DIA DE FESTIVAL
Diário de bordo dos editores no Festival do Rio

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Domingo, 12 de outubro de 2008
À guisa de balanço? – Mesmo considerando sensatamente nossa posição de meio de percurso (porque ainda tem a Mostra) e a incompletude de nossa posição (ficaremos restritos ao que foi selecionado para os festivais), é impossível deixar de notar que o cinema internacional em 2008 – ao menos a parte que vimos – teve coisas muito boas, algumas até excelentes, mas nada com propostas a ponto de reconfigurar ou adicionar questionamentos às preocupações artísticas do cinema contemporâneo. Aqueles que mais chegaram próximos disso – Aquele Querido Mês de Agosto, Sad Vacation pra alguns, lembrando que A Viagem do Balão Vermelho, Na Cidade de Sylvia e Guerra Sem Cortes "aconteceram" para nós em Sâo Paulo 2007 – estão mais seguindo um continuum de cinema contemporâneo do que impondo novas visões que provocam novos questionamentos sobre imagens em movimento (e a década está cheia desses momentos, de Hou Hsiao-hsien a Claire Denis, de Pedro Costa a Apichatpong Weerasethakul, de Gus Van Sant a Hong Sang-Soo, de Abbas Kiarostami a Todd Haynes). Nada desanimador ou catastrofista, naturalmente, mas até o momento temos a idéia de 2008 como um ano que passa docemente como um período de consolidação, de respiro ou mesmo de parênteses. O que não significa que não hajam bons filmes. Ouve-se à boca pequena que o festival foi fraco esse ano, que a seleção internacional está insuficiente e chama-se até atenção para a falta de filmes de grandes cineastas no ano (o que é, se pararmos para pensar, uma evidência gritante). Mas, avessos que somos ao discurso da decadência, sempre achamos os filmes que nos fazem continuamente acreditar na vitalidade de uma arte que, ainda com todas as ameaças de institucionalização (hoje curiosamente vindas mais do "cinema de autor" do que do comercial, que se renova, vide Trovão Tropical, Superbad e as comédias americanas), ainda é capaz de driblar o já dito/já experimentado e nos emocionar com grandes momentos de expressão cinematográfica. Abaixo, algumas listas de preferidos da redação:

Leonardo Levis
1. Les Amours d'Astrée et de Céladon
Na Cidade de Sylvia
3. Aquele Querido Mês de Agosto
A Viagem do Balão Vermelho
5. Leonera
A Mulher Sem Cabeça
Tokyo Sonata
8. A Fronteira da Alvorada
Guerra Sem Cortes
Noite e Dia
Quatro Noites com Anna

Ruy Gardnier
1. A Viagem do Balão Vermelho
2. Noite e Dia
3. Aquele Querido Mês de Agosto
4. Guerra Sem Cortes
5. Sad Vacation
6. Les Amours d'Astrée et de Céladon
7. A Mulher Sem Cabeça
8. Na Cidade de Sylvia
9. Inútil
10. Tokyo Sonata

Sérgio Alpendre
1. Les Amours d"astrée et de Céladon
2. Na Cidade de Sylvia
3. Aquele Querido Mês de Agosto
4. Vicky Cristina Barcelona
Tokyo Sonata
6. A Fronteira da Alvorada
7. A Viagem do Balão Vermelho
8. Leonera
Noite e Dia
Segurando as Pontas

Tatiana Monassa
Na Cidade de Sylvia
A Viagem do Balão Vermelho
Noite e Dia
Sad Vacation
Aquele Querido Mês de Agosto
Tokyo Sonata
Les Amours d'Astrée et de Céladon
Na Guerra
A Mulher Sem Cabeça
Om Shanti Om
Leonera

(RG)

Sexta-feira, 10 de outubro de 2008
É sempre um grande prazer acompanhar o trabalho de um ator capaz de (re)definir o cinema de seu tempo. Especialmente quando sua força não vem necessariamente de uma associação com um autor, mas de uma genialidade cênica própria. É o que se poderia dizer de grandes nomes do cinema clássico, capazes de brilhar mesmo em filmes medíocres, e é o que se pode dizer hoje, sem medo algum, de Shah Rukh Khan, “o” astro bigger than life do cinema bollywoodiano dos últimos quinze anos. Seu estrondoso sucesso deriva em grande parte, sem dúvida, da sua admirável maleabilidade de expressões faciais e corporais. Transportando para os trejeitos e a voz a obviedade cristalina da linguagem narrativa do cinema de Bollywood, Khan é capaz não apenas de traduzir em seu físico todo o sentido da cena, como de surpreender a cada instante, com grande inventividade. Aperfeiçoando-se ao longo dos anos, ele talvez tenha atingido o ápice de sua versatilidade em Om Shanti Om. A sutil camada auto-reflexiva do filme de Farah Khan proporciona ao ator a possibilidade de um leve distanciamento do personagem, em cada uma de suas encarnações – sejam as duas vidas de Om, sejam os diferentes papéis que este assume nos filmes dentro do filme. O subtexto crítico daí advindo confere à encenação uma autoconsciência da representação, tanto no sentido da caracterização visual quanto da interpretação. E este sentimento Shah Rukh Khan transmite à perfeição. Pois a cada cena podemos perceber simultaneamente sua entrega à pura ficção exagerada e seu movimento de assumir diferentes jogos de cena. Isto tudo confere a Om Shanti Om um frescor surpreendente. Mas para além de se beneficiar do luminoso ator, Farah Khan faz de seu filme uma montanha russa por diversos registros narrativos em que o verdadeiro interesse nunca é a história a ser contada, mas a forma como ela se desvela na tela. Pois o aspecto meta-lingüístico do filme não se manifesta com uma simples tematização de sua própria feitura, mas pela afirmação de uma consciência dos códigos e convenções de representação. Desta forma, todos os elementos (visuais ou não) que caracterizam a década de 70 contrastam brutalmente com aqueles que definem a cultura de massa atual. A incorporação de uma estética rapper, popularizada na imagem pública de diversos músicos americanos e no universo propagado em seus videoclipes, oscila entre a crítica à importação de um universo de símbolos estrangeiros e o próprio fascínio com a plasticidade apelativa que a caracteriza. Em meio à orgia visual do filme, Khan faz ainda comentários bem-humorados sobre o sistema de produção de Bollywood, no qual o diretor é absolutamente ofuscado pelas estrelas e produtores, e monta um pequeno conto moral no qual o impulso de vingança transmuta-se num inspirado jogo em defesa da responsabilidade sobre os próprios atos, especialmente quando uma posição social confere um poder superior. (TM)

Quinta-feira, 9 de outubro de 2008
Aoyama é o cineasta do trauma e do deslocamento. Deslocamentos de percepção diversos, mas, sobretudo, deslocamentos sociais. Seus personagens são eternos desajustados em busca de novos laços, de alianças possíveis para superar seu afastamento do complexo social institucionalizado. Em Sad Vacation, mais uma vez todas estas questões vêm à tona, numa narrativa lacunar, dispersa e elíptica, na qual a inferência ativa do espectador é absolutamente necessária para completar os circuitos de sentido propostos. Às vezes, temos a impressão de estar diante de uma colcha de retalhos, ou de diferentes filmes agrupados ocasionalmente num só todo. O fato é que a heterogeneidade dos diversos momentos de Sad Vacation cria a sensação de um filme que flutua sobre os espaços e os personagens, como as bolhas de sabão que vemos os personagens soprarem. Com grande leveza, Aoyama monta uma intrincada estrutura na qual a montagem exerce um papel fundamental no estabelecimento de uma narrativa sem clímax explícito, que parece avançar sempre por camadas, como evidenciado pelo surpreendente efeito criado pelo “adiantamento” de algumas cenas, que adentram brevemente a cena anterior a elas, denotando a inevitabilidade da progressão dos estados, ao mesmo tempo em que esfacelam a noção de tempo linear. Todos os personagens de Sad Vacation encontram-se em estágios provisórios que não supõem a existência do seu oposto, da mesma forma que a sociedade e a lógica urbana encontram-se no fora de campo, distantes, na área de abstração da consciência de mundo do filme. E, ali, naqueles espaços internos, onde os impulsos por vezes se condensam e ganham por um momento densidade, temos mais uma vez o irrompimento da violência no seio da familiaridade e a negação de laços que não sejam advindo de ligações sentimentais pela partilha de uma forte experiência individual, particularmente de experiências negativas. A forma como o filme nega a concepção tradicional de família, colocando um questionamento aos papéis familiares, frontal e sem meias-palavras, na boca dos personagens, é bastante diferente do que Kiyoshi Kurosawa faz em Tokyo Sonata, por exemplo. Embora ambos refiram-se ao modelo familiar japonês como uma idéia falida e caduca, em Sad Vacation a afronta não se dá pela forma, mas pelo próprio conceito primeiro da coisa. A questão não são os comportamentos viciados e perniciosos atribuídos usualmente a cada papel familiar, mas o sentido em si que conforma o conceito de papel familiar, que estabelece a existência de um determinado funcionamento social de acordo com laços sanguíneos. Neste sentido, Aoyama é o mais ocidental dos cineastas japoneses atuais. Suas preocupações orbitam em torno de sistemas de valores muito menos ligados à cultura local do que seus contemporâneos, e seu horizonte de referências – a começar pelas escolhas musicais – é amplo e variado, alimentando-se freqüentemente da universalidade da cultura pop internacional. (TM)

Quinta-feira, 9 de outubro de 2008
Da inversão de expectativas – Esperava muito do filme novo de Kiyoshi Kurosawa. Por motivos óbvios, o primeiro dos quais, claro, é que trata-se de um dos maiores cineastas do mundo hoje. O segundo foi a repercussão em Cannes, com todo mundo frisando o absurdo que foi não terem colocado o filme em competição oficial, mas na paralela Un Certain Regard. É um desses momentos em que a gente faz torcida para que um cineasta incrível consiga o reconhecimento merecido: a ascensão para o primeiro escalão da hierarquia do mercado, ter distribuição internacional, ter seus filmes quase que automaticamente colocados na competição oficial de Cannes, etc. Do novo filme de Shinji Aoyama também tinha ouvido falar muito bem. Mas nunca tinha visto em seu cinema, apesar de alguns filmes muito bons, uma obra a ser alçada a um patamar mais significativo – sou desses que acham desmesurado os elogios feitos a Eureka, que atribuo mais ao tour de force de quatro horas do que ao filme propriamente – ainda que seja, admitidamente, um belo filme. E qual não foi a minha surpresa a de, vendo no mesmo dia os dois filmes desses dois cineastas japoneses, ver muito mais vigor e pulsação cinematográfica em Sad Vacation, de Shinji Aoyama? Claro, é totalmente despropositado jogar um contra o outro, não se trata disso. Mas Tokyo Sonata me parece um filme menor na carreira de Kurosawa, e parte disso parece ser justamente a tendência ao discurso globalizante, às necessidades de diagnóstico vasto da sociedade, da construção em painel, dos excessos de discursividade que diminuem a intensidade daquilo que há de melhor em seu cinema, o clima, o não-dito, a permanente sensação de ameaça (além de ser o cineasta que hoje melhor filma interiores, o que se vê logo no primeiro plano, mas nem tanto ao longo do filme). Assim, entendi de forma até negativa as demandas de inclusão do filme na competição oficial de Cannes: menos pela excelência artística do filme do que por filiar-se claramente à tendência reinante e chique do cinema de autor, ou seja, os dramas naturalistas com personagens arquetípicos porém ricos de "humanidade" (ou seja, falhados mas empatizáveis), com intriga tocando em temas sensíveis da "situação do mundo" (desemprego, orgulho, status, falta de comunicação) e dando a sensação de enriquecimento espiritual por comiseração com os males mundiais. O problema de Tokyo Sonata, claro, não está aí: é mais uma forma meio desproporcionada de fazer seus personagens chegarem a seus limites, e um painel em que se sente a mão do destino (isso é, do realizador) forçando as situações a fim de que elas cheguem à destinação pretendida. O filme lembra algumas vezes Yi Yi, de Edward Yang, e a comparação é bastante prejudicial ao filme de Kurosawa. O que não significa que seja um mau filme. Aqui, KK pode não ser mestre, mas chega quase sempre aos objetivos pretendidos, filmando de forma sóbria, elegante, distanciada, e em alguns momentos alcança o brilho de seus momentos mais impactantes. Já em Sad Vacation a tendência é um pouco oposta, é a de relevar alguns momentos menos bons porque a atmosfera geral conseguida por Shinji Aoyama é fabulosa: envolvidos numa palheta de cor em que sobressai um amarelo pastoso, personagens desgarrados vivendo entre a necessidade de cuidar e o inevitável de agredir, uma multidão (como sempre em seus filmes) de seres vagando por aí e um soberbo domínio do tempo, desses em que a gente vê um cineasta em pleno domínio de sua expressão. O tema é o mesmo de sempre: o mundo como uma enorme clínica de recuperação, um hospital, um sanatório para pessoas cansadas ou deprimidas. Mas as ressonâncias, as rimas entre objetivos de personagens aqui são mais densas, a gratuidade da agressão é maior, e o desassossego também. É o tipo de filme que, imagina-se, Wim Wenders estaria fazendo se não tivesse se perdido em algum lugar dos anos 80 e começado a fazer os piores filmes do mundo como vem fazendo há já duas dezenas de décadas. Pra deixar curto, Sad Vacation é um dos filmes do festival. E do ano. (RG)

Quarta-feira, 8 de outubro de 2008
O cinema de Hong Sang-soo baseia-se prioritariamente na idéia de repetição e variação, como nos movimentos de uma música, em que uma leve progressão de escala é capaz de mudar o panorama. Assim sendo, cada filme seu retoma e expande o trabalho daqueles que o precederam, numa espécie de moto contínuo em constante renovação. Se, dentro de cada um deles, os ecos entre eventos são valorizados como parte essencial da experiência humana em sociedade, no conjunto da obra, tal proposta ganha outras dimensões. Trata-se, sem dúvida, de uma obra que ganha ainda mais força quando vista em conjunto, pela percepção gradativa das recorrências, repetições e reverberações de um filme pra outro. Mas, ao mesmo tempo, cada um dos filmes do cineasta possui uma graça singular e uma lógica interna às imagens que parece pertencer só a ele. Pois tudo para Hong se passa num pacto absoluto entre a câmera e a cena que ela registra, de forma que somos incapazes de dizer qual determina a outra. Neste amálgama misterioso entra ainda a naturalidade sublime dos atores, que dá às mais triviais das cenas um aspecto épico de observação aguda da natureza humana. E em Noite e Dia a atenuação da linha condutora do roteiro e a narrativa fundamentalmente episódica intensificam a atenção aos detalhes e às minúcias da representação. O fato do personagem carregar sempre um saco plástico com sua carteira e afins, ou a forma como expressamos quase sem querer um sentimento ao falar de outra pessoa equivalem-se em importância neste cinema capaz de organizar em relato o inorganizável, o essencialmente fugidio e o inexoravelmente abstrato da experiência cotidiana. Por um momento nos perguntamos se não é apenas pela repetição que Hong é capaz de promover a apuração da fixação deste intangível que ele busca, e que parece materializar-se cada vez mais a cada filme. Noite e Dia assusta sobretudo por ser um filme que não possui motivação concreta para ser posto em marcha, por ser um filme cujo argumento é apenas uma desculpa patente para desenvolver uma série de situações. Afinal, quem foge apavorado de seu país por ter fumado maconha casualmente com um grupo de jovens? E, no entanto, sabemos, pela ironia das cenas e pela montagem que potencializa o aspecto fragmentário da narrativa ao cortar sempre em pontos inusitados, impedindo que momentos de trivialidade ganhem o aspecto sutilmente dramatizado a que estamos acostumados no cinema, que nada está ali por acaso e que tudo, absolutamente tudo, é fruto de uma construção milimétrica, de efeitos meticulosamente pensados. Por tudo isso, Hong Sang-soo não cessa de nos surpreender dentro do “mesmo”. (TM)

Terça-feira, 7 de outubro de 2008
Articular as partes com o todo é sempre um dilema em todas as artes. No cinema, não poderia ser diferente. Às vezes, o elogio do fragmentário, do episódico, do contraste interno da obra no limite do paradoxo. Às vezes, a obra como um sopro, como a rima de todas as partes, a homogeneidade flagrante e encantadora de um todo muito bem orquestrado. Mas que, por outro lado, também pode dar numa obra por demais armada, exata em demasia, aproveitando o repouso fácil na constância do mesmo. Dir-se-ia dois lados totalmente diferentes da arte, mas nem sempre são assim tão distantes... por vezes até no mesmo cineasta vemos filmes pendendo para um tipo de estratégia, outros pendendo para outro. Quatro Noites Com Anna, soberbo exercício de sobriedade clínica no relato de um apaixonado platônico patológico, mostra um Skolimowski maestro de toda diversidade do mundo sensível. Manejo impecável da luz – sem dúvida um dos fortes do filme –, do ritmo, do clima de mal-estar e confusão provocado pelo filme, e no universo perturbador do personagem, que pode evocar desde o herói de Não Amarás, de Kieslowski, até o protagonista de Spider, de Cronenberg. Falta ao filme, no entanto, o mergulho, o flerte com o perigo do descontrole: aquele mundo é organizado demais, conformado às necessidades do filme, não comporta seu avesso. Considerando que a narrativa do filme já emprega artifícios costumeiros do cinema de arte – personagem abobalhado porém romântico, evolução de arco dramático a partir da descrição minuciosa e minimalista de suas afecções, de seu descolamento em relação ao meio em que vive, etc. –, o filme mostra um portentoso cineasta em modo sereno, quase discreto, certamente notável, mas sem espaço para vôos mais altos. Do outro lado do espectro, Na Guerra de Bertrand Bonello é um filme deliberadamente irregular, desigual, contendo um sem-número de auto-indulgências, deixando vários pontos em aberto e filmando a partir do fetiche por atores, lugares, músicas, situações. Algumas delas, aliás, são hilárias e/ou saborosas (ao menos num testemunho pessoal): Mathieu Amalric ficando preso num caixão, Clotilde Hesme numa loja de discos, Asia Argento criando música de drones num ritual purificador, Bob Dylan, Robert Wyatt sendo tocados... Por outro lado, citações bobas a Apocalypse Now, a Mal dos Trópicos, a velha neurose depressiva do cinema intello francês. Uma definição parcial, aliás, seria um filme de Monteiro em que, ao invés de um gaiato perverso, temos um protagonista passivo e neurótico. Filme em modo menor sobre a falta de inspiração do artista ou ambição demasiada em fazer seu 8 1/2? Talvez nalgum lugar entre as duas definições, o que dá um filme interessante de ver mas nada com uma força mais significativa. Na mesma chave da fragmentação, do contraste de humores: Minha Mágica de Eric Khoo, Leonera de Pablo Trapero (por que diabos, aliás, estão chamando o filme no festival de LA Leonera?). O primeiro mistura dois sentimentos paradoxais, o sentimentalismo do drama familiar mais piegas com o asqueroso da automutilação mondo cane, conseguindo um efeito notável de sensações misturadas. O segundo pelo roteiro em etapas, em personagens que aparecem e somem, o cotidiano da cadeia transformado em coleção dos momentos mais dramatizáveis e "filmáveis", com movimento, cor, vibração (o que, aliás, é responsável por muito do charme do filme, mas também por suas limitações de abordagem). Skolimowski, Khoo, Trapero, Bonello, preferir quais? Fragmento ou todo? Desnecessário escolher, porque a grande arte pode vir de qualquer um dos lados. Temos aqui exemplos de quatro cineastas que em quatro filmes deram mostra das forças e das fraquezas de cada tipo de procedimento. (RG)

Domingo, 5 de outubro de 2008
Começo de dia de eleição, cabe notar que até agora quase todos os filmes que foram mais queridos pela redação de Contracampo são filmes que poderiam estar no festival de 2007: Guerin, Hou, Rohmer comandam facilmente nosso quadro de cotações, tendo apenas Aquele Querido Mês de Agosto, de Miguel Gomes, e, um tantinho mais abaixo, Noite e Dia de Hong Sang-Soo e A Mulher Sem Cabeça de Lucrecia Martel na ordem das preferências (é claro que as estrelinhas são apenas um demonstrativo redutor, mas...). É ótimo, naturalmente, que esses filmes tenham vindo mesmo um ano depois. O preocupante é saber onde estão os grandes filmes do circuito de festivais de 2008, se estarão escondidos nos últimos dias do festival ou se não apareceram para a seleção desse ano (algo que, de qualquer jeito, só será respondido pela prática em alguns anos). No entanto, como julgamento apressado de meio de percurso, ainda não estamos com todo o desprendimento para dizer, com Frank Sinatra, que "it was a very good year". Mas Eric Rohmer não quer saber de nada disso e fez em 2006 (apesar de só exibido no final de 2007) um filme delicioso, totalmente reminiscente de seu veio mussetiano (vale lembrar que as Comédias e Provérbios que fazem o título de uma série de filmes de Rohmer são antes um título de relatos de Alfred de Musset), sobre peripécias e mais peripécias sobre a concretização do laço amoroso. Baseado num romance extremamente influente no século XVII, o filme preza pela simplicidade e pela frontalidade das belas cores, dos belos gestos, dos belos corpos: vemos basicamente pastores e druidas caminhando pelo campo, em jardins, à beira do rio, ou em interiores bem decorados. Nada ostentatório, nada pesado: são a graça e a fluidez que carregam o filme, que apesar de usar um "vocabulário" semelhante ao dos últimos filmes de Straub e Huillet, nada tem a ver com os filmes deles. Os discursos sobre o amor, marcantes no romance original de Honoré d'Urfé, também aparecem aqui com grande destaque, dando o ar de diálogos socráticos a certas cenas (sobretudo as de embate entre a mesura e a desmesura, e a validade do amor pela alma contra o amor pelo corpo). Um filme que sumariza de forma quase exemplar todas as preocupações artísticas de Rohmer, seu anacronismo gritante (do qual ele sempre soube tirar proveito artístico, ver A Inglesa e o Duque), seu estudo sobre o comportamento humano e seu amor pelas artimanhas do destino e, sobretudo, das próprias pessoas umas com as outras (pode-se dizer que é por caprichos imperiosos que os dois amantes se repelem e por uma exacerbação desses caprichos que eles se reúnem). Existem filme mais propenso à revisão do que A Mulher Sem Cabeça? Ao menos no testemunho pessoal e no dos amigos que nos rodeiam, não. Todos revelam o desejo de revê-lo. Menos pelo presumido obscurantismo do filme do que por ser um filme em que a percepção é posta à prova, e o filme é extremamente bem sucedido em entupir a banda sonora e visual, com seus desfocados e todas as vozes que entram e saem, de modo a criar no espectador uma perturbação sensorial semelhante à da protagonista. Em revisão, o filme cresce e, já sabendo por onde vai, podemos melhor admirar a construção e o talento de Lucrecia Martel em dramatizar o cotidiano e a rede familiar como confinamento, a vida comum como filme de terror. Com mais dias assim, Sinatra até corre o risco de aparecer... (RG)

Sábado, 4 de outubro de 2008
Todo filme de Hong Sang-Soo é igual. Todo filme de Hong Sang-Soo é diferente. Além da repetição e da diferença desempenharem papéis decisivos em seu cinema, ele deve rejubilar-se por retrabalhar as mesmas situações, os mesmos procedimentos de filmagem, as mesmas cenas de conversa na rua, no bar e no quarto, as cenas de cama, e extrair de tudo isso sempre algo vigoroso e novo. Noite e Dia, então, é uma comédia dramática, calcada no cotidiano, no acaso dos encontros, nas incertezas dos personagens, de seus instintos, suas obsessões. A repetição desempenha um papel importante em algumas situações, mas não exatamente na estrutura – nenhuma divisão em duas partes espelhadas, estratégia costumeira de Hong. O fato de ser passado na França não muda em quase nada o esquema: o filme acontece todo entre personagens coreanos, como se Paris fosse uma extensão da Coréia. E embora Noite e Dia encante pelo clima do todo, pelo humor particular, a graça, a leveza, o filme também surpreende pela riqueza dos detalhes e pela minúcia das caracterizações (o que naturalmente vale para todos os seus filmes). No dia anterior, Puffball, de Nicolas Roeg, é o típico filme só tolerado por quem preza a mise en scène à frente de todo o resto no cinema. A dramaturgia é capenga, os atores estão canhestros (apesar da beleza estonteante de Kelly Reilly), mas a visceralidade de certas cenas é surpreendente. A temática é familiar à de O Bebê de Rosemary: o perigo das redondezas, os medos da gravidez, a constituição da família, seitas mágicas... E ainda que o filme não se sustente dramaticamente, ele consegue imprimir uma atmosfera de ameaça e de suspense permanente, que a fotografia granulada e evocativa dos anos 70 adensa. Filme evidentemente menor, Puffball oferece a típica experiência de fruição que precisa desviar dos momentos risíveis para ter acesso a algumas delícias meio escondidas. Mas que elas existem, existem. (RG)

Quarta-feira, 1º de outubro de 2008
Crônica da devoção – Uma palavra para caracterizar aquilo que Hou Hsiao-hsien tem de melhor: ritmo. Do investigador da memória e da história (as duas palavras são para ele uma só) de um país que ele foi nos anos 80, brotou o mais musical cineasta do cinema contemporâneo, com uma câmera de movimentos inacreditáveis, ao mesmo tempo discretos e determinantes – cortesia de (Mark) Lee Ping-Bing – e seres e mundo em eterna mobilidade. Não uma mobilidade individual, mas uma mobilidade do cosmos. Poderíamos dizer que o cinema de Hou Hsiao-hsien é sobre o eterno movimento dos corpos (de pessoas, de trens e demais objetos), e sobre como a luz – ao mesmo tempo móvel ela também, e condição de possibilidade para a percepção desse movimento – incide sobre esses corpos. A Viagem do Balão Vermelho é uma espécie de continuação de Café Lumière, em que a narrativa, minúscula, sumária, era apenas um propósito para capturar a vivacidade das ruas de Tóquio, o clima dos bares e livrarias, o estilo dos personagens. Obra da delicadeza, a suprema beleza de A Viagem do Balão Vermelho está nessa entrega a uma degustação qualitativa do tempo, dramatizando seres humanos e espaço como uma coisa única, como um bloco. O que o filme faz com o espaço do apartamento, chapando a tridimensionalidade no enquadramento mais utilizado mostrando a mesa e dando para a cozinha, e ao longo do filme "acrescentando", aposentos, revelando detalhes sobre cantinhos, exprimindo a confusão da vida da personagem, tudo isso é extremamente rico, novo, pulsante, musicalidade que se sente pelo olho, potência total do cinema como modulação do tempo e do espaço transformando-os em sensação. E ainda assim o filme sabe ser um comentário sobre a contemporaneidade, consegue extrair o que é possivelmente a maior atuação de Juliette Binoche em todos os tempos (e fora de seu registro costumeiro), ou seja, consegue dar conta das expectativas que um "filme comum" gera. Por essas e outras é que achamos que nosso HHH é o sujeito que faz os melhores filmes hoje no mundo. E A Viagem do Balão Vermelho é um dos melhores exemplos disso. (RG)

Terça-feira, 30 de setembro de 2008
Duas notas curtas e desagradáveis, porém necessárias porque a época de festival não é só feita de embevecimento com os filmes, mas também das travas a eles. Portanto, é preciso comentar a exibição de um dos filmes mais esperados do Festival – por nós, na Contracampo, e pelo freqüentador regular que interessou-se pelo fato do filme estar na competição oficial em Cannes –, Um Conto de Natal, de Arnaud Desplechin. O filme foi exibido numa cópia DVCam de péssima qualidade e fora mesmo de sua janela oficial, o que ocasionou um monstro (há relatos de gente que não conseguiu ver três minutos, sabendo que aquilo não se tratava do original). Sabemos que o Festival faz isso de forma a atender uma demanda de público, mas a questão agora é de saber em que medida isso, a pretexto de respeito, não se trata do maior desrespeito que pode haver a uma obra de arte. É mais ou menos como pagar para ver um Matisse e deparar-se com cópias xerox em preto e branco de suas telas (o que até poderia constituir uma obra original interessante, mas jamais uma maneira fidedigna de exibir um Matisse). Por razões óbvias, esse filme passará em brancas nuvens aqui em nossa cobertura, porque de fato para nós ele não existiu. Apenas como uma nota de vergonha no evento. A segunda nota diz respeito ao Centro Cultural Banco do Brasil, que mais uma vez programou uma mostra de enorme interesse para o cinéfilo no exato momento em que o Festival do Rio acontece (lembram Rossellini ano passado?). Pode-se imaginar que haja argumentos em torno da importância de manter a sala cheia durante o festival, mas considerando as inúmeras mostras medianas do CCBB em época de vacas magras (infelizmente não é toda hora que tem algo do porte de um Resnais, um Altman, as melhores do ano até agora), vai como um ato de enorme má vontade com o público e com a comunidade programar algo que é do interesse do cinéfilo mais específico no exato momento em que ele tem suas atenções voltadas a filmes que ficarão por breve tempo aqui e que representam a única oportunidade de atualização internacional que ele terá. Dessa forma, temos um incomum cenário em que A Viagem do Balão Vermelho, de Hou Hsiao-hsien, tem suas duas sessões lotadas no Espaço de Cinema e Millennium Mambo, do mesmo Hou Hsiao-hsien, passa no CCBB e tem aproximadamente quinze espectadores quando, quinze dias depois, certamente teria o triplo, quádruplo disso. Os feitos do Centro Cultural Banco do Brasil para a cinefilia carioca são inumeráveis, mas quando ele começa a pensar mais em si mesmo e menos em seu espectador, a coisa começa a desandar feio. Não é nem espírito de competição: é pura sabotagem e má programação. (Ruy Gardnier)

Segunda-feira, 29 de setembro de 2008
Da dramatização dos espaços – sabemos que filmes em geral dramatizam personagens, situações entre personagens, ações de personagens. Difícil sair do esquadro focado no indivíduo, ainda que se almeje mais forte que isso (os personagens-arquétipo que representam uma nação, um estado de espírito, etc.). Mas há outras coisas a dramatizar, e apesar de não serem majoritárias, o cinema deu bom número de exemplos ao longo de sua história: O Encouraçado Potemkin dramatizou uma nação inteira recorrendo a um personagem coletivo, Rien que les heures, Berlim, Sinfonia da Metrópole e O Homem da Câmara dramatizaram a vida numa cidade grande, e mesmo hoje temos gente como Apichatpong Weerasethakul, que dramatiza um relato sendo passado de localidade em localidade (Misterioso Objeto ao Meio-Dia) ou a vida num hospital (o formidável Síndromes e um Século). Curiosamente, em dois dias seguidos, o Festival do Rio exibiu belos filmes que constroem sua estética a partir dos lugares, com eles e para eles. Falo de Na Cidade de Sylvia, de José Luis Guerin, e Aquele Querido Mês de Agosto, de Miguel Gomes. No filme de Guerin, não se sabe o que domina, a percepção da cidade ou das mulheres que habitam a cidade. Claro, o principal interesse do filme é o posicionamento do espectador, e o incrível poder delirante de sobrepor imagens mentais a imagens físicas (trabalhadas à perfeição lá pelo final do filme, no metrô), mas os planos da "cidade acontecendo", com garrafas de Heineken rolando pela calçada e menina bonita lendo livro na praça, não estão lá apenas para fazer figuração. Eles servem para compor, junto com as paredes e fachadas das casas e prédios, com as ruas e com as pessoas que passam por ela, um ritmo do espaço, espaço que naturalmente é representativo da vida do lugar. O filme pode ceder a algumas facilidades enervantes, mas dele ninguém tira o ímpeto de criar uma situação para dramatizar uma cidade (e a situação de um turista dentro dela) e de fato criar uma estética a partir daquele espaço. Aquele Querido Mês de Agosto parte de estratégia semelhante ao mostrar uma equipe de filmagens que, sem ter "o que filmar", filma o cotidiano e os espaços de toda uma região portuguesa até que ao final "vem", como que de graça, a história de ficção esperada, ainda que devidamente esburacada pelo que veio antes e pelo que continua vindo. Claro está que o foco do filme é acima de tudo um enorme questionamento sobre o que dramatizar, e uma conclusão de que aquilo que geralmente representa o pano de fundo – as ruas, os figurantes, as pessoas que habitam os espaços – é mais ou tão importante do que os protagonistas. O grande gesto do filme é o da sentimentalização dos espaços, e não é à toa que o plano mais emotivo, o do beijo dos dois, acontece num grande plano geral, em cima da ponte, com banda de coreto passando e botes circulando no rio. É como se Gomes estivesse dizendo que no fundo é a própria cidade que faz sua ficção, e que a ficção elaborada pelos argumentistas, com personagens individualizados e situações dramáticas acontecendo entre eles segundo um arco de evolução narrativa, fosse apenas um aspecto ínfimo de um todo muito maior, isto é, um espaço que se insinua, que se organiza, que se dramatiza. Aquele Querido Mês de Agosto tem a grandeza de brincar com as expectativas habituais do espectador (personagens, trama, narrativa, funcionalidade) e apontar para aquilo que realmente interessa a ele, um registro lúdico de pessoas e lugares, de acontecimentos e modos de vida que compõem a vida de uma localidade. No momento em que o cinema "de arte" está tão moldado por um tipo de dramatização minimalista-humanista que se torna uma fórmula insossa e rapidamente desgastada (A Criança dos Dardenne, Linha de Passe de Walter Salles, entre zilhões de outros), esses são filmes que de fato abrem caminhos. A seguir e ver que impacto fazem daqui a alguns anos. (Ruy Gardnier)

Domingo, 28 de setembro de 2008
Quando dei um google no diretor português Miguel Gomes, esperava constatar que Aquele Querido Mês de Agosto era seu primeiro longa-metragem. Mas que nada: seu primeiro longa é de 2004 (A Cara que Mereces). A impressão de assistir a um primeiro longa de jovem diretor não vinha de qualquer amadorismo verificado no filme, e sim do saboroso gosto de eterno começo que ele desperta e mantém por duas horas e meia (obra de frescor, de descoberta). Gomes parece ter não um, mas vários filmes para fazer, e aparentemente não abre mão de nenhum deles. Embora acabe encontrando seus personagens principais e ficando mais concentrado neles, o filme passa um bom tempo sendo uma mistura de atualidades, crônica sentimental, metadocumentário, comédia... O centro de gravidade a princípio parece inextricavelmente colado a um determinado espaço e suas pessoas, mas logo o filme expande seu universo e uma mancha de sangue no lençol se equipara à descoberta de um novo planeta. Que os termos não sugiram uma visão eloqüente: tudo é singelo em Aquele Querido Mês de Agosto. Um rio, uma ponte, uma música, um incêndio: são esses elementos que unem as trajetórias dos personagens. Sem a austeridade e a essência crepuscular de Trás-os-montes, o filme de Gomes (onde todo crepúsculo tem o dom de se transformar em aurora) é um eco longínquo, ao menos no plano do experimento, da magnífica obra de António Reis. (LCOJr.)

Domingo, 28 de setembro de 2008
Atualmente, a tragédia no cinema tem em geral a forma ou do melodrama assumido, ou do roteiro onisciente que esmaga seus personagens. Por isso, um filme como Sol Secreto, de Lee Chang-dong, é provocante. Temos a impressão de que ele está o tempo todo tentando filmar o infilmável: a “ira” dos céus descendo sobre uma só pessoa, uma vida inteira sendo submetida a testes extremos sem quê nem por quê. E, sem dúvida, a força da protagonista em cena canaliza todas as atenções para a maneira de representar e transmitir a dor de todas estas tragédias. Disto resulta a emanação de uma energia impressionante em alguns planos –  precisamente o que afasta o filme das narrativas de “mundo-cão” do cinema contemporâneo. Se tomássemos apenas a linha narrativa de Sol Secreto, poderíamos dizer que se trata de mais um filme em que a vida demonstra rasteiramente o quão desgostosa ela pode ser, mas a insistência num drama rocambolesco, com inúmeros pontos de virada, faz dele um exemplar incomum, digno de interesse – ainda que todas estas questões estejam longe de se apresentarem bem resolvidas no filme, e que a desordenância de suas “tentativas” originem muitas vezes cenas patéticas. Meu Marlon e Brando, por outro lado, não consegue tirar força alguma da estrutura dramática que apresenta. Somos convocados a acompanhar uma mulher em sua peregrinação incansável para encontrar-se com seu amado, habitante de um Iraque transformado em zona de guerra; mas em momento algum o filme é capaz de transmitir a intensidade dos sentimentos compartilhados por estes personagens, que, segundo suas próprias palavras, estão perdidamente apaixonados um pelo outro. O fato de não termos nenhuma imagem dos dois juntos previamente à separação apenas acentua isso: este amor tão proclamado nunca é sentido nem intuído pelo espectador. E fica claro que não se trata em absoluto de construir uma quimera – embora isto pudesse ter sido feito perfeitamente –, afinal o filme deixa-se levar completamente pela trivialidade do registro. Apesar de sua premissa instigante, filmar a história de amor real entre uma atriz e um ator com os próprios interpretando a si mesmos, Meu Marlon e Brando não consegue indagar a presença daquela sofrida figura feminina na imagem. E nem mesmo as vídeo-cartas enviadas pelo amado distante, do qual só temos realmente estas pálidas imagens, conseguem estabelecer um convincente caráter de abstração para a figura masculina, de uma falsa presença mediada pela textura do vídeo. Por fim, resta apenas o road-movie e um modesto retrato de uma zona assolada pela guerra, onde o maior problema para o cidadão regular é a obstrução completa do direito de ir e vir, de circular de acordo com os desejos pessoais. Neste aspecto político nada marcado, que permeia as imagens em sua superfície, o filme guarda seu maior trunfo, embora esteja longe de ser algo suficiente, dado o desenvolvimento do todo. E, falando de figuras pregnantes, uma das expressões mais cativantes que já vi num documentário recente é a de Josh Caouette, o filho de 11 anos de Jonathan Caouette (diretor de Tarnation), em Bi the Way. Se o filme não passa de um documentário televisivo na forma de costurar depoimentos de “especialistas” e envolvidos com o assunto da crescente bissexualidade na sociedade americana, não sabendo administrar a potência dos seus cinco personagens principais, a todo momento em que Josh entra em quadro, a imagem se ilumina de inusitado e de carisma. Como seu pai, Josh é um espetáculo em si mesmo, que na administração um quê descontrolada da própria imagem demonstra uma surpreendente afinidade com a câmera e uma habilidade impressionante de se fazer personagem de si mesmo. (TM)

Sábado, 27 de setembro de 2008
A principal curiosidade que O Último Reduto provoca diz respeito à entrada do político em nossas vidas, de como cada aspecto de nosso cotidiano está recheado de política e como nos apercebemos disso tão pouco. Mas se Rabah Ameur-Zaïmeche consegue criar essa disposição de olhar da parte do espectador (que nem é, eu diria, o principal objetivo de seu filme), eu diria que é exatamente por não chamar atenção para ela – o que seria, de certa forma, deslocá-la como acima do cotidiano, imbuí-las de uma dramaticidade (e do miserabilismo que aí decorre) que é exatamente seu oposto, como fazem em geral os filmes "políticos" –, por tomar um partido meramente observacionista diante daquilo que apresenta, e deixar a imagem, o poder perspectivo da imagem, fazer o resto. Curiosamente, os cineastas franco-árabes têm sido capazes de fazer isso, criando filmes irregulares porém vivos e cheios de interesse (o outro exemplo, mais bem sucedido, até, seria O Segredo do Grão, de Abdellatif Kechiche). Ao invés de copiar o catastrofismo espetaculoso de Babel e Crash e o miserabilismo de Ken Loach, que filma seus personagens mais como coitadinhos do que como gente, nossos cineastas "internacionais" – os oscarizados e canneados – deviam atentar para esse cinema que olha para seus personagens acima de tudo como cidadãos, e dão a eles esse respeito. Quanto a Pan-Cinema Permanente, de Carlos Nader, é um desses filmes que a gente gosta mesmo sabendo que ele cumpre apenas pela metade o que promete. O que o distingue do retrato biográfico é o mesmo que ele não consegue manter até o final, o regime de autoficção eterna (daí o título) da vida e obra de Waly Salomão (ou Sailormoon), poeta e grande letrista da música popular brasileira. Homem de gestos largos e vida vivida como performance, Waly em tela é um transe, e o filme é extremamente feliz nos momentos que pinça de suas intervenções, e muito terno na maneira de apresentá-las. Tâo minucioso no tratamento iconográfico, o filme não apresenta o mesmo vigor quando faz o que os documentários convencionais fazem, ou seja, apresentar depoimentos, mostrar objetivamente aspectos da obra, falar das circunstâncias da morte, por exemplo. Tudo isso acaba tirando o filme de seu movimento e vibração (principalmente a seqüência da morte), e ainda que os depoimentos de Antônio Cícero e Caetano Veloso sejam extremamente lúcidos e carinhosos, eles acabam perspectivando de maneira muito estranha as falas e os movimentos de Waly Salomão. Em todo caso, um filme vigoroso que é enormemente recomendável a todos e absolutamente obrigatório para quem se interessa por música, poesia e cultura brasileira. (RG)

Sexta-feira, 26 de setembro de 2008
Filmes vistos em cabine: um inominável, horroroso filme espanhol rodado inteiramente na África (menos o final), todo dublado em espanhol (!!) e canhestro em todos os aspectos: arco dramático, linguagem visual, vivacidade. O nome? 14 Quilômetros, de Gerardo Olivares, e é o típico filme que justifica o emprego do termo "abaixo da crítica". E, levando ao pé da letra, não faremos crítica. Liverpool, de Lisandro Alonso, poderia ser tratado de forma não muito diferente, mas é um cineasta. Ou seja, existe um conceito por trás das imagens que ele filma e monta. Isso não impede que o conceito sirva como uma enorme desculpa para uma série de facilidades empregadas na construção do quadro, na aleatoridade das situações retratadas e na "narrativa" que o filme constrói. A crítica mais honesta e exata a seu filme, Liverpool, seria simplesmente escrever "Portsmouth" no espaço dedicado ao texto. Tão lacônico, imprevisível, nonchalante e bobo quanto seu filme. O Tempo e a Cidade é um desses filmes memorialistas, que utiliza imagens de arquivo para fazer uma reflexão sobre a passagem das coisas e restituir e evocar o poder de tempos passados. No fundo, pouco importa que o filme seja passadista e ressentido com a contemporaneidade. Importa antes que Terence Davies é incapaz de transfigurar as imagens que utiliza e dar a elas algo além do estatuto de registro. Os mais apressados vão correndo dizer que é proustiano, mas não existe nem um fiapo de densidade temporal construído através da tessitura da linguagem, só uma voz off empostada evocando opiniões, citando Shakespeare, Emily Dickinson e T.S. Eliot, e um escorrimento de imagens que a gente vê em qualquer documentário para televisão. Quem dera houvesse a destreza de um Chris Marker, de um Sganzerla ou mesmo um Jia Zhangke para trabalhar essas imagens e as densidades temporais trabalhadas por elas. Por fim, A Mulher Sem Cabeça, de Lucrecia Martel. Reações divididas da platéia que quase lotou a cabine, e também no seio da redação e dos amigos da revista. Quanto a mim, acho certamente mais desafiador e denso do que o anterior, A Menina Santa, e menos irritantemente formulaico e derivativo de Robert Bresson (na verdade, nada). Enquanto dou o tempo de uma revisão para me relacionar melhor com o filme, adianto que o estado de desorientação perceptiva realizado por Martel através de jogos de foco, edição de som e construção do extracampo a partir de uma personagem com incertezas acerca da realidade material que a rodeia, é impressionante. Ao menos, adaptando a busca do grego Diógenes, conseguimos passear pelas cabines de imprensa do Festival do Rio – a ruindade dos filmes exibidos nas cabines é mitológica, os comentários a cada ano testemunham e reencenam o drama –, mesmo sem lanterna, e ter achado um filme. (RG)

 

 
 





Foto do dia (10/10): a genialidade cênica
de Shah Rukh Khan em Om Shanti Om.


Foto do dia (9/10):
Sad Vacation, de Shinji Aoyama


Foto do dia (7/10):
Quatro Noites Com Anna, de Jerzy Skolimowski


Foto do dia (5/10):
Les Amours d'Astrée et de Céladon, de Eric Rohmer


Foto do dia (4/10): Noite e Dia de Hong Sang-Soo.


Foto do dia (1º/10):
A Viagem do Balão Vermelho de Hou Hsiao-hsien.


Foto do dia (30/9): Millennium Mambo de Hou Hsiao-hsien, passando em linda cópia 35mm para poucos no CCBB.


Foto do dia (29/9): a vigia que se torna protagonista de
Aquele Querido Mês de Agosto, de Miguel Gomes


Foto do dia (28/9): A imagem da dor em Sol Secreto, de Lee Chang-dong


Foto do dia (27/9): Waly Salomão em
Pan-Cinema Permanente, de Carlos Nader


Foto do dia (26/9): A Mulher Sem Cabeça, de Lucrecia Martel