O LUTADOR
Darren Aronofsky, The Wrestler, EUA, 2008

Comparo minha experiência à de um pugilista que vai ao treinamento todos os dias. Um dia, ele trabalha sua direita, um outro, sua defesa. […] É preciso se manter em forma se adaptando a contextos diferentes.” (Mickey Rourke)


A declaração acima foi feita em 1985, “o ano do dragão”. Mais de vinte anos depois, O Lutador apresenta Mickey Rourke no papel de Randy “The Ram” Robinson, wrestler profissional que teve seu auge nos anos 80 e agora encarna o mais típico retrato de herói decadente. Randy não se manteve em forma, não se adaptou a contextos diferentes. Numa das cenas mais significativas do filme, ele e Cassidy (Marisa Tomei) conversam num bar ao som de “Round and Round”, do Ratt, clássico do hard rock oitentista. Eles falam de como os anos 80 foram magníficos, porém se deixaram atropelar pela década seguinte. Invertem, assim, a visão habitual que identifica nos 80 uma década maldita e nos 90 uma era mais “digna”. Para eles, os 80 foram a golden age, os 90 foram tão-somente o corta-tesão, o fim precoce da festa. O mundo que viria a seguir não se mostraria nem mais combativo, nem mais criativo, nem mais inteligente, apenas menos divertido. Acabou a festa, acabou a luta, sobrou o luto.

Randy traz características dos dois grandes personagens de Rourke dos anos 80. Ele revive o existencialismo do Motorcycle Boy (O Selvagem da Motocicleta, Francis Ford Coppola, 1983) e, ao mesmo tempo, a disposição de Stanley White (O Ano do Dragão, Michael Cimino, 1985) de ir até o fim de uma luta custe o que custar. Motorcycle Boy era um ser destacado do mundo. A voz de Michey Rourke sempre trabalhou numa frequência mais baixa se comparada à de todas as outras vozes, mas quem melhor explorou isso foi Coppola: a voz sedativa do Motorcycle Boy parece descolada de seu corpo, aspecto expandido por uma composição de ambiências dissonante, onde o espaço sonoro soa praticamente estrangeiro ao espaço visual. Em O Lutador, Rourke também possui uma voz fora da frequência do entorno, porém não mais aveludada como a de seu personagem de O Selvagem da Motocicleta, e sim riscada pelo tempo. Já o capitão de polícia Stanley White, de O Ano do Dragão, era um ex-combatente para quem a guerra havia na verdade continuado, só que não mais no Vietnã e sim no cotidiano de sua profissão e de sua vida pessoal. Toda a fúria de Stanley White habita a massa corporal de Randy, embora essa fúria tenha perdido a agilidade e seja agora um corpo fibrilado, não mais o sinônimo daquela violência palpitante que se tornava – por imposição natural – o nervo da decupagem. Motorcycle Boy, Stanley White, Randy “The Ram”: homens que envelheceram antes da hora. O corpo marcado de Rourke é a materialização de sua tensão permanente com a ordem das coisas.

Para filmar um personagem assumido, de antemão, como um ser em desacordo com seu tempo, é preciso adotar um ponto de vista, digamos, cuidadoso. A história é velha conhecida de todos: abaixo de uma certa linha, o diretor cai no miserabilismo; muito acima, adere à frieza de um patologista. Um documentário sobre a energia retesada de Mickey Rourke não seria suficiente. Uma ficção comiserada e pseudo-humanista seria um desastre – além de uma perversão absoluta. Qual caminho seguir?

O começo de O Lutador é elaborado em torno do “plano de ator” mais simples – e reiterado o maior número de vezes, pelo maior número de filmes – que esta década conheceu: a câmera na mão se limita a acompanhar Mickey Rourke, que é visto de costas, enquanto ele caminha, como se o filme estivesse apenas indo onde ele fosse, tentando respirar no ritmo dele, deixando-se levar por sua cabeleira tingida de loiro. O cenário é friorento, a câmera treme ao se deslocar, jump cuts picotam a ação (esse começo parece uma mistura de Rocky Balboa com irmãos Dardenne). Logo percebemos que a forma adotada por Aronofsky dispõe de uma fraca energia de elisão, e que as supressões da montagem menos conectam as partes do que abrem hiatos. O plano se mede e se molda pelo sentimento de presença e de movimento do ator. O roupão com que o filme acolhe o personagem já está aí demonstrado. Mas quando Aronofsky precisa passar do plano-afeto ao plano-dramaturgia, suas limitações como encenador se fazem sentir.

Em duas cenas com Cassidy, sobressaem pontos baixos do filme. A primeira é o diálogo em que ela, na boate onde trabalha, fala do violento flagelo do Cristo no filme de Mel Gibson e insere Randy no tema do sacrifício (na cena seguinte, ele e seu oponente se torturam num espetáculo sanguinário e exagerado). A outra é sua tentativa de dissuadir Randy de subir ao ringue pela última vez. A mise en scène se perde, o diálogo ruim se impõe. Há cenas em que um equilíbrio – precário, é verdade, mas por isso mesmo autêntico – é atingido. Por exemplo: a explosão de Randy no supermercado. Tudo conspira para uma cena muito grosseira, desnecessária, típica virada de roteiro. A cena, no entanto – filmada de um ângulo interessante, do lado de dentro do balcão de frios onde Randy se encontra, submetendo o campo visual às reações dele –, culmina no momento em que um corpo, não conformado com o espaço que lhe foi dado, transborda seus limites (sociais, morais, biológicos). Randy decide voltar ao ringue. Ali ele reconquista um direito, ou melhor, uma ação. Ele não é mais uma anedota cult, um personagem de Nintendo, um modelo ultrapassado; é um homem que sabe determinar seu nicho e seu destino.

Randy é um grande personagem de cinema. Mickey Rourke é um axioma. Aronofsky não está à altura de nenhum dos dois, mas teve humildade suficiente para deixar a espessura emocional de Randy/Rourke impregnar o filme. Impossível negar a força do resultado.

Luiz Carlos Oliveira Jr.