Ora,
no trágico,
o signo é em si mesmo insignificante e sem efeito, mas o
elemento original é diretamente exposto.
Friedrich Hölderlin
Dos
filmes dirigidos por Clint Eastwood de 2000 para cá, Gran
Torino
é o
quarto em que ele
também atua. Em Dívida
de
Sangue,
Eastwood passa por um
transplante cardíaco. Em Cowboys
do Espaço,
seu espelho é um satélite abandonado, silencioso e, em última análise,
morto. Se pensamos em Menina de Ouro,
as cores que vêm à mente são o preto e
o cinza,
palheta emocional de um mundo tomado de empréstimo
à
morte. Agora, em Gran Torino,
ele se filma dentro de um caixão. Podemos argumentar que
é
um passo natural, a etapa aguardada de uma sucessão de
auto-retratos nada indulgentes nos quais ele confessa, mais que uma
virtude ou um vigor, uma reentrância sinistra da
consciência
e, sob a forma física do envelhecimento, uma
transformação
irreversível do corpo. Não podemos todavia deixar
de
admitir que esse passo natural, essa sucessão aguardada dos
fatos desembocou numa imagem decerto inquietante, tanto para ele,
Eastwood, como para nós, seus espectadores depuis
longtemps.
Walt
Kowalski,
personagem de Eastwood em Gran Torino, é
um veterano da
Guerra da Coréia que acaba de ficar viúvo e vive
num
bairro decadente rodeado de imigrantes. Na garagem, conserva um Gran
Torino 1972, que o adolescente Thao, seu vizinho, tenta roubar
pressionado pelos membros de uma gangue local. Walt se vê um
estrangeiro em seu antigo bairro agora predominado por (outros)
estrangeiros. A
periferia de
Detroit em que o filme se passa é um pouco como o Velho
Oeste
atravessado por Josey Wales no filme de 1976, o quinto dirigido por
Eastwood (quarto em que atuou/dirigiu): cenário de
barbárie
habitado por desenraizados de diversas raças e origens.
Lá
esse cenário estava relacionado ao limbo
pós-guerra
civil; aqui, às consequências últimas
do modelo
de nação triunfante nessa mesma guerra.
Lá era o
início do ciclo, aqui é o fim. A
decadência
econômica, portanto, faz uma cidade que já foi
signo do
progresso industrial remontar às origens caóticas
de um
contrato social que não se impõe senão
às
custas da violência. O pacto de convivência nasce
da
eliminação ou assimilação
(quase nunca
pacífica) dos outsiders,
outlaws
ou quaisquer
outros agentes de contradições fundadoras.
Mas tem um
detalhe dessa história
que Gran Torino explicita: todos são outsiders.
A começar pelo polaco Kowalski. Não há
um só
personagem que seja um true american,
ou melhor, todos são true americans
na medida em
que revelam uma origem fora do território americano e, deste
modo, reintegram o devir de um país de imigrantes.
Gran
Torino
talvez seja o ponto de maior clareza e concisão do percurso
que tem levado Eastwood a compreender e transmitir, por meios que
nenhum outro cineasta hoje detém tão
precisamente, a dialética
trágica,
seja a do forte que depende do fraco para que sua força
possa
resplandecer em plenitude, seja a da relação
entre o
homem e o destino, a natureza ou, quem sabe, Deus. Gran Torino
é a culminância desse trajeto:
Eastwood, na pele
de Walt (ou Walt na pele de Eastwood?), se oferece em
sacrifício
a fim de levar o filme (o que neste caso equivale a dizer: o mundo)
à
sua manifestação mais adequada e depurada. Walt
só
pode oferecer esse serviço na morte.
Embora
comece com uma
cena de velório, o filme possui uma comicidade, sobretudo
por
conta das explosões de mau humor de Walt, que por um tempo
nos
desvia das trevas nas quais sua matéria dramática
se
acha engastada. Mas há um momento em que a luz que
forçara
sua entrada na noite de repente se fecha novamente. É o dia,
artifício válido mas passageiro, se transformando
em
“noite intensificada”, ou simplesmente retornando
ao seu
estado natural. A cena mais pesada do filme é justamente a
do
retorno fulminante dessa noite implacável, volumosa,
trágica.
A adolescente Sue, que Walt em outra ocasião salvara do
assédio de jovens delinquentes, chega em casa completamente
arrebentada. O que indiretamente desencadeou tal agressão
extrema foi uma atitude de Walt: ele “mandara
recado” ao
primo de Sue, líder da gangue Hmong que perturba a
vizinhança,
ordenando que a gangue parasse de importunar Thao (agora seu amigo e
quase filho adotivo). Os gangsteres se vingaram estuprando e
violentando Sue, que é irmã de Thao. A chegada
dela
após o ocorrido é um choque. Walt, que
está lá
e presencia esse momento, vai para casa, se tranca em um desesperador
sentimento de culpa. Ele soca a porta de vidro de um
armário,
se autoflagela, sente sua existência como um erro da
natureza.
O espaço ao redor dele se afunda na mais densa
escuridão
do filme. O cenário se converte em espaço mental;
o
drama se relocaliza nessa espécie de câmara
obscura da
consciência que é, a um só tempo, seu
abismo e
sua forma quintessente. A sombra no rosto de Eastwood sempre existiu
para que se pudesse olhar além dele, buscando algo que seu
rosto esconde e no entanto quer confessar. Nessa cena de Gran
Torino, Walt se entrega à escuridão
porque ela
nada mais é que a substância mesma de sua alma, a
matéria de que é feita. Eis sua grande
confissão.
Luiz Carlos Oliveira Jr.
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