Naquele que talvez seja o plano mais
brilhante de Milk, Sean Penn caminha numa rua escura, seguido por um
vulto fora de foco. O quadro fechado; a tensão causada por aquela sombra à
espreita – um possível atentado? – impregnando a extensão temporal da ação. O
rosto do ator avança imerso no espaço que o contém e irradia, até uma
panorâmica para a direita abrir o enquadramento e permiti-lo entrar em casa a
salvo. Toda a arte de Gus Van Sant, maturada em seus últimos quatro filmes,
poderia ser resumida por este plano: a narrativa orquestrada pela câmera e a
relação ambígua de conflito e pertencimento entre o personagem e seu entorno
tecida pela fotografia. Um indivíduo num espaço-tempo histórico dado, ou: o
peso das ações de um sujeito sobre a leveza que se insinua nos gestos do
cotidiano. Não seria isto que Van Sant vem filmando dedicadamente desde Gerry?
O desenrolar inicial de Milk nos orienta e desorienta em igual medida: após uma longa série de imagens de
arquivo, vemos Harvey Milk registrando suas memórias numa gravação-testamento. Em
seguida, somos catapultados no tempo, para um episódio aparentemente banal de
sua vida pessoal, que logo se revela o real propulsor de sua carreira pública.
Mas mais importante do que a linha temporal que se inicia esfacelada antes de “entrar
nos eixos”, é o fato destes primeiros minutos do filme nos apresentarem um
personagem fantasma, que fala, no presente da imagem, sobre o passado, sob a
perspectiva de um tempo futuro (no qual seus interlocutores imaginados se
situam). Sua história desenrola-se, pois, como um fluxo de consciência que
mescla indistintamente suas experiências mais marcantes – de um almoço
preparado pelo namorado a um grande discurso no palanque, passando pelo
telefonema de um desconhecido.
Voltemos à estratégia formal que
descrevi no primeiro parágrafo: entre a consciência e os acontecimentos existe
um vazio. Este vazio é preenchido pelo sentimento de perigo e por uma
perplexidade fundamental: por que a morte? “A morte” sendo não apenas o
assassinato à espreita, que quando irrompe vem quase de lugar nenhum, ou o
suicídio sem razão suficiente que o justifique, mas tudo aquilo que faz um
homem viver menos do que a potência que carrega em si. A recriação
personalíssima de parte da biografia de Harvey Milk representa para Van Sant
muito mais do que a mera filiação a uma causa (o movimento gay) ou uma simples
asserção política (a necessidade de lutar pelos direitos das minorias). O
percurso do personagem tal como acompanhamos é o de um indivíduo nos anos mais
intensos de sua vida, em que estar no seio de uma efervescente vivência
coletiva corresponde a ocupar fundamentalmente o epicentro de um momento
histórico. Colocar a História, com datas e referências concretas, no coração
deste filme é, portanto, relembrar àqueles que tenham por ventura esquecido que
filmar a “flutuação” de corpos no espaço sempre foi para ele uma ferramenta
formal para ressaltar a gravidade a que os homens estão submetidos.
Desde a ligeireza em forma de “diário
de viagem” de Mala Noche ou das memórias inconstantes de Garotos de
Programa, até a densidade da movimentação em quebra-cabeças de Últimos
Dias ou a abstração mental de uma violência insuportável em Paranoid
Park, o diretor nunca deixou de se preocupar com a força que atrai os
corpos ao chão – e que parece assombrar todo desejo de evasão e de
transcendência das limitações físicas a que estamos assujeitados. A esta
gravidade corresponde precisamente todo o peso da tragédia – como a ligação
direta entre o assassinato de Milk e a encenação da ópera Tosca faz questão de
deixar claro. A crueldade do destino e a glória de uma vida manifestando-se de
forma quase indissociável: ecoando a memória de John Lennon ou Martin Luther
King no inconsciente coletivo, o Harvey Milk de Gus Van Sant morre
abruptamente, antes do tempo, no ápice de uma grande realização. Todas as
ameaças e sentimentos de risco “plantados” ao longo do filme materializam-se
subitamente em mãos conhecidas, aparentemente pelos motivos mais pessoais e
insondáveis possíveis. Antes dos disparos, acompanhamos de forma familiar o
assassino; percorremos com ele em steady cam os corredores do edifício.
Na banda sonora, pássaros e outros ruídos de outras “dimensões”. Não há
dúvidas: Elefante está tão próximo quanto sempre; Gus Van Sant
segue sendo o mais político dos cineastas americanos.
Tatiana Monassa
|