Uma parte essencial para o
funcionamento de uma comédia
romântica é a interação
entre os dois protagonistas. É necessário o
quê de
empatia, é necessário o talento individual, mas
é preciso sobretudo que os dois
existam de fato como par. Essa química é muitas
vezes imprevisível (quem diria,
por exemplo, que Drew Barrymore e Adam Sandler formariam um casal
perfeito?),
apesar de não ser extremamente difícil de ser
atingida – acontece até num
percentual grande de filmes. O equilíbrio mais
difícil de ser atingido é entre
os dois termos do subgênero, a comédia e o
romance. Ambos exigem velocidades
diferentes da narrativa, disposições diferentes
do espectador (o riso e o
enternecimento, dificilmente associáveis) e pesos
diferenciados dados aos
corpos e falas dos atores, ridículos e leves na
comédia, solenes e mais
vagarosos no momento de romance. Já essa química
é raramente conquistada, quase
sempre tragando o filme (e quase o subgênero como um todo)
para a docilidade
irrelevante dos divertimentos inofensivos.
No primeiro equilíbrio, Surpresas do Amor
passa com louvor e
desenvoltura. Reese Witherspoon já se revelara
exímia comediante nos dois Legalmente
Loira e em ...E Se Fosse Verdade, fazendo
a caprichosa adorável e
dosando a interpretação para transformar a
excentricidade de seus personagens
em charme e humor. Vince Vaughn, por sua vez, já tem
credenciais inabaláveis na
comédia tout court, mas sua
única aparição significativa em
comédia
romântica, Separados pelo Casamento,
não rendeu um filme nem um casal
memorável. Talvez fosse possível creditar a
ausência de química à persona de
Vaughn, com seus quase 2m de altura e postura de machão
insensível. Mas Surpresas
do Amor dribla esse revés através da
intriga, que coloca os dois personagens
principais como um casal que quer viver eternamente o
pré-casamento, arrumando
qualquer desculpa para fugir das neuroses da assim chamada vida adulta
(família, planejamento para o futuro, etc.) e partir para
férias nos maiores
recantos paradisíacos do globo. O começo do filme
lembra Uma Hora Contigo,
produção lubitschiana dirigida por Cukor: a
primeira cena mostra o casal em
situação característica de solteiros,
em 2008 numa boate, em 1930 num parque à
meia-noite. O fato de os personagens inventarem novas identidades para
estabelecer a conquista e consumar o ato no banheiro da boate
não poderia
atentar mais para a situação de eterno presente
do casal, mas é também um
colossal veículo para o talento dos dois, possibilitando
mudanças bruscas de
tom a partir das reinvenções de identidade no
jogo da conquista. Vaughn é nerd
e educado, depois garanhão, e sustenta-se no filme como
hedonista respeitador.
Já Witherspoon vai de dama a sonsa, e ao longo do filme faz
a virada de
hedonista a futura mamãe. As possibilidades são
muitas, as interseções idem, e
a dupla não precisa de maiores esforços para
dominar completamente a cena.
Já no segundo equilíbrio, o filme
também passa, não sem uma
operação pra lá de
interessante. Em grande parte de sua duração, Surpresas
do Amor é uma
comédia romântica anti-romântica. Todas
as principais piadas, dos flashbacks às
duas primeiras casas visitadas (das quatro que o título em
inglês prefigura),
são enormes tirações de sarro com as
partes nada divertidas do casamento, como
ter que aturar parentes desagradáveis, passados
constrangedores, limitações de
tempo e oportunidades por ter filhos, etc. Em
adição a isso, não há casal
a ser
formado, pois o casal já existe. Assim, durante boa parte de
sua duração, o
filme é uma comédia pura disfarçada de
comédia romântica, aproveitando as
situações nas casas dos familiares para evocar os
prós e contras da vida em
família. Já adiantado na trama, a
necessária reconversão ao código
social: o
casal percebe que não se conhece de verdade e que
está em denegação. É a
necessária parte melosa, em que o humor declina, a
velocidade esmorece e a
moral unanimista domina – naturalmente é a parte
fraca do filme. Mas o que Surpresas
do Amor faz não é combater essa
lógica, e sim minimizá-la. Ao utilizar
pouco tempo para os momentos solenes, o filme faz o arco
dramático do filme
parecer pouco importante – pronunciadamente sem
importância dados os risos
catárticos de zombaria do começo do filme.
É claro que a melhor comédia romântica
– o modelo, sem dúvida, é A
Loja da
Esquina – só funciona quando mistura o
drama ao humor, ou melhor, a uma
leveza da existência recheada de humor. Surpresas do Amor tem
essa posição
deveras interessante de sufocar o drama em favor do riso e, apesar da
moral da
história francamente normalizadora, apostar na possibilidade
de uma vida a dois
sem a consequente vestida do camisolão. O sucesso
é parcial, mas existe.
Ruy Gardnier
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