SURPRESAS DO AMOR
Seth Gordon, Four Christmases, EUA/Alemanha, 2008

Uma parte essencial para o funcionamento de uma comédia romântica é a interação entre os dois protagonistas. É necessário o quê de empatia, é necessário o talento individual, mas é preciso sobretudo que os dois existam de fato como par. Essa química é muitas vezes imprevisível (quem diria, por exemplo, que Drew Barrymore e Adam Sandler formariam um casal perfeito?), apesar de não ser extremamente difícil de ser atingida – acontece até num percentual grande de filmes. O equilíbrio mais difícil de ser atingido é entre os dois termos do subgênero, a comédia e o romance. Ambos exigem velocidades diferentes da narrativa, disposições diferentes do espectador (o riso e o enternecimento, dificilmente associáveis) e pesos diferenciados dados aos corpos e falas dos atores, ridículos e leves na comédia, solenes e mais vagarosos no momento de romance. Já essa química é raramente conquistada, quase sempre tragando o filme (e quase o subgênero como um todo) para a docilidade irrelevante dos divertimentos inofensivos.

No primeiro equilíbrio, Surpresas do Amor passa com louvor e desenvoltura. Reese Witherspoon já se revelara exímia comediante nos dois Legalmente Loira e em ...E Se Fosse Verdade, fazendo a caprichosa adorável e dosando a interpretação para transformar a excentricidade de seus personagens em charme e humor. Vince Vaughn, por sua vez, já tem credenciais inabaláveis na comédia tout court, mas sua única aparição significativa em comédia romântica, Separados pelo Casamento, não rendeu um filme nem um casal memorável. Talvez fosse possível creditar a ausência de química à persona de Vaughn, com seus quase 2m de altura e postura de machão insensível. Mas Surpresas do Amor dribla esse revés através da intriga, que coloca os dois personagens principais como um casal que quer viver eternamente o pré-casamento, arrumando qualquer desculpa para fugir das neuroses da assim chamada vida adulta (família, planejamento para o futuro, etc.) e partir para férias nos maiores recantos paradisíacos do globo. O começo do filme lembra Uma Hora Contigo, produção lubitschiana dirigida por Cukor: a primeira cena mostra o casal em situação característica de solteiros, em 2008 numa boate, em 1930 num parque à meia-noite. O fato de os personagens inventarem novas identidades para estabelecer a conquista e consumar o ato no banheiro da boate não poderia atentar mais para a situação de eterno presente do casal, mas é também um colossal veículo para o talento dos dois, possibilitando mudanças bruscas de tom a partir das reinvenções de identidade no jogo da conquista. Vaughn é nerd e educado, depois garanhão, e sustenta-se no filme como hedonista respeitador. Já Witherspoon vai de dama a sonsa, e ao longo do filme faz a virada de hedonista a futura mamãe. As possibilidades são muitas, as interseções idem, e a dupla não precisa de maiores esforços para dominar completamente a cena.

Já no segundo equilíbrio, o filme também passa, não sem uma operação pra lá de interessante. Em grande parte de sua duração, Surpresas do Amor é uma comédia romântica anti-romântica. Todas as principais piadas, dos flashbacks às duas primeiras casas visitadas (das quatro que o título em inglês prefigura), são enormes tirações de sarro com as partes nada divertidas do casamento, como ter que aturar parentes desagradáveis, passados constrangedores, limitações de tempo e oportunidades por ter filhos, etc. Em adição a isso, não há casal a ser formado, pois o casal já existe. Assim, durante boa parte de sua duração, o filme é uma comédia pura disfarçada de comédia romântica, aproveitando as situações nas casas dos familiares para evocar os prós e contras da vida em família. Já adiantado na trama, a necessária reconversão ao código social: o casal percebe que não se conhece de verdade e que está em denegação. É a necessária parte melosa, em que o humor declina, a velocidade esmorece e a moral unanimista domina – naturalmente é a parte fraca do filme. Mas o que Surpresas do Amor faz não é combater essa lógica, e sim minimizá-la. Ao utilizar pouco tempo para os momentos solenes, o filme faz o arco dramático do filme parecer pouco importante – pronunciadamente sem importância dados os risos catárticos de zombaria do começo do filme.

É claro que a melhor comédia romântica – o modelo, sem dúvida, é A Loja da Esquina – só funciona quando mistura o drama ao humor, ou melhor, a uma leveza da existência recheada de humor. Surpresas do Amor tem essa posição deveras interessante de sufocar o drama em favor do riso e, apesar da moral da história francamente normalizadora, apostar na possibilidade de uma vida a dois sem a consequente vestida do camisolão. O sucesso é parcial, mas existe.

Ruy Gardnier