Talvez a coisa mais sedutora de Coraline seja a idéia de um duplo do mundo encantado e amaldiçoado ao mesmo tempo. Para
usufruir das benesses de uma vida sem os incômodos e decepções da vida em
família (ou em comunidade), é preciso na realidade perder os olhos (o coração?)
e aceitar ser manuseado como um fantoche. Pois o limite entre si e o outro (saber
ouvir mesmo quando não se tem vontade, respeitar a indisposição alheia, lidar
com a falta de constante atenção) é um aprendizado indissociável do aprendizado
do afeto adulto. Toda a aventura de Coraline representa, tipicamente, o
rito de passagem da infância para a adolescência. Ao renunciar àquele mundo mágico,
Coraline não apenas renuncia à fantasia com um gosto amargo no final, como
aceita a inevitabilidade de enfrentar as coisas tais como elas são: os pais ranzinzas
ainda são pais, o amiguinho tagarela é ainda assim um companheiro, um mundo sem
atrativos pode ser revitalizado.
Claro que a idéia está longe de ser
nova e todos os contos ou filmes baseados em um mundo paralelo tematizam de uma
forma ou de outra a fuga da realidade, com maiores ou menores doses de lições
moralizantes. De Pinóquio a O Labirinto do Fauno, a tradição de
crianças confrontadas com seus medos e sonhos simultaneamente é uma constante
no imaginário popular e corresponde exatamente ao chamado à responsabilidade de
fazer escolhas. E é exatamente isto que encontra-se tão bem trabalhado em Coraline.
A sagacidade e o olhar crítico da personagem nunca permite que o enredo ganhe
ares didáticos ou pareça esquemático. A cada cena, o sentido de descoberta é
pleno e nos sentimos momento a momento vivenciando os acontecimentos ao lado da
menina. E isto certamente se deve ao fato de Henry Selick integrar o seleto
grupo de diretores capazes de filmar um mundo – mesmo que um mundo de bonecos
animados em stop-motion.
Tatiana Monassa
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