante
resultados. A pergunta é: à parte os
comentários sobre um determinado estado de coisas da
sociedade americana (conseqüências do acesso
indiscriminado a todo tipo de conteúdo audiovisual pela
internet, hipocrisia conservadora das
instituições, drogas disseminadas entre
adolescentes, ausência de parâmetros morais) e o
deslocamento sistemático (e até
programático) da pulsão do olhar, onde
está o desejo de cinema de Campos? Pois a frieza extrema de
suas proposições visuais serve a estimular
incessantemente o pensamento e nada mais. Seria este uma
espécie de ápice masturbatório do
cinema intelectual? Ao fim de Depois da Escola, nos
perguntamos: qual a verdade de mundo do filme? Em
outras palavras: que universo é posto em obra nas imagens,
com o qual poderíamos nos relacionar e que traria alguma
articulação de sentido sobre uma dada realidade?
A resposta talvez seja: nenhum. O esforço supremo de
reflexão proposto por Campos cria um estado de
consciência vigilante (a boa consciência do homem
contemporâneo?) sobre cada imagem que desloca a
potência criativa para o comentário de impacto
(desarticulado em si mesmo, diga-se de passagem). Os enquadramentos
descentralizados e as lentas panorâmicas carregam a
idéia da câmera que chega tarde demais aos
acontecimentos que ela deveria fazer ver com clareza, em
oposição ao imediato das imagens pobres de
câmeras de celulares e dos vídeos em geral que
pipocam na tela de computador do personagem. Mas, então, o
quê se vê em Depois da Escola?
Não muita coisa na verdade. Existe um vazio fundamental em
tudo que Antonio Campos filma que não é o vazio
do fora de campo que se suporia evidenciado pelo uso expressivo do
recorte operado pelo quadro (seja ele um fora de campo ativo, seja ele
da ordem do insondável). Seria este um vazio de alma?
(Tatiana Monassa)
Domingo,
19, e Segunda-feira, 20 de outubro de 2008
Dois figurões
– Coppola com O
Poderoso Chefão
e Ingmar Bergman com uma retrospectiva de alguns de seus filmes menos
conhecidos (além de um ou outro medalhão).
Ocasião para voltar sobre a obra de dois dos
diretores de
repercussão mais unânime para certas faixas de
público e crítica, e ao mesmo tempo controversos
para
outros segmentos, em particular os defensores mais ferrenhos
da
política dos autores (entre os quais, até segunda
ordem,
a Contracampo está inserida). São duas carreiras
muito
grandes, e nos dois casos repletas de filmes desiguais, indo da
obra-prima ao abacaxi com freqüência. Que exista um
tanto de
má vontade na acolhida desses cineastas, me parece
algo que
acontece meio naturalmente com todo mundo que começa a fazer
um
sucesso estrondoso fora de um certo mundinho. Mas que, ao mesmo tempo,
suas obras sejam vistas sempre com a condescendência de
quem vislumbra sempre o trabalho de um mestre em
máxima
potência, é algo que soa um tanto exagerado.
Então,
Coppola e O Poderoso
Chefão.
Sem dúvida, um dos grandes e mais influentes filmes dos anos
70,
um marco de uma carreira e de uma época. Pouco a adicionar:
as
cenas na Itália permanecem de uma beleza e de uma
sensualdiade
estonteantes, o ritmo perfeito para contrabalançar o
universo
imprevisível da matança indiscriminada na
América
do pós-guerra e as lutas entre famílias
pelo
controle da máfia. Um grande filme, com tudo que em geral se
pede deles: personagens cativantes, agilidade suprema da narrativa,
atuações extraordinárias, carisma,
imagens
exuberantes etc. Visto em versão restaurada quase quarenta
anos
depois de sua produção, em alguns casos o filme
parece
pedir mais tempo para certas cenas acontecerem. Algumas
fusões
ou cortes secos, sobretudo na hora final do filme, nos jogam muito
rápido para fora de uma cena que ainda poderia render alguma
coisa, ou simplesmente o ritmo acelera mais do que vinha construindo.
É claro que, sobretudo sendo um filme de
indústria,
é difícil pedir que um filme de três
horas tenha
mais do que isso. Mas uma correria menor na parte final do filme
equilibraria melhor a dinâmica entre retrato de
personagem e
ação dramática. Dito isso,
inúmeras cenas
são de antologia, pura e simplesmente. Além do
idílio italiano, fico com outras duas: a badalada cena da
arma
no banheiro e o momento final, com Al Pacino mentindo friamente a sua
esposa, enfim tornado um Don, a câmera movendo-se em dolly
out
emoldurando-o com a porta do aposento. Frio glacial. Agora Bergman em
três tempos, na Sala Cinemateca (aliás, muito
estranha
escolha da Mostra de encher a Cinemateca de Bergmans e Okamotos, ao
contrário de fazê-los circular por todas as salas,
como
era de costume). Primeiro, Chove
Sobre Nosso Amor
(1946), segundo longa-metragem do diretor e certamente um que
não entrará para a história. Drama
algo entre o
charmoso e o bobo, o filme tenta avançar algumas
questões
que depois seriam trabalhadas em forma total (em especial em Monika e o Desejo),
o amor arrebatador, o casal visto como unidade contra uma comunidade
que lhe faz forte oposição, etc. Em alguns
momentos, o
filme vira comédia desajeitada, personagens dão
guinadas
incríveis e a coisa toda fica meio sem pé nem
cabeça. Mas, pasmem, é um filme de Bergman
generoso com
seus personagens. De uma generosidade até piegas, mas
simpática. Em seguida um filme mais ambicioso, Prisão
(1949), já totalmente imbuído do existencialismo
pelo
qual seu cinema será mais conhecido e elogiado nos anos 50 e
60.
Uma forma arrojada, com histórias paralelas e
créditos em
momento já bem avançado do filme, Prisão
parece um pouco uma tentativa de digerir o cinema de Orson Welles (ao
menos acaba igualzinho Cidadão
Kane)
e sua tese é que a individualidade de cada um é
sua
própria prisão. Dentro da obra de Bergman, o
filme
é um dos que melhor dosa questionamento com
ação
dramática, narrando a história de um
improvável
casal que surge entre uma prostituta e um roteirista de cinema.
É ainda, alguns diriam, um Bergman que não se
assoberbou
com sua profundidade. Não sei se concordo com isso, pois
alguns
Bergman assoberbados contam entre os seus melhores (O Silêncio,
Persona),
mas vendo A Hora do Lobo
é difícil discordar que Bergman simbolista
é quase
sempre um artista desastrado, que atinge seu espectador com pegadas de
elefante. Bergman pós-Persona
parece ser uma figura que tenta desesperadamente dialogar com os novos
cinemas (a ponto de roubar idéias de Godard em A Paixão de Ana,
por exemplo), e seu cinema sofre um pouco com isso. Ele tem mais de
Strindberg e Ibsen do que de Artaud e Beckett, e seu cinema se ressente
muito disso quando ele não percebe que está
saindo do
registro que domina. A
Hora do Lobo é como um Persona
descontrolado e ainda mais auto-indulgente. Um filme de excessos, que
pode até guardar momentos de grande beleza, mas que parece
mais
interessado nos efeitos de espanto e choque que cria do que
efetivamente no drama e na cena. Balanço final? Nenhum.
São cineastas que se vai discutir pra sempre (Ruy Gardnier)
Sábado, 18 de outubro de 2008
Que cinema a defender? O cinema
das formas dosadas, discretas, simples e rigorosas de Albert Serra com
seu belíssimo O
Canto dos Pássaros, ou as expressões
aberrantes, desregradas e até exibicionistas de Gomorra,
de Matteo Garrone? Mas, pensando melhor, por que exercer
distinção semelhante, e preferir definitivamente
uma pela
outra? Existem as críticas empenhadas em carregar algumas
bandeiras, criar um ideal artístico e defender as obras que
se
aproximam dessa idéia apolínea, dessa forma que
já
está na cabeça e da qual os filmes são
apenas
manifestações parciais e secundárias.
Contracampo,
ao contrário, sempre optou e propôs antes de tudo
por uma
abertura que fosse buscar o cinema ali onde ele fosse forte, cativante,
onde ele desenvolvesse propostas visuais, narrativas,
temáticas
que fizessem com que a imagem cinematográfica friccionasse o
mundo e lhe trouxesse beleza e vivacidade. Não um ecletismo,
uma
defesa sem critérios de todas as formas, mas principalmente
a
idéia de um bem-vindo desconhecimento prévio de
como o
cinema pode nos afetar e maravilhar, e de acompanhá-lo ali
onde
ele é excitante, criativo, onde ele é movimento.
Sob esse
aspecto, a partilha de clássico e moderno ou
contemporâneo
não faz muito sentido (se a crítica for apenas um
carimbador de "estatutos de modernidade", ela deixa de ter qualquer
interesse): o que importa é como o cineasta cria
operações em que transfigura imagem e som para
criar uma
expressão, e saber em que medida essa expressão
é
forte (o que nunca é uma ciência positiva, mas que
é toda a graça da crítica). Tomar a
defesa de uma
forma de fazer em detrimento de outra pode até ser
saudável em certos momentos, mas arrisca inserir o
crítico numa placidez de olhar ("só gosto daquilo
que
é parecido comigo") extremamente empobrecedora das
percepções de cada um, da crítica e do
cinema como
um todo. Aos filmes: Gomorra
certamente não é uma obra de arte monumental,
apesar de
querer ser muito, mas utiliza processos de
dramatização muito interessantes na forma de dar
carne e
individualidade, ou seja, transformar em personagens, a todas as
tensões inerentes à convivência
cotidiana com o
tráfico, a máfia: medo, glória,
orgulho,
indiscernibilidade entre caminho certo e caminho errado. Talvez o maior
elogio ao filme seja dizer que ele escapa das facilidades dos
filmes-painel, em deixar as trajetórias fragmentadas, em
interessar-se mais pelo desenvolvimento das
situações do
que pelo entrecruzamento e pelos mecanismos de roteiro. O Canto dos Pássaros
está em outro registro, completamente. A graça do
cinema
de Albert Serra, ao menos os dois filmes seus que pudemos ver,
consiste em apropriar-se de uma história conhecida (Dom
Quixote,
os três reis magos) e aplicar a ela uma
irreverência
absoluta, que transforma-se em embevecimento pela simplicidade do gesto
e pela leveza suprema do ritmo (oh, La Tour). Poucas vezes no cinema
recente veremos sons tão delicadamente passeando por nossos
ouvidos, um escuro tão doce que confunde pessoas e paisagem
numa harmonia sutil e parcimoniosa. Entre macro e micro, entre
clássico e contemporâneo (a notar que os dois
filmes fazem
partilhas bem diferentes de ambos registros e modelos
estéticos), o erro não é escolher o
errado, o erro
é ter que escolher. (Ruy Gardnier)
Sexta-feira,
17 de outubro de 2008
Inevitável que esta
seja
não uma primeira observação sobre um
primeiro dia
de mostra, mas a continuação, a parte 2 de alguns
questionamentos iniciados no diário do Festival do Rio.
Certos
temas e procedimentos que vemos se repetirem, de filme a filme, certos
tiques, certa forma de utilizar os elementos expressivos do cinema de
forma a entrar na escolinha do que há de mais "de ponta" no
cinema. Claro está que não sou o primeiro a
constatar que
muito do que se chama hoje de "cinema de autor" entrou num circuito
auto-reprodutivo e formulaico que dá raiva, por ao mesmo
tempo
posar como arte e não dar quaisquer sinais de vitalidade ou
ousadia, coisas que geralmente se pede dela. Ou não? Dois
filmes
vistos hoje, sem dúvida interessantes e dignos de serem
vistos,
ajudam um pouco a levar o problema adiante. Primeiro filme visto na
32ª Mostra, Tulpan, filme do
Cazaquistão, vencedor do Un Certain Regard do Festival de
Cannes. Começa muito como Camelos
Também Choram,
aquele registro etnográfico simpático, aquela
ingenuidade
graciosa e uma certa prudência no uso mais desabusado do
exotismo
(mas deixando ainda um quê, mesmo assim). É um
filme com
algumas cenas fortes, mas em outras fica claro que houve uma tentativa
de macaquear procedimentos retóricos e visuais dos
genéricos filmes de arte. Um certo fetiche de uma
história esburacada, lacônica, aberta. O
título,
por exemplo, diz respeito a uma personagem que jamais aparece. Os
personagens são capazes de mudar de rumo a todo momento,
menos
porque eles são imprevisíveis do que pela falta
de
interesse do filme em esmiuçar qualquer problema
dramático com maior apuro. Eles existem mais como figuras
que
cativam pela doçura e peculiaridade –
crianças,
personagens secundários maluquetes, etc. E há,
claro, os
momentos de paisagem, o pó que sobe, os planos
contemplativos.
Tudo muito by the book, muito elegante como papai
mandou.
Não é nem que falte ao diretor Sergey Dvortsevoy
talento:
a ausência gritante é uma sensibilidade que
singularize
esse repertório adquirido de "cinema
contemporâneo" em
algo com contornos próprios, com idéias e imagens
com
maior personalidade e menos esse senso de unanimismo fofo que parece
brotar de certas cenas do filme. Já O
Silêncio de Lorna,
dos Dardenne, evoca questão diferente, mas referente
à
mesma problemática. Pode-se argumentar que OK, foram eles
que
instituíram esses cortes bruscos, essas elipses que nos
fazem o
tempo inteiro supor o que aconteceu entre as
seqüências,
esse sentimento vertiginoso de instalar o espectador nas
ações já acontecendo. Não
é nem
questão de se colocar dúvidas a respeito do
estilo
transformado em fôrma, mas acima de tudo se isso
não
impõe certas facilidades à
evolução
narrativa e à construção dos
personagens que
diminui a força do filme ao tornar previsíveis as
ações dos personagens e as mudanças da
trama. O
filme tem o mérito de não ser tão
formulaico
quanto o anterior, A Criança, mas em O
Silêncio de Lorna vemos
uma maior frouxidão de composição, no
uso de
diálogos para explicitar situações, na
omissão de certas cenas, na
forçação de
certas situações dramáticas, em
especial a cena de
sexo. Estão cada vez mais longe daquilo que se elogiava
inicialmente neles, o despojamento, a frontalidade. Ao
contrário, parecem cada vez mais ciosos de opor os
"sentimentos
humanos" ao materialismo alienante do mundo contemporâneo.
Nesse
filme, diria eu, beirando as raias de um sentimentalismo piegas,
sobretudo na meia hora final. Extremamente confortáveis no
modelo que criaram, e que de filme a filme perde seu impacto, os
irmãos Dardenne são um claro exemplo da
dificuldade de se
reinventar de um certo cinema "do hoje". (Ruy Gardnier)
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