“Comparo
minha
experiência à de um pugilista que vai ao
treinamento
todos os dias. Um dia, ele trabalha sua direita, um outro, sua
defesa. […] É preciso se manter em forma se
adaptando a
contextos diferentes.” (Mickey
Rourke)
A
declaração
acima foi feita em 1985, “o ano do
dragão”. Mais de
vinte anos depois, O Lutador apresenta
Mickey Rourke no papel de Randy “The
Ram”
Robinson, wrestler profissional que teve seu auge
nos anos 80
e agora encarna o mais típico retrato de herói
decadente. Randy não se manteve em forma, não se
adaptou a contextos diferentes. Numa das cenas mais significativas do
filme, ele e Cassidy (Marisa Tomei) conversam num bar ao som de
“Round and Round”, do Ratt, clássico do
hard rock
oitentista. Eles falam de como os anos 80 foram magníficos,
porém se deixaram atropelar pela década seguinte.
Invertem, assim, a visão habitual que identifica nos 80 uma
década maldita e nos 90 uma era mais
“digna”. Para
eles, os 80 foram a golden age, os 90 foram
tão-somente
o corta-tesão, o fim precoce da festa. O mundo que viria a
seguir não se mostraria nem mais combativo, nem mais
criativo,
nem mais inteligente, apenas menos divertido. Acabou a festa, acabou
a luta, sobrou o luto.
Randy
traz
características dos dois grandes personagens de Rourke dos
anos 80. Ele revive o existencialismo do Motorcycle Boy (O
Selvagem da Motocicleta,
Francis
Ford Coppola, 1983) e, ao mesmo tempo,
a disposição
de Stanley White (O Ano do Dragão,
Michael Cimino, 1985) de ir até o fim de uma luta custe o
que
custar. Motorcycle Boy era um ser destacado do mundo. A voz de Michey
Rourke sempre trabalhou numa frequência mais baixa se
comparada
à de todas as outras vozes, mas quem melhor explorou isso
foi
Coppola: a voz sedativa do Motorcycle Boy parece descolada de seu
corpo, aspecto expandido por uma composição de
ambiências dissonante, onde o espaço sonoro soa
praticamente estrangeiro ao espaço visual. Em O
Lutador,
Rourke também
possui uma voz fora da frequência do entorno,
porém não
mais aveludada como a de seu personagem de O
Selvagem da
Motocicleta, e
sim riscada pelo
tempo. Já o capitão de polícia Stanley
White, de
O Ano do Dragão,
era um ex-combatente para quem a guerra havia na verdade continuado,
só que não mais no Vietnã e sim no
cotidiano de
sua profissão e de sua vida pessoal. Toda a fúria
de
Stanley White habita a massa corporal de Randy, embora essa
fúria
tenha perdido a agilidade e seja agora um corpo fibrilado,
não
mais o sinônimo daquela violência palpitante que se
tornava – por imposição natural
– o nervo
da decupagem. Motorcycle Boy, Stanley White, Randy “The
Ram”:
homens que envelheceram antes da hora. O corpo marcado de Rourke
é
a materialização de sua tensão
permanente com a
ordem das coisas.
Para
filmar um
personagem assumido, de antemão, como um ser em desacordo
com
seu tempo, é preciso adotar um ponto de vista, digamos,
cuidadoso. A história é velha conhecida de todos:
abaixo de uma certa linha, o diretor cai no miserabilismo; muito
acima, adere à frieza de um patologista. Um
documentário
sobre a energia retesada de Mickey Rourke não seria
suficiente. Uma ficção comiserada e
pseudo-humanista
seria um desastre – além de uma
perversão
absoluta. Qual caminho seguir?
O
começo de O
Lutador é elaborado em torno do “plano
de ator”
mais simples – e reiterado o maior número de
vezes, pelo
maior número de filmes – que esta
década
conheceu: a câmera na mão se limita a acompanhar
Mickey
Rourke, que é visto de costas, enquanto ele caminha, como se
o
filme estivesse apenas indo onde ele fosse, tentando respirar no
ritmo dele, deixando-se levar por sua cabeleira tingida de loiro. O
cenário é friorento, a câmera treme ao
se
deslocar, jump cuts picotam a
ação (esse começo parece uma mistura
de Rocky
Balboa com
irmãos
Dardenne). Logo percebemos que a forma adotada por
Aronofsky
dispõe de uma fraca energia de elisão, e que as
supressões da montagem menos conectam as partes do que abrem
hiatos. O plano se mede e se molda pelo sentimento de
presença
e de movimento do ator. O roupão com que o filme acolhe o
personagem já está aí demonstrado. Mas
quando
Aronofsky precisa passar do plano-afeto ao plano-dramaturgia, suas
limitações como encenador se fazem sentir.
Em
duas cenas com Cassidy, sobressaem pontos baixos do filme. A primeira
é o diálogo em que ela, na boate onde trabalha,
fala do
violento flagelo do Cristo no filme de Mel Gibson e insere Randy no
tema do sacrifício (na cena seguinte, ele e seu oponente se
torturam num espetáculo sanguinário e exagerado).
A
outra é sua tentativa de dissuadir Randy de subir ao ringue
pela última vez. A mise en
scène
se perde, o diálogo ruim se impõe. Há
cenas em
que um equilíbrio – precário,
é verdade,
mas por isso mesmo autêntico – é
atingido. Por
exemplo: a explosão de Randy no supermercado. Tudo conspira
para uma cena muito grosseira, desnecessária,
típica
virada de roteiro. A cena, no entanto – filmada de um
ângulo
interessante, do lado de dentro do balcão de frios onde
Randy se encontra, submetendo o campo visual às
reações
dele –, culmina no momento em que um corpo, não
conformado com o espaço que lhe foi dado, transborda seus
limites (sociais, morais, biológicos). Randy decide voltar
ao
ringue. Ali ele reconquista um direito, ou melhor, uma
ação.
Ele não é mais uma anedota cult,
um personagem de Nintendo, um modelo ultrapassado; é um
homem
que sabe determinar seu nicho e seu destino.
Randy
é um grande personagem de cinema. Mickey Rourke é
um
axioma. Aronofsky não está à altura de
nenhum
dos dois, mas teve humildade suficiente para deixar a espessura
emocional de Randy/Rourke impregnar o filme. Impossível
negar a força do resultado.
Luiz Carlos Oliveira Jr.
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