O
que mais impressiona
em O Casamento de Rachel é a banalidade
do projeto: em
ambiente liberal/multiculturalista, dramatizar o drama familiar da
chegada da ovelha negra no seio do casamento imaculado, e para isso
parasitar a estética já totalmente desgastada do
Dogma
95. Trocando em miúdos, esse filme de Jonathan Demme
é
um Festa de Família com retoques
exoticizantes estilo
Um Casamento à Indiana. As
referências ao filme
de Thomas Vinterberg são explícitas, e tomam do
filme o
que há de pior: a câmera meio casual, mas com
ponto de
vista de quem está prestes a descobrir um
mistério bem
escondido; a estética dos vídeos caseiros, com
câmera
tremida, inconsistências de luz, etc; e acima de tudo os
cortes
bruscos, os jump cuts afetados nascidos dos primeirs exemplares do
Dogma e rebatizados de forma mais eficaz (mas não menos
formulaica) pelos irmãos Dardenne. O exótico
é
apenas para dar um tom mais palatável ao drama da
impossibilidade de reinserção, com
cerimônia
indiana, mini-escola de samba sob a batuta do craque Cyro Baptista,
neofolkpop a cargo de Robyn Hitchcock. Mas é de se perguntar
a
que tudo isso se presta.
Porque,
na verdade,
O Casamento de Rachel deveria ser um retrato de personagem
que se
transforma num registro de família disfuncional. E isso em
meio aos preparativos de um casamento, ou seja, num tipo de
situação
em que só se espera a boa vontade e a alegria vindas de
todos
os convivas. Nada fácil, de fato, a tarefa de equilibrar o
feelgood dos filmes de casamento com o aparecimento
da figura
indesejável, daquela que vai despertar na família
todos
seus traumas e ressentimentos. Festa de Família
resolveu de forma espertinha, denunciando a hipocrisia das
reuniões
familiares, com cores algo escandalosas (e muito menos talentosas do
que Richard Brooks e Robert Altman fizeram com A Festa de
Casamento e Cerimônia de Casamento,
respectivamente). O Casamento de Rachel prefere
não
resolver, tentando simultaneamente empatizar o espectador com as
cenas de sedução pelo matrimônio e, em
modo mais
sombrio, revelar a penúria existencial de uma personagem
recém-saída da reabilitação
mas incapaz
de superar um trauma de juventude que afetou a família
inteira. E nessa acaba se estrepando.
Primeiro
porque existe
uma estética extremamente inapropriada para dar conta da
personagem. A dinâmica fragmentária da montagem,
aliada
a algumas cenas surpreendentemente longas e inúteis
–
infinidade de dedicatórias aos noivos depois do jantar,
infinidade de apresentações musicais etc.
–,
tiram definitivamente o foco da protagonista. E, pior, em momentos
podem mesmo fazer o espectador desejar que ela se ausente o
máximo
possível, já que o próprio diretor do
filme
parece muito mais interessado nos momentos alegres da
cerimônia.
Por mais que Anne Hathaway ofereça uma pungente fragilidade
para compensar a insuportável necessidade de
atenção
de sua personagem, o próprio filme só se
interessa
superficialmente na construção da personagem e na
relação familiar. Em segundo lugar, porque
Jonathan
Demme em O Casamento de Rachel parece querer
equilibrar um
cinema de autor já defasado em seus tiques
subestilísticos
com o feelgood à americana, e acaba
criando um desses
exemplares aguados e regressivos de entretenimento "cult"
que só enganam com a pecha de modernidade o espectador que
nunca botou pé num filme que não fosse de grande
estúdio americano.
Ruy Gardnier
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