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Domingo, 12 de outubro de 2008
À guisa de balanço? Mesmo considerando
sensatamente nossa posição de meio de
percurso (porque ainda tem a Mostra) e a incompletude
de nossa posição (ficaremos restritos
ao que foi selecionado para os festivais), é
impossível deixar de notar que o cinema internacional
em 2008 ao menos a parte que vimos teve
coisas muito boas, algumas até excelentes, mas
nada com propostas a ponto de reconfigurar ou adicionar
questionamentos às preocupações
artísticas do cinema contemporâneo. Aqueles
que mais chegaram próximos disso Aquele
Querido Mês de Agosto, Sad Vacation pra
alguns, lembrando que A Viagem do Balão Vermelho,
Na Cidade de Sylvia e Guerra Sem Cortes
"aconteceram" para nós em Sâo
Paulo 2007 estão mais seguindo um continuum
de cinema contemporâneo do que impondo novas visões
que provocam novos questionamentos sobre imagens em
movimento (e a década está cheia desses
momentos, de Hou Hsiao-hsien a Claire Denis, de Pedro
Costa a Apichatpong Weerasethakul, de Gus Van Sant a
Hong Sang-Soo, de Abbas Kiarostami a Todd Haynes). Nada
desanimador ou catastrofista, naturalmente, mas até
o momento temos a idéia de 2008 como um ano que
passa docemente como um período de consolidação,
de respiro ou mesmo de parênteses. O que não
significa que não hajam bons filmes. Ouve-se
à boca pequena que o festival foi fraco esse
ano, que a seleção internacional está
insuficiente e chama-se até atenção
para a falta de filmes de grandes cineastas no ano (o
que é, se pararmos para pensar, uma evidência
gritante). Mas, avessos que somos ao discurso da decadência,
sempre achamos os filmes que nos fazem continuamente
acreditar na vitalidade de uma arte que, ainda com todas
as ameaças de institucionalização
(hoje curiosamente vindas mais do "cinema de autor"
do que do comercial, que se renova, vide Trovão
Tropical, Superbad e as comédias americanas),
ainda é capaz de driblar o já dito/já
experimentado e nos emocionar com grandes momentos de
expressão cinematográfica. Abaixo, algumas
listas de preferidos da redação:
Leonardo Levis
1. Les Amours d'Astrée et de Céladon
Na Cidade de Sylvia
3. Aquele Querido Mês de Agosto
A Viagem do Balão Vermelho
5. Leonera
A Mulher Sem Cabeça
Tokyo Sonata
8. A Fronteira da Alvorada
Guerra Sem Cortes
Noite e Dia
Quatro Noites com Anna
Ruy Gardnier
1. A Viagem do Balão Vermelho
2. Noite e Dia
3. Aquele Querido Mês de Agosto
4. Guerra Sem Cortes
5. Sad Vacation
6. Les Amours d'Astrée et de Céladon
7. A Mulher Sem Cabeça
8. Na Cidade de Sylvia
9. Inútil
10. Tokyo Sonata
Sérgio Alpendre
1. Les Amours d"astrée et de Céladon
2. Na Cidade de Sylvia
3. Aquele Querido Mês de Agosto
4. Vicky Cristina Barcelona
Tokyo Sonata
6. A Fronteira da Alvorada
7. A Viagem do Balão Vermelho
8. Leonera
Noite e Dia
Segurando as Pontas
Tatiana Monassa
Na Cidade de Sylvia
A Viagem do Balão Vermelho
Noite e Dia
Sad Vacation
Aquele Querido Mês de Agosto
Tokyo Sonata
Les Amours d'Astrée et de Céladon
Na Guerra
A Mulher Sem Cabeça
Om Shanti Om
Leonera
(RG)
Sexta-feira, 10 de outubro de 2008
É sempre um grande prazer acompanhar
o trabalho de um ator capaz de (re)definir o cinema de seu tempo. Especialmente
quando sua força não vem necessariamente de uma associação com um autor, mas de
uma genialidade cênica própria. É o que se poderia dizer de grandes nomes do
cinema clássico, capazes de brilhar mesmo em filmes medíocres, e é o que se
pode dizer hoje, sem medo algum, de Shah Rukh Khan, “o” astro bigger than
life do cinema bollywoodiano dos últimos quinze anos. Seu estrondoso
sucesso deriva em grande parte, sem dúvida, da sua admirável maleabilidade de
expressões faciais e corporais. Transportando para os trejeitos e a voz a
obviedade cristalina da linguagem narrativa do cinema de Bollywood, Khan é
capaz não apenas de traduzir em seu físico todo o sentido da cena, como de
surpreender a cada instante, com grande inventividade. Aperfeiçoando-se ao
longo dos anos, ele talvez tenha atingido o ápice de sua versatilidade em Om
Shanti Om. A sutil camada auto-reflexiva do filme de Farah Khan proporciona
ao ator a possibilidade de um leve distanciamento do personagem, em cada uma de
suas encarnações – sejam as duas vidas de Om, sejam os diferentes papéis que
este assume nos filmes dentro do filme. O subtexto crítico daí advindo confere à
encenação uma autoconsciência da representação, tanto no sentido da
caracterização visual quanto da interpretação. E este sentimento Shah Rukh Khan
transmite à perfeição. Pois a cada cena podemos perceber simultaneamente sua
entrega à pura ficção exagerada e seu movimento de assumir diferentes jogos de
cena. Isto tudo confere a Om Shanti Om um frescor surpreendente. Mas
para além de se beneficiar do luminoso ator, Farah Khan faz de seu filme uma
montanha russa por diversos registros narrativos em que o verdadeiro interesse
nunca é a história a ser contada, mas a forma como ela se desvela na tela. Pois
o aspecto meta-lingüístico do filme não se manifesta com uma simples
tematização de sua própria feitura, mas pela afirmação de uma consciência dos
códigos e convenções de representação. Desta forma, todos os elementos (visuais
ou não) que caracterizam a década de 70 contrastam brutalmente com aqueles que
definem a cultura de massa atual. A incorporação de uma estética rapper,
popularizada na imagem pública de diversos músicos americanos e no universo
propagado em seus videoclipes, oscila entre a crítica à importação de um
universo de símbolos estrangeiros e o próprio fascínio com a plasticidade
apelativa que a caracteriza. Em meio à orgia visual do filme, Khan faz ainda
comentários bem-humorados sobre o sistema de produção de Bollywood, no qual o
diretor é absolutamente ofuscado pelas estrelas e produtores, e monta um
pequeno conto moral no qual o impulso de vingança transmuta-se num inspirado
jogo em defesa da responsabilidade sobre os próprios atos, especialmente quando
uma posição social confere um poder superior. (TM)
Quinta-feira, 9 de outubro de 2008
Aoyama é o cineasta do trauma e do
deslocamento. Deslocamentos de percepção diversos, mas, sobretudo,
deslocamentos sociais. Seus personagens são eternos desajustados em busca de
novos laços, de alianças possíveis para superar seu afastamento do complexo social
institucionalizado. Em Sad Vacation, mais uma vez todas estas questões
vêm à tona, numa narrativa lacunar, dispersa e elíptica, na qual a inferência
ativa do espectador é absolutamente necessária para completar os circuitos de
sentido propostos. Às vezes, temos a impressão de estar diante de uma colcha de
retalhos, ou de diferentes filmes agrupados ocasionalmente num só todo. O fato
é que a heterogeneidade dos diversos momentos de Sad Vacation cria a
sensação de um filme que flutua sobre os espaços e os personagens, como as
bolhas de sabão que vemos os personagens soprarem. Com grande leveza, Aoyama
monta uma intrincada estrutura na qual a montagem exerce um papel fundamental
no estabelecimento de uma narrativa sem clímax explícito, que parece avançar sempre
por camadas, como evidenciado pelo surpreendente efeito criado pelo
“adiantamento” de algumas cenas, que adentram brevemente a cena anterior a
elas, denotando a inevitabilidade da progressão dos estados, ao mesmo tempo em
que esfacelam a noção de tempo linear. Todos os personagens de Sad Vacation encontram-se em estágios provisórios que não supõem a existência do seu oposto,
da mesma forma que a sociedade e a lógica urbana encontram-se no fora de campo,
distantes, na área de abstração da consciência de mundo do filme. E, ali, naqueles
espaços internos, onde os impulsos por vezes se condensam e ganham por um
momento densidade, temos mais uma vez o irrompimento da violência no seio da
familiaridade e a negação de laços que não sejam advindo de ligações sentimentais
pela partilha de uma forte experiência individual, particularmente de
experiências negativas. A forma como o filme nega a concepção tradicional de
família, colocando um questionamento aos papéis familiares, frontal e sem
meias-palavras, na boca dos personagens, é bastante diferente do que Kiyoshi
Kurosawa faz em Tokyo Sonata, por exemplo. Embora ambos refiram-se ao
modelo familiar japonês como uma idéia falida e caduca, em Sad Vacation a afronta não se dá pela forma, mas pelo próprio conceito primeiro da
coisa. A questão não são os comportamentos viciados e perniciosos atribuídos
usualmente a cada papel familiar, mas o sentido em si que conforma o conceito
de papel familiar, que estabelece a existência de um determinado funcionamento
social de acordo com laços sanguíneos. Neste sentido, Aoyama é o mais ocidental
dos cineastas japoneses atuais. Suas preocupações orbitam em torno de sistemas
de valores muito menos ligados à cultura local do que seus contemporâneos, e
seu horizonte de referências – a começar pelas escolhas musicais – é amplo e
variado, alimentando-se freqüentemente da universalidade da cultura pop
internacional. (TM)
Quinta-feira, 9 de outubro de 2008
Da inversão de expectativas Esperava muito
do filme novo de Kiyoshi Kurosawa. Por motivos óbvios,
o primeiro dos quais, claro, é que trata-se de
um dos maiores cineastas do mundo hoje. O segundo foi
a repercussão em Cannes, com todo mundo frisando
o absurdo que foi não terem colocado o filme
em competição oficial, mas na paralela
Un Certain Regard. É um desses momentos em que
a gente faz torcida para que um cineasta incrível
consiga o reconhecimento merecido: a ascensão
para o primeiro escalão da hierarquia do mercado,
ter distribuição internacional, ter seus
filmes quase que automaticamente colocados na competição
oficial de Cannes, etc. Do novo filme de Shinji Aoyama
também tinha ouvido falar muito bem. Mas nunca
tinha visto em seu cinema, apesar de alguns filmes muito
bons, uma obra a ser alçada a um patamar mais
significativo sou desses que acham desmesurado
os elogios feitos a Eureka, que atribuo mais
ao tour de force de quatro horas do que ao filme propriamente
ainda que seja, admitidamente, um belo filme.
E qual não foi a minha surpresa a de, vendo no
mesmo dia os dois filmes desses dois cineastas japoneses,
ver muito mais vigor e pulsação cinematográfica
em Sad Vacation, de Shinji Aoyama? Claro, é
totalmente despropositado jogar um contra o outro, não
se trata disso. Mas Tokyo Sonata me parece um
filme menor na carreira de Kurosawa, e parte disso parece
ser justamente a tendência ao discurso globalizante,
às necessidades de diagnóstico vasto da
sociedade, da construção em painel, dos
excessos de discursividade que diminuem a intensidade
daquilo que há de melhor em seu cinema, o clima,
o não-dito, a permanente sensação
de ameaça (além de ser o cineasta que
hoje melhor filma interiores, o que se vê logo
no primeiro plano, mas nem tanto ao longo do filme).
Assim, entendi de forma até negativa as demandas
de inclusão do filme na competição
oficial de Cannes: menos pela excelência artística
do filme do que por filiar-se claramente à tendência
reinante e chique do cinema de autor, ou seja, os dramas
naturalistas com personagens arquetípicos porém
ricos de "humanidade" (ou seja, falhados mas
empatizáveis), com intriga tocando em temas sensíveis
da "situação do mundo" (desemprego,
orgulho, status, falta de comunicação)
e dando a sensação de enriquecimento espiritual
por comiseração com os males mundiais.
O problema de Tokyo Sonata, claro, não
está aí: é mais uma forma meio
desproporcionada de fazer seus personagens chegarem
a seus limites, e um painel em que se sente a mão
do destino (isso é, do realizador) forçando
as situações a fim de que elas cheguem
à destinação pretendida. O filme
lembra algumas vezes Yi Yi, de Edward Yang, e
a comparação é bastante prejudicial
ao filme de Kurosawa. O que não significa que
seja um mau filme. Aqui, KK pode não ser mestre,
mas chega quase sempre aos objetivos pretendidos, filmando
de forma sóbria, elegante, distanciada, e em
alguns momentos alcança o brilho de seus momentos
mais impactantes. Já em Sad Vacation a
tendência é um pouco oposta, é a
de relevar alguns momentos menos bons porque a atmosfera
geral conseguida por Shinji Aoyama é fabulosa:
envolvidos numa palheta de cor em que sobressai um amarelo
pastoso, personagens desgarrados vivendo entre a necessidade
de cuidar e o inevitável de agredir, uma multidão
(como sempre em seus filmes) de seres vagando por aí
e um soberbo domínio do tempo, desses em que
a gente vê um cineasta em pleno domínio
de sua expressão. O tema é o mesmo de
sempre: o mundo como uma enorme clínica de recuperação,
um hospital, um sanatório para pessoas cansadas
ou deprimidas. Mas as ressonâncias, as rimas entre
objetivos de personagens aqui são mais densas,
a gratuidade da agressão é maior, e o
desassossego também. É o tipo de filme
que, imagina-se, Wim Wenders estaria fazendo se não
tivesse se perdido em algum lugar dos anos 80 e começado
a fazer os piores filmes do mundo como vem fazendo há
já duas dezenas de décadas. Pra deixar
curto, Sad Vacation é um dos filmes do
festival. E do ano. (RG)
Quarta-feira, 8 de outubro de 2008
O cinema de Hong Sang-soo baseia-se
prioritariamente na idéia de repetição e variação, como nos movimentos de uma
música, em que uma leve progressão de escala é capaz de mudar o panorama. Assim
sendo, cada filme seu retoma e expande o trabalho daqueles que o precederam,
numa espécie de moto contínuo em constante renovação. Se, dentro de cada um
deles, os ecos entre eventos são valorizados como parte essencial da
experiência humana em sociedade, no conjunto da obra, tal proposta ganha outras
dimensões. Trata-se, sem dúvida, de uma obra que ganha ainda mais força quando
vista em conjunto, pela percepção gradativa das recorrências, repetições e
reverberações de um filme pra outro. Mas, ao mesmo tempo, cada um dos filmes do
cineasta possui uma graça singular e uma lógica interna às imagens que parece
pertencer só a ele. Pois tudo para Hong se passa num pacto absoluto entre a
câmera e a cena que ela registra, de forma que somos incapazes de dizer qual
determina a outra. Neste amálgama misterioso entra ainda a naturalidade sublime
dos atores, que dá às mais triviais das cenas um aspecto épico de observação
aguda da natureza humana. E em Noite e Dia a atenuação da linha condutora
do roteiro e a narrativa fundamentalmente episódica intensificam a atenção aos
detalhes e às minúcias da representação. O fato do personagem carregar sempre
um saco plástico com sua carteira e afins, ou a forma como expressamos quase
sem querer um sentimento ao falar de outra pessoa equivalem-se em importância neste
cinema capaz de organizar em relato o inorganizável, o essencialmente fugidio e
o inexoravelmente abstrato da experiência cotidiana. Por um momento nos
perguntamos se não é apenas pela repetição que Hong é capaz de promover a
apuração da fixação deste intangível que ele busca, e que parece materializar-se
cada vez mais a cada filme. Noite e Dia assusta sobretudo por ser um
filme que não possui motivação concreta para ser posto em marcha, por ser um
filme cujo argumento é apenas uma desculpa patente para desenvolver uma série
de situações. Afinal, quem foge apavorado de seu país por ter fumado maconha casualmente
com um grupo de jovens? E, no entanto, sabemos, pela ironia das cenas e pela
montagem que potencializa o aspecto fragmentário da narrativa ao cortar sempre em
pontos inusitados, impedindo que momentos de trivialidade ganhem o aspecto sutilmente
dramatizado a que estamos acostumados no cinema, que nada está ali por acaso e
que tudo, absolutamente tudo, é fruto de uma construção milimétrica, de efeitos
meticulosamente pensados. Por tudo isso, Hong Sang-soo não cessa de nos
surpreender dentro do “mesmo”. (TM)
Terça-feira, 7 de outubro de 2008
Articular as partes com o todo é sempre um dilema
em todas as artes. No cinema, não poderia ser
diferente. Às vezes, o elogio do fragmentário,
do episódico, do contraste interno da obra no
limite do paradoxo. Às vezes, a obra como um
sopro, como a rima de todas as partes, a homogeneidade
flagrante e encantadora de um todo muito bem orquestrado.
Mas que, por outro lado, também pode dar numa
obra por demais armada, exata em demasia, aproveitando
o repouso fácil na constância do mesmo.
Dir-se-ia dois lados totalmente diferentes da arte,
mas nem sempre são assim tão distantes...
por vezes até no mesmo cineasta vemos filmes
pendendo para um tipo de estratégia, outros pendendo
para outro. Quatro Noites Com Anna, soberbo exercício
de sobriedade clínica no relato de um apaixonado
platônico patológico, mostra um Skolimowski
maestro de toda diversidade do mundo sensível.
Manejo impecável da luz sem dúvida
um dos fortes do filme , do ritmo, do clima de
mal-estar e confusão provocado pelo filme, e
no universo perturbador do personagem, que pode evocar
desde o herói de Não Amarás,
de Kieslowski, até o protagonista de Spider,
de Cronenberg. Falta ao filme, no entanto, o mergulho,
o flerte com o perigo do descontrole: aquele mundo é
organizado demais, conformado às necessidades
do filme, não comporta seu avesso. Considerando
que a narrativa do filme já emprega artifícios
costumeiros do cinema de arte personagem abobalhado
porém romântico, evolução
de arco dramático a partir da descrição
minuciosa e minimalista de suas afecções,
de seu descolamento em relação ao meio
em que vive, etc. , o filme mostra um portentoso
cineasta em modo sereno, quase discreto, certamente
notável, mas sem espaço para vôos
mais altos. Do outro lado do espectro, Na Guerra de
Bertrand Bonello é um filme deliberadamente irregular,
desigual, contendo um sem-número de auto-indulgências,
deixando vários pontos em aberto e filmando a
partir do fetiche por atores, lugares, músicas,
situações. Algumas delas, aliás,
são hilárias e/ou saborosas (ao menos
num testemunho pessoal): Mathieu Amalric ficando preso
num caixão, Clotilde Hesme numa loja de discos,
Asia Argento criando música de drones num ritual
purificador, Bob Dylan, Robert Wyatt sendo tocados...
Por outro lado, citações bobas a Apocalypse
Now, a Mal dos Trópicos, a velha neurose
depressiva do cinema intello francês. Uma
definição parcial, aliás, seria
um filme de Monteiro em que, ao invés de um gaiato
perverso, temos um protagonista passivo e neurótico.
Filme em modo menor sobre a falta de inspiração
do artista ou ambição demasiada em fazer
seu 8 1/2? Talvez nalgum lugar entre as duas
definições, o que dá um filme interessante
de ver mas nada com uma força mais significativa.
Na mesma chave da fragmentação, do contraste
de humores: Minha Mágica de Eric Khoo,
Leonera de Pablo Trapero (por que diabos, aliás,
estão chamando o filme no festival de LA Leonera?).
O primeiro mistura dois sentimentos paradoxais, o sentimentalismo
do drama familiar mais piegas com o asqueroso da automutilação
mondo cane, conseguindo um efeito notável de
sensações misturadas. O segundo pelo roteiro
em etapas, em personagens que aparecem e somem, o cotidiano
da cadeia transformado em coleção dos
momentos mais dramatizáveis e "filmáveis",
com movimento, cor, vibração (o que, aliás,
é responsável por muito do charme do filme,
mas também por suas limitações
de abordagem). Skolimowski, Khoo, Trapero, Bonello,
preferir quais? Fragmento ou todo? Desnecessário
escolher, porque a grande arte pode vir de qualquer
um dos lados. Temos aqui exemplos de quatro cineastas
que em quatro filmes deram mostra das forças
e das fraquezas de cada tipo de procedimento. (RG)
Domingo, 5 de outubro de 2008
Começo de dia de eleição, cabe
notar que até agora quase todos os filmes que
foram mais queridos pela redação de Contracampo
são filmes que poderiam estar no festival de
2007: Guerin, Hou, Rohmer comandam facilmente nosso
quadro de cotações, tendo apenas Aquele
Querido Mês de Agosto, de Miguel Gomes, e,
um tantinho mais abaixo, Noite e Dia de Hong
Sang-Soo e A Mulher Sem Cabeça de Lucrecia
Martel na ordem das preferências (é claro
que as estrelinhas são apenas um demonstrativo
redutor, mas...). É ótimo, naturalmente,
que esses filmes tenham vindo mesmo um ano depois. O
preocupante é saber onde estão os grandes
filmes do circuito de festivais de 2008, se estarão
escondidos nos últimos dias do festival ou se
não apareceram para a seleção desse
ano (algo que, de qualquer jeito, só será
respondido pela prática em alguns anos). No entanto,
como julgamento apressado de meio de percurso, ainda
não estamos com todo o desprendimento para dizer,
com Frank Sinatra, que "it was a very good year".
Mas Eric Rohmer não quer saber de nada disso
e fez em 2006 (apesar de só exibido no final
de 2007) um filme delicioso, totalmente reminiscente
de seu veio mussetiano (vale lembrar que as Comédias
e Provérbios que fazem o título de
uma série de filmes de Rohmer são antes
um título de relatos de Alfred de Musset), sobre
peripécias e mais peripécias sobre a concretização
do laço amoroso. Baseado num romance extremamente
influente no século XVII, o filme preza pela
simplicidade e pela frontalidade das belas cores, dos
belos gestos, dos belos corpos: vemos basicamente pastores
e druidas caminhando pelo campo, em jardins, à
beira do rio, ou em interiores bem decorados. Nada ostentatório,
nada pesado: são a graça e a fluidez que
carregam o filme, que apesar de usar um "vocabulário"
semelhante ao dos últimos filmes de Straub e
Huillet, nada tem a ver com os filmes deles. Os discursos
sobre o amor, marcantes no romance original de Honoré
d'Urfé, também aparecem aqui com grande
destaque, dando o ar de diálogos socráticos
a certas cenas (sobretudo as de embate entre a mesura
e a desmesura, e a validade do amor pela alma contra
o amor pelo corpo). Um filme que sumariza de forma quase
exemplar todas as preocupações artísticas
de Rohmer, seu anacronismo gritante (do qual ele sempre
soube tirar proveito artístico, ver A Inglesa
e o Duque), seu estudo sobre o comportamento humano
e seu amor pelas artimanhas do destino e, sobretudo,
das próprias pessoas umas com as outras (pode-se
dizer que é por caprichos imperiosos que os dois
amantes se repelem e por uma exacerbação
desses caprichos que eles se reúnem). Existem
filme mais propenso à revisão do que A
Mulher Sem Cabeça? Ao menos no testemunho
pessoal e no dos amigos que nos rodeiam, não.
Todos revelam o desejo de revê-lo. Menos pelo
presumido obscurantismo do filme do que por ser um filme
em que a percepção é posta à
prova, e o filme é extremamente bem sucedido
em entupir a banda sonora e visual, com seus desfocados
e todas as vozes que entram e saem, de modo a criar
no espectador uma perturbação sensorial
semelhante à da protagonista. Em revisão,
o filme cresce e, já sabendo por onde vai, podemos
melhor admirar a construção e o talento
de Lucrecia Martel em dramatizar o cotidiano e a rede
familiar como confinamento, a vida comum como filme
de terror. Com mais dias assim, Sinatra até corre
o risco de aparecer... (RG)
Sábado, 4 de outubro de 2008
Todo filme de Hong Sang-Soo é igual. Todo filme
de Hong Sang-Soo é diferente. Além da
repetição e da diferença desempenharem
papéis decisivos em seu cinema, ele deve rejubilar-se
por retrabalhar as mesmas situações, os
mesmos procedimentos de filmagem, as mesmas cenas de
conversa na rua, no bar e no quarto, as cenas de cama,
e extrair de tudo isso sempre algo vigoroso e novo.
Noite e Dia, então, é uma comédia
dramática, calcada no cotidiano, no acaso dos
encontros, nas incertezas dos personagens, de seus instintos,
suas obsessões. A repetição desempenha
um papel importante em algumas situações,
mas não exatamente na estrutura nenhuma
divisão em duas partes espelhadas, estratégia
costumeira de Hong. O fato de ser passado na França
não muda em quase nada o esquema: o filme acontece
todo entre personagens coreanos, como se Paris fosse
uma extensão da Coréia. E embora Noite
e Dia encante pelo clima do todo, pelo humor particular,
a graça, a leveza, o filme também surpreende
pela riqueza dos detalhes e pela minúcia das
caracterizações (o que naturalmente vale
para todos os seus filmes). No dia anterior, Puffball,
de Nicolas Roeg, é o típico filme só
tolerado por quem preza a mise en scène
à frente de todo o resto no cinema. A dramaturgia
é capenga, os atores estão canhestros
(apesar da beleza estonteante de Kelly Reilly), mas
a visceralidade de certas cenas é surpreendente.
A temática é familiar à de O
Bebê de Rosemary: o perigo das redondezas,
os medos da gravidez, a constituição da
família, seitas mágicas... E ainda que
o filme não se sustente dramaticamente, ele consegue
imprimir uma atmosfera de ameaça e de suspense
permanente, que a fotografia granulada e evocativa dos
anos 70 adensa. Filme evidentemente menor, Puffball
oferece a típica experiência de fruição
que precisa desviar dos momentos risíveis para
ter acesso a algumas delícias meio escondidas.
Mas que elas existem, existem. (RG)
Quarta-feira, 1º de outubro de 2008
Crônica da devoção Uma palavra
para caracterizar aquilo que Hou Hsiao-hsien tem de
melhor: ritmo. Do investigador da memória e da
história (as duas palavras são para ele
uma só) de um país que ele foi nos anos
80, brotou o mais musical cineasta do cinema contemporâneo,
com uma câmera de movimentos inacreditáveis,
ao mesmo tempo discretos e determinantes cortesia
de (Mark) Lee Ping-Bing e seres e mundo em eterna
mobilidade. Não uma mobilidade individual, mas
uma mobilidade do cosmos. Poderíamos dizer que
o cinema de Hou Hsiao-hsien é sobre o eterno
movimento dos corpos (de pessoas, de trens e demais
objetos), e sobre como a luz ao mesmo tempo móvel
ela também, e condição de possibilidade
para a percepção desse movimento
incide sobre esses corpos. A Viagem do Balão
Vermelho é uma espécie de continuação
de Café Lumière, em que a narrativa,
minúscula, sumária, era apenas um propósito
para capturar a vivacidade das ruas de Tóquio,
o clima dos bares e livrarias, o estilo dos personagens.
Obra da delicadeza, a suprema beleza de A Viagem
do Balão Vermelho está nessa entrega
a uma degustação qualitativa do tempo,
dramatizando seres humanos e espaço como uma
coisa única, como um bloco. O que o filme faz
com o espaço do apartamento, chapando a tridimensionalidade
no enquadramento mais utilizado mostrando a mesa e dando
para a cozinha, e ao longo do filme "acrescentando",
aposentos, revelando detalhes sobre cantinhos, exprimindo
a confusão da vida da personagem, tudo isso é
extremamente rico, novo, pulsante, musicalidade que
se sente pelo olho, potência total do cinema como
modulação do tempo e do espaço
transformando-os em sensação. E ainda
assim o filme sabe ser um comentário sobre a
contemporaneidade, consegue extrair o que é possivelmente
a maior atuação de Juliette Binoche em
todos os tempos (e fora de seu registro costumeiro),
ou seja, consegue dar conta das expectativas que um
"filme comum" gera. Por essas e outras é
que achamos que nosso HHH é o sujeito que faz
os melhores filmes hoje no mundo. E A Viagem do Balão
Vermelho é um dos melhores exemplos disso.
(RG)
Terça-feira, 30 de setembro de 2008
Duas notas curtas e desagradáveis, porém
necessárias porque a época de festival
não é só feita de embevecimento
com os filmes, mas também das travas a eles.
Portanto, é preciso comentar a exibição
de um dos filmes mais esperados do Festival por
nós, na Contracampo, e pelo freqüentador
regular que interessou-se pelo fato do filme estar na
competição oficial em Cannes , Um
Conto de Natal, de Arnaud Desplechin. O filme foi
exibido numa cópia DVCam de péssima qualidade
e fora mesmo de sua janela oficial, o que ocasionou
um monstro (há relatos de gente que não
conseguiu ver três minutos, sabendo que aquilo
não se tratava do original). Sabemos que o Festival
faz isso de forma a atender uma demanda de público,
mas a questão agora é de saber em que
medida isso, a pretexto de respeito, não se trata
do maior desrespeito que pode haver a uma obra de arte.
É mais ou menos como pagar para ver um Matisse
e deparar-se com cópias xerox em preto e branco
de suas telas (o que até poderia constituir uma
obra original interessante, mas jamais uma maneira fidedigna
de exibir um Matisse). Por razões óbvias,
esse filme passará em brancas nuvens aqui em
nossa cobertura, porque de fato para nós ele
não existiu. Apenas como uma nota de vergonha
no evento. A segunda nota diz respeito ao Centro Cultural
Banco do Brasil, que mais uma vez programou uma mostra
de enorme interesse para o cinéfilo no exato
momento em que o Festival do Rio acontece (lembram Rossellini
ano passado?). Pode-se imaginar que haja argumentos
em torno da importância de manter a sala cheia
durante o festival, mas considerando as inúmeras
mostras medianas do CCBB em época de vacas magras
(infelizmente não é toda hora que tem
algo do porte de um Resnais, um Altman, as melhores
do ano até agora), vai como um ato de enorme
má vontade com o público e com a comunidade
programar algo que é do interesse do cinéfilo
mais específico no exato momento em que ele tem
suas atenções voltadas a filmes que ficarão
por breve tempo aqui e que representam a única
oportunidade de atualização internacional
que ele terá. Dessa forma, temos um incomum cenário
em que A Viagem do Balão Vermelho, de
Hou Hsiao-hsien, tem suas duas sessões lotadas
no Espaço de Cinema e Millennium Mambo,
do mesmo Hou Hsiao-hsien, passa no CCBB e tem aproximadamente
quinze espectadores quando, quinze dias depois, certamente
teria o triplo, quádruplo disso. Os feitos do
Centro Cultural Banco do Brasil para a cinefilia carioca
são inumeráveis, mas quando ele começa
a pensar mais em si mesmo e menos em seu espectador,
a coisa começa a desandar feio. Não é
nem espírito de competição: é
pura sabotagem e má programação.
(Ruy Gardnier)
Segunda-feira, 29 de setembro de 2008
Da dramatização dos espaços
sabemos que filmes em geral dramatizam personagens,
situações entre personagens, ações
de personagens. Difícil sair do esquadro focado
no indivíduo, ainda que se almeje mais forte
que isso (os personagens-arquétipo que representam
uma nação, um estado de espírito,
etc.). Mas há outras coisas a dramatizar, e apesar
de não serem majoritárias, o cinema deu
bom número de exemplos ao longo de sua história:
O Encouraçado Potemkin dramatizou uma
nação inteira recorrendo a um personagem
coletivo, Rien que les heures, Berlim, Sinfonia
da Metrópole e O Homem da Câmara
dramatizaram a vida numa cidade grande, e mesmo hoje
temos gente como Apichatpong Weerasethakul, que dramatiza
um relato sendo passado de localidade em localidade
(Misterioso Objeto ao Meio-Dia) ou a vida num
hospital (o formidável Síndromes e
um Século). Curiosamente, em dois dias seguidos,
o Festival do Rio exibiu belos filmes que constroem
sua estética a partir dos lugares, com
eles e para eles. Falo de Na Cidade de
Sylvia, de José Luis Guerin, e Aquele
Querido Mês de Agosto, de Miguel Gomes. No
filme de Guerin, não se sabe o que domina, a
percepção da cidade ou das mulheres que
habitam a cidade. Claro, o principal interesse do filme
é o posicionamento do espectador, e o incrível
poder delirante de sobrepor imagens mentais a imagens
físicas (trabalhadas à perfeição
lá pelo final do filme, no metrô), mas
os planos da "cidade acontecendo", com garrafas
de Heineken rolando pela calçada e menina bonita
lendo livro na praça, não estão
lá apenas para fazer figuração.
Eles servem para compor, junto com as paredes e fachadas
das casas e prédios, com as ruas e com as pessoas
que passam por ela, um ritmo do espaço, espaço
que naturalmente é representativo da vida do
lugar. O filme pode ceder a algumas facilidades enervantes,
mas dele ninguém tira o ímpeto de criar
uma situação para dramatizar uma cidade
(e a situação de um turista dentro dela)
e de fato criar uma estética a partir daquele
espaço. Aquele Querido Mês de Agosto
parte de estratégia semelhante ao mostrar uma
equipe de filmagens que, sem ter "o que filmar",
filma o cotidiano e os espaços de toda uma região
portuguesa até que ao final "vem",
como que de graça, a história de ficção
esperada, ainda que devidamente esburacada pelo que
veio antes e pelo que continua vindo. Claro está
que o foco do filme é acima de tudo um enorme
questionamento sobre o que dramatizar, e uma
conclusão de que aquilo que geralmente representa
o pano de fundo as ruas, os figurantes, as pessoas
que habitam os espaços é mais ou
tão importante do que os protagonistas. O grande
gesto do filme é o da sentimentalização
dos espaços, e não é à toa
que o plano mais emotivo, o do beijo dos dois, acontece
num grande plano geral, em cima da ponte, com banda
de coreto passando e botes circulando no rio. É
como se Gomes estivesse dizendo que no fundo é
a própria cidade que faz sua ficção,
e que a ficção elaborada pelos argumentistas,
com personagens individualizados e situações
dramáticas acontecendo entre eles segundo um
arco de evolução narrativa, fosse apenas
um aspecto ínfimo de um todo muito maior, isto
é, um espaço que se insinua, que se organiza,
que se dramatiza. Aquele Querido Mês de Agosto
tem a grandeza de brincar com as expectativas habituais
do espectador (personagens, trama, narrativa, funcionalidade)
e apontar para aquilo que realmente interessa a ele,
um registro lúdico de pessoas e lugares, de acontecimentos
e modos de vida que compõem a vida de uma localidade.
No momento em que o cinema "de arte" está
tão moldado por um tipo de dramatização
minimalista-humanista que se torna uma fórmula
insossa e rapidamente desgastada (A Criança
dos Dardenne, Linha de Passe de Walter Salles,
entre zilhões de outros), esses são filmes
que de fato abrem caminhos. A seguir e ver que impacto
fazem daqui a alguns anos. (Ruy Gardnier)
Domingo, 28 de setembro de 2008
Quando dei um google no diretor português Miguel
Gomes, esperava constatar que Aquele Querido Mês
de Agosto era seu primeiro longa-metragem. Mas
que nada: seu primeiro longa é de 2004 (A
Cara que Mereces). A impressão de assistir
a um primeiro longa de jovem diretor não vinha
de qualquer amadorismo verificado no filme, e sim do
saboroso gosto de eterno começo que ele desperta
e mantém por duas horas e meia (obra de frescor,
de descoberta). Gomes parece ter não um, mas
vários filmes para fazer, e aparentemente não
abre mão de nenhum deles. Embora acabe encontrando
seus personagens principais e ficando mais concentrado
neles, o filme passa um bom tempo sendo uma mistura
de atualidades, crônica sentimental, metadocumentário,
comédia... O centro de gravidade a princípio
parece inextricavelmente colado a um determinado espaço
e suas pessoas, mas logo o filme expande seu universo
e uma mancha de sangue no lençol se equipara
à descoberta de um novo planeta. Que os termos
não sugiram uma visão eloqüente:
tudo é singelo em Aquele Querido Mês
de Agosto. Um rio, uma ponte, uma música,
um incêndio: são esses elementos que unem
as trajetórias dos personagens. Sem a austeridade
e a essência crepuscular de Trás-os-montes,
o filme de Gomes (onde todo crepúsculo tem o
dom de se transformar em aurora) é um eco longínquo,
ao menos no plano do experimento, da magnífica
obra de António Reis. (LCOJr.)
Domingo, 28 de setembro de 2008
Atualmente, a tragédia
no cinema tem em geral a forma ou do melodrama assumido,
ou do roteiro onisciente que esmaga seus personagens.
Por isso, um filme como Sol Secreto, de Lee Chang-dong,
é provocante. Temos a impressão de que
ele está o tempo todo tentando filmar o infilmável:
a “ira” dos céus descendo sobre uma
só pessoa, uma vida inteira sendo submetida a
testes extremos sem quê nem por quê. E,
sem dúvida, a força da protagonista em
cena canaliza todas as atenções para a
maneira de representar e transmitir a dor de todas estas
tragédias. Disto resulta a emanação
de uma energia impressionante em alguns planos –
precisamente o que afasta o filme das narrativas
de “mundo-cão” do cinema contemporâneo.
Se tomássemos apenas a linha narrativa de Sol
Secreto, poderíamos dizer que se trata de
mais um filme em que a vida demonstra rasteiramente
o quão desgostosa ela pode ser, mas a insistência
num drama rocambolesco, com inúmeros pontos de
virada, faz dele um exemplar incomum, digno de interesse
– ainda que todas estas questões estejam
longe de se apresentarem bem resolvidas no filme, e
que a desordenância de suas “tentativas”
originem muitas vezes cenas patéticas. Meu
Marlon e Brando, por outro lado, não consegue
tirar força alguma da estrutura dramática
que apresenta. Somos convocados a acompanhar uma mulher
em sua peregrinação incansável
para encontrar-se com seu amado, habitante de um Iraque
transformado em zona de guerra; mas em momento algum
o filme é capaz de transmitir a intensidade dos
sentimentos compartilhados por estes personagens, que,
segundo suas próprias palavras, estão
perdidamente apaixonados um pelo outro. O fato de não
termos nenhuma imagem dos dois juntos previamente à
separação apenas acentua isso: este amor
tão proclamado nunca é sentido nem intuído
pelo espectador. E fica claro que não se trata
em absoluto de construir uma quimera – embora
isto pudesse ter sido feito perfeitamente –, afinal
o filme deixa-se levar completamente pela trivialidade
do registro. Apesar de sua premissa instigante, filmar
a história de amor real entre uma atriz e um
ator com os próprios interpretando a si mesmos,
Meu Marlon e Brando não consegue indagar
a presença daquela sofrida figura feminina na
imagem. E nem mesmo as vídeo-cartas enviadas
pelo amado distante, do qual só temos realmente
estas pálidas imagens, conseguem estabelecer
um convincente caráter de abstração
para a figura masculina, de uma falsa presença
mediada pela textura do vídeo. Por fim, resta
apenas o road-movie e um modesto retrato de uma
zona assolada pela guerra, onde o maior problema para
o cidadão regular é a obstrução
completa do direito de ir e vir, de circular de acordo
com os desejos pessoais. Neste aspecto político
nada marcado, que permeia as imagens em sua superfície,
o filme guarda seu maior trunfo, embora esteja longe
de ser algo suficiente, dado o desenvolvimento do todo.
E, falando de figuras pregnantes, uma das expressões
mais cativantes que já vi num documentário
recente é a de Josh Caouette, o filho de 11 anos
de Jonathan Caouette (diretor de Tarnation),
em Bi the Way. Se o filme não passa de
um documentário televisivo na forma de costurar
depoimentos de “especialistas” e envolvidos
com o assunto da crescente bissexualidade na sociedade
americana, não sabendo administrar a potência
dos seus cinco personagens principais, a todo momento
em que Josh entra em quadro, a imagem se ilumina de
inusitado e de carisma. Como seu pai, Josh é
um espetáculo em si mesmo, que na administração
um quê descontrolada da própria imagem
demonstra uma surpreendente afinidade com a câmera
e uma habilidade impressionante de se fazer personagem
de si mesmo. (TM)
Sábado, 27 de setembro de 2008
A principal curiosidade que O Último Reduto
provoca diz respeito à entrada do político
em nossas vidas, de como cada aspecto de nosso cotidiano
está recheado de política e como nos apercebemos
disso tão pouco. Mas se Rabah Ameur-Zaïmeche
consegue criar essa disposição de olhar
da parte do espectador (que nem é, eu diria,
o principal objetivo de seu filme), eu diria que é
exatamente por não chamar atenção
para ela o que seria, de certa forma, deslocá-la
como acima do cotidiano, imbuí-las de uma dramaticidade
(e do miserabilismo que aí decorre) que é
exatamente seu oposto, como fazem em geral os filmes
"políticos" , por tomar um partido
meramente observacionista diante daquilo que apresenta,
e deixar a imagem, o poder perspectivo da imagem, fazer
o resto. Curiosamente, os cineastas franco-árabes
têm sido capazes de fazer isso, criando filmes
irregulares porém vivos e cheios de interesse
(o outro exemplo, mais bem sucedido, até, seria
O Segredo do Grão, de Abdellatif Kechiche).
Ao invés de copiar o catastrofismo espetaculoso
de Babel e Crash e o miserabilismo de
Ken Loach, que filma seus personagens mais como coitadinhos
do que como gente, nossos cineastas "internacionais"
os oscarizados e canneados deviam atentar
para esse cinema que olha para seus personagens acima
de tudo como cidadãos, e dão a eles esse
respeito. Quanto a Pan-Cinema Permanente, de
Carlos Nader, é um desses filmes que a gente
gosta mesmo sabendo que ele cumpre apenas pela metade
o que promete. O que o distingue do retrato biográfico
é o mesmo que ele não consegue manter
até o final, o regime de autoficção
eterna (daí o título) da vida e obra de
Waly Salomão (ou Sailormoon), poeta e grande
letrista da música popular brasileira. Homem
de gestos largos e vida vivida como performance, Waly
em tela é um transe, e o filme é extremamente
feliz nos momentos que pinça de suas intervenções,
e muito terno na maneira de apresentá-las. Tâo
minucioso no tratamento iconográfico, o filme
não apresenta o mesmo vigor quando faz o que
os documentários convencionais fazem, ou seja,
apresentar depoimentos, mostrar objetivamente aspectos
da obra, falar das circunstâncias da morte, por
exemplo. Tudo isso acaba tirando o filme de seu movimento
e vibração (principalmente a seqüência
da morte), e ainda que os depoimentos de Antônio
Cícero e Caetano Veloso sejam extremamente lúcidos
e carinhosos, eles acabam perspectivando de maneira
muito estranha as falas e os movimentos de Waly Salomão.
Em todo caso, um filme vigoroso que é enormemente
recomendável a todos e absolutamente obrigatório
para quem se interessa por música, poesia e cultura
brasileira. (RG)
Sexta-feira, 26 de setembro de 2008
Filmes vistos em cabine: um inominável, horroroso
filme espanhol rodado inteiramente na África
(menos o final), todo dublado em espanhol (!!) e canhestro
em todos os aspectos: arco dramático, linguagem
visual, vivacidade. O nome? 14 Quilômetros,
de Gerardo Olivares, e é o típico filme
que justifica o emprego do termo "abaixo da crítica".
E, levando ao pé da letra, não faremos
crítica. Liverpool, de Lisandro Alonso,
poderia ser tratado de forma não muito diferente,
mas é um cineasta. Ou seja, existe um conceito
por trás das imagens que ele filma e monta. Isso
não impede que o conceito sirva como uma enorme
desculpa para uma série de facilidades empregadas
na construção do quadro, na aleatoridade
das situações retratadas e na "narrativa"
que o filme constrói. A crítica mais honesta
e exata a seu filme, Liverpool, seria simplesmente
escrever "Portsmouth" no espaço dedicado
ao texto. Tão lacônico, imprevisível,
nonchalante e bobo quanto seu filme. O Tempo
e a Cidade é um desses filmes memorialistas,
que utiliza imagens de arquivo para fazer uma reflexão
sobre a passagem das coisas e restituir e evocar o poder
de tempos passados. No fundo, pouco importa que o filme
seja passadista e ressentido com a contemporaneidade.
Importa antes que Terence Davies é incapaz de
transfigurar as imagens que utiliza e dar a elas algo
além do estatuto de registro. Os mais apressados
vão correndo dizer que é proustiano, mas
não existe nem um fiapo de densidade temporal
construído através da tessitura da linguagem,
só uma voz off empostada evocando opiniões,
citando Shakespeare, Emily Dickinson e T.S. Eliot,
e um escorrimento de imagens que a gente vê em
qualquer documentário para televisão.
Quem dera houvesse a destreza de um Chris Marker, de
um Sganzerla ou mesmo um Jia Zhangke para trabalhar
essas imagens e as densidades temporais trabalhadas
por elas. Por fim, A Mulher Sem Cabeça,
de Lucrecia Martel. Reações divididas
da platéia que quase lotou a cabine, e também
no seio da redação e dos amigos da revista.
Quanto a mim, acho certamente mais desafiador e denso
do que o anterior, A Menina Santa, e menos irritantemente
formulaico e derivativo de Robert Bresson (na verdade,
nada). Enquanto dou o tempo de uma revisão para
me relacionar melhor com o filme, adianto que o estado
de desorientação perceptiva realizado
por Martel através de jogos de foco, edição
de som e construção do extracampo a partir
de uma personagem com incertezas acerca da realidade
material que a rodeia, é impressionante. Ao menos,
adaptando a busca do grego Diógenes, conseguimos
passear pelas cabines de imprensa do Festival do Rio
a ruindade dos filmes exibidos nas cabines é
mitológica, os comentários a cada ano
testemunham e reencenam o drama , mesmo sem lanterna,
e ter achado um filme. (RG)
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