GRAN TORINO
Clint Eastwood, EUA, 2008

Ora, no trágico, o signo é em si mesmo insignificante e sem efeito, mas o elemento original é diretamente exposto.
Friedrich Hölderlin


Dos filmes dirigidos por Clint Eastwood de 2000 para cá, Gran Torino é o quarto em que ele também atua. Em Dívida de Sangue, Eastwood passa por um transplante cardíaco. Em Cowboys do Espaço, seu espelho é um satélite abandonado, silencioso e, em última análise, morto. Se pensamos em Menina de Ouro, as cores que vêm à mente são o preto e o cinza, palheta emocional de um mundo tomado de empréstimo à morte. Agora, em Gran Torino, ele se filma dentro de um caixão. Podemos argumentar que é um passo natural, a etapa aguardada de uma sucessão de auto-retratos nada indulgentes nos quais ele confessa, mais que uma virtude ou um vigor, uma reentrância sinistra da consciência e, sob a forma física do envelhecimento, uma transformação irreversível do corpo. Não podemos todavia deixar de admitir que esse passo natural, essa sucessão aguardada dos fatos desembocou numa imagem decerto inquietante, tanto para ele, Eastwood, como para nós, seus espectadores depuis longtemps.

Walt Kowalski, personagem de Eastwood em Gran Torino, é um veterano da Guerra da Coréia que acaba de ficar viúvo e vive num bairro decadente rodeado de imigrantes. Na garagem, conserva um Gran Torino 1972, que o adolescente Thao, seu vizinho, tenta roubar pressionado pelos membros de uma gangue local. Walt se vê um estrangeiro em seu antigo bairro agora predominado por (outros) estrangeiros. A periferia de Detroit em que o filme se passa é um pouco como o Velho Oeste atravessado por Josey Wales no filme de 1976, o quinto dirigido por Eastwood (quarto em que atuou/dirigiu): cenário de barbárie habitado por desenraizados de diversas raças e origens. Lá esse cenário estava relacionado ao limbo pós-guerra civil; aqui, às consequências últimas do modelo de nação triunfante nessa mesma guerra. Lá era o início do ciclo, aqui é o fim. A decadência econômica, portanto, faz uma cidade que já foi signo do progresso industrial remontar às origens caóticas de um contrato social que não se impõe senão às custas da violência. O pacto de convivência nasce da eliminação ou assimilação (quase nunca pacífica) dos outsiders, outlaws ou quaisquer outros agentes de contradições fundadoras. Mas tem um detalhe dessa história que Gran Torino explicita: todos são outsiders. A começar pelo polaco Kowalski. Não há um só personagem que seja um true american, ou melhor, todos são true americans na medida em que revelam uma origem fora do território americano e, deste modo, reintegram o devir de um país de imigrantes.

Gran Torino talvez seja o ponto de maior clareza e concisão do percurso que tem levado Eastwood a compreender e transmitir, por meios que nenhum outro cineasta hoje detém tão precisamente, a dialética trágica, seja a do forte que depende do fraco para que sua força possa resplandecer em plenitude, seja a da relação entre o homem e o destino, a natureza ou, quem sabe, Deus. Gran Torino é a culminância desse trajeto: Eastwood, na pele de Walt (ou Walt na pele de Eastwood?), se oferece em sacrifício a fim de levar o filme (o que neste caso equivale a dizer: o mundo) à sua manifestação mais adequada e depurada. Walt só pode oferecer esse serviço na morte.

Embora comece com uma cena de velório, o filme possui uma comicidade, sobretudo por conta das explosões de mau humor de Walt, que por um tempo nos desvia das trevas nas quais sua matéria dramática se acha engastada. Mas há um momento em que a luz que forçara sua entrada na noite de repente se fecha novamente. É o dia, artifício válido mas passageiro, se transformando em “noite intensificada”, ou simplesmente retornando ao seu estado natural. A cena mais pesada do filme é justamente a do retorno fulminante dessa noite implacável, volumosa, trágica. A adolescente Sue, que Walt em outra ocasião salvara do assédio de jovens delinquentes, chega em casa completamente arrebentada. O que indiretamente desencadeou tal agressão extrema foi uma atitude de Walt: ele “mandara recado” ao primo de Sue, líder da gangue Hmong que perturba a vizinhança, ordenando que a gangue parasse de importunar Thao (agora seu amigo e quase filho adotivo). Os gangsteres se vingaram estuprando e violentando Sue, que é irmã de Thao. A chegada dela após o ocorrido é um choque. Walt, que está lá e presencia esse momento, vai para casa, se tranca em um desesperador sentimento de culpa. Ele soca a porta de vidro de um armário, se autoflagela, sente sua existência como um erro da natureza. O espaço ao redor dele se afunda na mais densa escuridão do filme. O cenário se converte em espaço mental; o drama se relocaliza nessa espécie de câmara obscura da consciência que é, a um só tempo, seu abismo e sua forma quintessente. A sombra no rosto de Eastwood sempre existiu para que se pudesse olhar além dele, buscando algo que seu rosto esconde e no entanto quer confessar. Nessa cena de Gran Torino, Walt se entrega à escuridão porque ela nada mais é que a substância mesma de sua alma, a matéria de que é feita. Eis sua grande confissão.

Luiz Carlos Oliveira Jr.