Como filmar um presente que não se sustenta,
que não pode ganhar
consistência? Como filmar uma realidade temporal que
não estabelece conexão com
as outras realidades? David Fincher encontra um caminho, aparentemente
sem
grande esforço: se o corpo de Benjamin Button não
registra a passagem do tempo
da mesma maneira que os demais corpos, o espaço visual que
ele ocupa deverá ser
igualmente deslocado. A figura de Benjamin Button não envia
qualquer vibração
aos cenários, que respondem da mesma forma, sem provocar
reações no personagem. Benjamin é um pouco o homem que não estava
lá, mas virou história, mitologia (já não era o caso em Zodíaco?).
E o filme estira o intervalo, cria uma defasagem espacial que vem se
somar à
defasagem temporal que é o motivo da fábula. Como
decorrência natural, a cena
se desfaz. Vemos as imagens, mas não a cena; esta, como o
tempo, se acha
liquefeita. E a situação não muda quando o
personagem chega à idade que bate com a idade do ator
(Brad Pitt): não era apenas a maquiagem o que se interpunha
entre o ator e a cena, embora a parte menos frágil do filme de
fato coincida com o
momento em que
Daisy (Cate Blanchett) e Benjamin ajustam o fuso por um breve
período. Já as
cenas com Daisy velha, no leito de morte, e sua filha Caroline (Julia
Ormond)
lendo o diário de Benjamin teriam sido jogadas no lixo por
qualquer montador de
bom senso, caso não fossem simplesmente a viga central da
narrativa. (Quanto à
voz artificialmente sôfrega da agonizante Daisy, digamos
apenas que é um
recurso expressivo de mau gosto.)
Existe ainda uma outra defasagem no filme. Em certos momentos, a
narração em off
de Benjamin diz coisas como “naquele momento
percebi que a amava” ou algo
do gênero. Mas esse sentimento não se confirma na
imagem e nos atores. Falta
uma força, um brilho qualquer para fazer o sentimento
comunicado pela narração
exalar de dentro da imagem. O que vemos não corresponde com
o que ouvimos.
Propaganda enganosa. Por falar nisso, a cena final de O
Curioso Caso de
Benjamin Button é praticamente a
reprodução automática de uma
propaganda de
plano de saúde: a câmera se aproxima dos
personagens em lento travelling,
o reconforto paternal da voz de Benjamin (é sua filha quem
lê o diário, não
esqueçamos) diz que algumas pessoas nasceram para nadar,
outras para levar
raios na cabeça... outras para dançar: Daisy
executa um passo de balé, olha para
a câmera e dá um sorriso, um piano de notas
sentimentais acompanha. Vale lembrar
que a lógica desse tipo de publicidade é prometer
uma inversão do tempo, uma
trucagem do relógio biológico, uma nova juventude
na velhice.
E tem o furacão Katrina, que vai se
aproximando ao longo do filme... O
Curioso Caso de Benjamin Button faz também uma lenta contagem
regressiva para a catástrofe. Difícil pensar que o roteiro foi
adaptado de um
magnífico conto de F. Scott Fitzgerald, e que o filme anterior de Fincher havia sido seu melhor.
Luiz Carlos Oliveira Jr.
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