A TROCA
Clint Eastwood, Changeling, EUA, 2008

A Troca está longe de ser um filme perfeito. É um filme, ao contrário, repleto de desproporções, de cenas abaixo ou acima do tom (no que a fotografia ajuda muito), de alargamentos ou achatamentos de escopo que comprometem a integridade da matéria dramática. A montagem evidencia alguns cotovelos narrativos, golpes mais contundentes que os demais, que não chegam a ser golpes baixos, mas que representam uma força de natureza distinta daquela exercida no resto do filme (os flash-backs, algumas partes no tribunal e a cena do enforcamento são os melhores exemplos). Mas por que começar falando isso? Somente para dizer que o cinema, sobretudo o cinema de Clint Eastwood, é na maior parte do tempo feito de imperfeições. E para acrescentar que, no conjunto, e a despeito de qualquer desnível, A Troca está entre seus filmes de maior impacto (possivelmente o segundo melhor desta década, depois de Menina de Ouro).

Impacto que se constrói desde o início. Christine Collins (Angelina Jolie) vive um dia como outro qualquer: acorda o filho, prepara-o para a escola, conversa com ele, vai para a companhia telefônica em que trabalha, recebe elogios do patrão. No dia seguinte, a mudança: ao voltar para casa do trabalho, ela não encontra o filho. As ações de Christine até então eram mostradas de forma dinâmica, movimentada, mas sem muito comentário por parte do narrador, um olhar objetivo sobre um conjunto de relações (dela com o filho, com o trabalho etc). Quando ela chega em casa e não encontra o filho, seguem-se planos nos quais já estamos vendo um outro tipo de objetividade, tão preocupado em descrever a situação quanto em guardar a essência de um drama que, naquele ponto, acaba de se tornar mais intenso. Em algum momento anterior, entre uma ação e outra, algo já havia mudado: o discurso do reverendo Gustav Briegleb (John Malkovich) denunciara o absurdo da corrupção policial na cidade de Los Angeles, em planos mais duros e estáticos. Eastwood, ali, não filmava mais a ação, filmava o discurso. Ora, a verdade para Eastwood nunca esteve nos discursos, e o que devemos perceber nessa primeira aparição de Malkovich é que a palavra, neste caso, ocupa uma lacuna, é alguma coisa que surge na falta de uma ação. Eastwood expõe o problema, quase à maneira de um homem de ciência, e depois organiza o filme em torno de uma reflexão. Mas essa reflexão nos será transmitida em termos físicos, brutais e imediatos, pondo-nos em contato mais com a descrição da experiência do que com os resultados da análise. O coração de Clint Eastwood bate junto com o de Christine, e isso guiará o filme no sentido da experiência, ou seja, no sentido de uma emoção e de uma violência que reconhecemos fisicamente.

É em M, do Fritz Lang, que somos levados a pensar num primeiro momento. Desde o sumiço da criança até o julgamento do assassino, a semelhança de enredo é mais que óbvia (e, como se não bastasse, o ator que interpreta Gordon Northcott tem lá seus traços em comum com Peter Lorre). Existe, contudo, um outro filme de Lang do qual A Troca se aproxima ainda mais: Beyond a Reasonable Doubt (Suplício de uma Alma), de 1956, seu penúltimo filme americano, que conta a história de uma farsa jurídica criada no intuito de desmascarar os mecanismos falhos da justiça e da pena de morte: todas as evidências recolhidas levam a crer que o personagem de Dana Andrews é culpado, mas no fundo ele havia, ao lado do sogro (que é editor de um jornal), forjado essa auto-incriminação e detinha meios de, posteriormente, provar sua inocência (quem viu o filme, no entanto, sabe quais serão os desenlaces). O enredo, embora trazendo a pena de morte como pano de fundo, pouco tem a ver com o de A Troca. Mas observemos dois momentos específicos de A Troca que dão a entrever um conjunto maior e esclarecem a relação com Beyond a Reasonable Doubt: 1) os policiais entregam a Christine um menino, na plataforma do trem, que ela de imediato reconhece que não é seu filho, e o oficial encarregado sugere que ela o leve para casa mesmo assim, como teste (“on a trial basis”); 2) numa cena seguinte, esse mesmo policial vai na casa de Christine acompanhado de um médico; ela mostra que o menino que se passa por seu filho não tem a altura do filho verdadeiro, marcada na parede; o médico diz que ela precisa acreditar que aquele menino é seu filho, pois (e ele não se furta a dar argumentos cientificamente embasados) é possível que o menino tenha diminuído de tamanho, ainda que improvável. Em suma, eles querem que Christine substitua a verdade pela verossimilhança. Ao que ela se recusa, enfrentando-os.

No filme de Lang, a luta de Dana Andrews é o oposto da luta de Christine/Jolie, pois ele quer justamente encobrir a verdade por meio do verossímil, ao passo que ela vai atrás da verdade dos fatos e do filho verdadeiro, mesmo que isso pareça impossível e, a partir de um certo momento, insano. O que une os dois filmes, essencialmente, é o procedimento plantado em Beyond a Reasonable Doubt: Fritz Lang promove uma destruição integral das aparências. Ele mostra homens que, por meio de um experimento existencial, tentam inventar um fato verdadeiro à luz da justiça, para depois destruí-lo com base num outro fato, verdadeiro à luz das evidências que extrapolam a justiça e a declaram insuficiente, débil, incompleta diante de uma verdade supostamente maior e coincidente com a verdade do mundo. Só que nos dois casos tratam-se de aparências enganosas, deformadas, e o filme destrói ambas. Sobra o quê? Sobra o mundo colocado à prova de si mesmo. Em outras palavras, o mundo em luta.

O “experimento” da troca igualmente revelará, no filme de Eastwood, que a verdade desertou os discursos e as aparências. O complô jornalístico que aprisiona Christine em falsas declarações e reportagens maliciosas, legitimadas por fotografias, está lá para não deixar dúvida de que toda a capa que reveste a sociedade, com suas imagens devidamente escoltadas por enunciados, já se tornou, em si, objeto de luta (ele dá continuidade, nesse quesito, à reflexão central de A Conquista da Honra). A retórica esconde a verdade – e dessa mentira as imagens se tornaram o mais comum e mais forte cúmplice.

Um filme citado de forma diferente é Aconteceu Naquela Noite, de Frank Capra, que ganha o Oscar em 1935, conforme Christine ouve pelo rádio. Capra e Lang: duas linhas de força do cinema dos anos trinta em Hollywood. Capra, segundo o senso comum, representa o otimismo, a levantada de moral pós-1929. Lang, o pessimismo, o céu tenebroso de um mundo tragado pela violência e mesmo estruturado por ela (e aqui já não é mais o senso comum que diz). Para que lado Eastwood vai ao evocar ambos? A princípio, A Troca tenderia a um profundo e intransigente negativismo, não fosse por um detalhe: Eastwood não busca o positivo nem o negativo, ele busca a verdade. Que não se confunda essa verdade com, por exemplo, extrair a confissão do assassino (“você matou o meu filho?”, Christine berra inutilmente na cadeia, ao encontrar Gordon face a face). A verdade aqui em jogo é uma verdade da personagem que podemos assim resumir: viver = lutar. E essa verdade inclui deparar-se com os abismos do mundo, seus pontos insondáveis. Nada que, no plano físico, moral e psicológico, outros cineastas (Losey, Fuller, Lang, Pialat, Herzog, Flynn), e mesmo outros filmes de Eastwood (todos?), já não tivessem demonstrado, e de modo até mais claro em diversos aspectos. Por exemplo: a cena do enforcamento, embora extraordinária, não é a reflexão mais forte de Eastwood sobre a pena de morte; o tema, tanto no aspecto trágico como político, foi trabalhado de modo mais consistente em Crime Verdadeiro. Mas isso não tira a força singular da cena, nem do filme como um todo. Enquanto a justiça cumpre seu ritual sinistro, vemos novamente aquela interseção de observação exata e relato subjetivo, como havia ocorrido na cena do sumiço do menino. Os planos de Gordon sendo levado à forca são ao mesmo tempo o documento frio daquela execução e o choque emotivo de Christine assistindo a tudo.

Essa luta que se confunde ao próprio viver, para Christine, se reduz a um termo único. Ela não milita por uma melhoria social ou política, sua batalha não é para restabelecer a justiça no mundo. Se ela interfere no destino da cidade, seja deflagrando um escândalo no alto escalão da polícia, seja enfraquecendo a possibilidade de reeleição do prefeito de Los Angeles, isso acontece praticamente à revelia de sua obstinação maior. Quando o filme acaba e ela sai de cabeça erguida por aquela rua, o que fica no ar não é a velha mensagem de esperança em meio a tempos difíceis. O letreiro anunciando Aconteceu Naquela Noite não é uma legenda para o otimismo estilo bola-para-frente. Pelo contrário: o país inteiro pode estar lutando para superar a recessão econômica, mas a luta de Christine continuará a mesma, a mesma que vimos durante 140 minutos. Ela tem como lema: “Nunca comece uma briga, mas sempre a termine”. Terminar a briga, aqui, significa não abandoná-la, acreditar que a única razão para se continuar vivendo é manter viva sua causa. Nem que isso crie um abismo entre a personagem e o mundo.

Observando os filmes recentes de Eastwood, notamos que quanto mais ele se debruça sobre o inferno e as trevas, mais pesado e verdadeiro fica o traço. De uma hora para outra, mostrar o inferno e a queda irrefreável se torna mais determinante que encontrar a graça, a bela harmonia, a paz de espírito, a dócil cintilação do mundo na pele do homem. Por que isso acontece? Porque aos olhos de Eastwood (a exemplo, novamente, de Lang), estamos mais perto do Inferno que do Céu, então é lógico enxergar melhor o primeiro que o segundo. Não se trata, portanto, de fazer um filme pessimista nem otimista, mas simplesmente de fazer um filme verdadeiro.

Luiz Carlos Oliveira Jr.