A Troca está longe de ser um filme
perfeito. É um filme, ao contrário,
repleto de desproporções, de cenas abaixo ou
acima do tom (no que a fotografia
ajuda muito), de alargamentos ou achatamentos de escopo que comprometem
a
integridade da matéria dramática. A montagem
evidencia alguns cotovelos
narrativos, golpes mais contundentes que os demais, que não
chegam a ser golpes
baixos, mas que representam uma força de natureza distinta
daquela exercida no
resto do filme (os flash-backs, algumas partes no tribunal e a cena do
enforcamento são os melhores exemplos). Mas por que
começar falando isso?
Somente para dizer que o cinema, sobretudo o cinema de Clint Eastwood,
é na
maior parte do tempo feito de imperfeições. E
para acrescentar que, no
conjunto, e a despeito de qualquer desnível, A
Troca está entre seus
filmes de maior impacto (possivelmente o segundo melhor desta
década, depois de
Menina de Ouro).
Impacto que se constrói desde o início. Christine
Collins (Angelina Jolie) vive
um dia como outro qualquer: acorda o filho, prepara-o para a escola,
conversa
com ele, vai para a companhia telefônica em que trabalha,
recebe elogios do
patrão. No dia seguinte, a mudança: ao voltar
para casa do trabalho, ela não
encontra o filho. As ações de Christine
até então eram mostradas de forma
dinâmica, movimentada, mas sem muito comentário
por parte do narrador, um olhar
objetivo sobre um conjunto de relações (dela com
o filho, com o trabalho etc).
Quando ela chega em casa e não encontra o filho, seguem-se
planos nos quais já
estamos vendo um outro tipo de objetividade, tão preocupado
em descrever a
situação quanto em guardar a essência
de um drama que, naquele ponto, acaba de
se tornar mais intenso. Em algum momento anterior, entre uma
ação e outra, algo
já havia mudado: o discurso do reverendo Gustav Briegleb
(John Malkovich)
denunciara o absurdo da corrupção policial na
cidade de Los Angeles, em planos
mais duros e estáticos. Eastwood, ali, não
filmava mais a ação, filmava o discurso.
Ora, a verdade para Eastwood nunca esteve nos discursos, e o que
devemos
perceber nessa primeira aparição de Malkovich
é que a palavra, neste caso,
ocupa uma lacuna, é alguma coisa que surge na
falta de uma ação.
Eastwood expõe o problema, quase à maneira de um
homem de ciência, e depois
organiza o filme em torno de uma reflexão. Mas essa
reflexão nos será
transmitida em termos físicos, brutais e imediatos,
pondo-nos em contato mais
com a descrição da experiência do que
com os resultados da análise. O
coração
de Clint Eastwood bate junto com o de Christine, e isso
guiará o filme no
sentido da experiência, ou seja, no sentido de uma
emoção e de uma violência
que reconhecemos fisicamente.
É em M, do Fritz Lang, que somos levados
a pensar num primeiro momento.
Desde o sumiço da criança até o
julgamento do assassino, a semelhança de enredo
é mais que óbvia (e, como se não
bastasse, o ator que interpreta Gordon
Northcott tem lá seus traços em comum com Peter
Lorre). Existe, contudo, um
outro filme de Lang do qual A Troca se aproxima
ainda mais: Beyond a
Reasonable Doubt (Suplício de uma Alma),
de 1956, seu penúltimo
filme americano, que conta a história de uma farsa
jurídica criada no intuito
de desmascarar os mecanismos falhos da justiça e da pena de
morte: todas as
evidências recolhidas levam a crer que o personagem de Dana
Andrews é culpado,
mas no fundo ele havia, ao lado do sogro (que é editor de um
jornal), forjado
essa auto-incriminação e detinha meios de,
posteriormente, provar sua inocência
(quem viu o filme, no entanto, sabe quais serão os
desenlaces). O enredo,
embora trazendo a pena de morte como pano de fundo, pouco tem a ver com
o de A
Troca. Mas observemos dois momentos específicos de
A Troca que dão a
entrever um conjunto maior e esclarecem a relação
com Beyond a Reasonable
Doubt: 1) os policiais entregam a Christine um menino, na
plataforma do
trem, que ela de imediato reconhece que não é seu
filho, e o oficial
encarregado sugere que ela o leve para casa mesmo assim, como teste
(“on a
trial basis”); 2) numa cena seguinte, esse mesmo
policial vai na casa de
Christine acompanhado de um médico; ela mostra que o menino
que se passa por
seu filho não tem a altura do filho verdadeiro, marcada na
parede; o médico diz
que ela precisa acreditar que aquele menino é seu filho,
pois (e ele não se
furta a dar argumentos cientificamente embasados) é
possível que o menino tenha
diminuído de tamanho, ainda que improvável. Em
suma, eles querem que Christine
substitua a verdade pela verossimilhança. Ao que ela se
recusa, enfrentando-os.
No filme de Lang, a luta de Dana Andrews é o oposto da luta
de Christine/Jolie,
pois ele quer justamente encobrir a verdade por meio do
verossímil, ao passo
que ela vai atrás da verdade dos fatos e do filho
verdadeiro, mesmo que isso
pareça impossível e, a partir de um certo
momento, insano. O que une os dois
filmes, essencialmente, é o procedimento plantado em Beyond
a Reasonable
Doubt: Fritz Lang promove uma
destruição integral das aparências. Ele
mostra homens que, por meio de um experimento existencial, tentam
inventar um
fato verdadeiro à luz da justiça, para depois
destruí-lo com base num outro
fato, verdadeiro à luz das evidências que
extrapolam a justiça e a declaram
insuficiente, débil, incompleta diante de uma verdade
supostamente maior e
coincidente com a verdade do mundo. Só que nos dois casos
tratam-se de
aparências enganosas, deformadas, e o filme
destrói ambas. Sobra o quê? Sobra o
mundo colocado à prova de si mesmo. Em outras palavras, o
mundo em luta.
O “experimento” da troca igualmente
revelará, no filme de Eastwood, que a
verdade desertou os discursos e as aparências. O
complô jornalístico que
aprisiona Christine em falsas declarações e
reportagens maliciosas, legitimadas
por fotografias, está lá para não
deixar dúvida de que toda a capa que reveste
a sociedade, com suas imagens devidamente escoltadas por enunciados,
já se
tornou, em si, objeto de luta (ele dá continuidade, nesse
quesito, à reflexão
central de A Conquista da Honra). A
retórica esconde a verdade – e dessa
mentira as imagens se tornaram o mais comum e mais forte
cúmplice.
Um filme citado de forma diferente é Aconteceu
Naquela Noite, de Frank
Capra, que ganha o Oscar em 1935, conforme Christine ouve pelo
rádio. Capra e
Lang: duas linhas de força do cinema dos anos trinta em
Hollywood. Capra,
segundo o senso comum, representa o otimismo, a levantada de moral
pós-1929.
Lang, o pessimismo, o céu tenebroso de um mundo tragado pela
violência e mesmo
estruturado por ela (e aqui já não é
mais o senso comum que diz). Para que lado
Eastwood vai ao evocar ambos? A princípio, A Troca
tenderia a um
profundo e intransigente negativismo, não fosse por um
detalhe: Eastwood não
busca o positivo nem o negativo, ele busca a verdade. Que
não se confunda essa
verdade com, por exemplo, extrair a confissão do assassino
(“você matou o meu
filho?”, Christine berra inutilmente na cadeia, ao encontrar
Gordon face a
face). A verdade aqui em jogo é uma verdade da personagem
que podemos assim
resumir: viver = lutar. E essa verdade inclui deparar-se com os abismos
do
mundo, seus pontos insondáveis. Nada que, no plano
físico, moral e psicológico,
outros cineastas (Losey, Fuller, Lang, Pialat, Herzog, Flynn), e mesmo
outros
filmes de Eastwood (todos?), já não tivessem
demonstrado, e de modo até mais
claro em diversos aspectos. Por exemplo: a cena do enforcamento, embora
extraordinária, não é a
reflexão mais forte de Eastwood sobre a pena de morte;
o tema, tanto no aspecto trágico como político,
foi trabalhado de modo mais
consistente em Crime Verdadeiro. Mas isso
não tira a força singular da
cena, nem do filme como um todo. Enquanto a justiça cumpre
seu ritual sinistro,
vemos novamente aquela interseção de
observação exata e relato subjetivo, como
havia ocorrido na cena do sumiço do menino. Os planos de
Gordon sendo levado à
forca são ao mesmo tempo o documento frio daquela
execução e o choque emotivo
de Christine assistindo a tudo.
Essa luta que se confunde ao próprio viver, para Christine,
se reduz a um termo
único. Ela não milita por uma melhoria social ou
política, sua batalha não é
para restabelecer a justiça no mundo. Se ela interfere no
destino da cidade,
seja deflagrando um escândalo no alto escalão da
polícia, seja enfraquecendo a
possibilidade de reeleição do prefeito de Los
Angeles, isso acontece
praticamente à revelia de sua
obstinação maior. Quando o filme acaba e ela sai
de cabeça erguida por aquela rua, o que fica no ar
não é a velha mensagem de
esperança em meio a tempos difíceis. O letreiro
anunciando Aconteceu Naquela
Noite não é uma legenda para o otimismo
estilo bola-para-frente. Pelo
contrário: o país inteiro pode estar lutando para
superar a recessão econômica,
mas a luta de Christine continuará a mesma, a mesma que
vimos durante 140
minutos. Ela tem como lema: “Nunca comece uma briga, mas
sempre a termine”.
Terminar a briga, aqui, significa não
abandoná-la, acreditar que a única
razão
para se continuar vivendo é manter viva sua causa. Nem que
isso crie um abismo
entre a personagem e o mundo.
Observando os filmes recentes de Eastwood, notamos que quanto mais ele
se
debruça sobre o inferno e as trevas, mais pesado e
verdadeiro fica o traço. De
uma hora para outra, mostrar o inferno e a queda irrefreável
se torna mais
determinante que encontrar a graça, a bela harmonia, a paz
de espírito, a dócil
cintilação do mundo na pele do homem. Por que
isso acontece? Porque aos olhos
de Eastwood (a exemplo, novamente, de Lang), estamos mais perto do
Inferno que
do Céu, então é lógico
enxergar melhor o primeiro que o segundo. Não se trata,
portanto, de fazer um filme pessimista nem otimista, mas simplesmente
de fazer
um filme verdadeiro.
Luiz Carlos Oliveira Jr.
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