Robert
Altman nunca foi um cineasta especialmente defendido
por esta revista em seus dez anos. São inúmeros
motivos, alguns que dizem respeito a uma questão
interna da revista e de sua tentativa de opor-se ao
bafafá bem-pensante que se deslumbrava de modo
(ao menos depois de 1998) francamente imerecido, alguns
que dizem respeito à nefasta influência
que Robert Altman exerceu no cinema mundial do começo
dos anos 90 até esses dias. Mas o principal é
que seus filmes dos últimos dez anos, Gosford
Park incluído, não pareciam se aventurar
por caminhos estéticos indesbravados e
tampouco adicionavam à carreira que Altman já
tinha previamente construído. Pior: em alguns
casos, a exagerada arrumação das coisas
em cena, das coincidências, da atuação
por demais armada dos protagonistas parecia organizar
e minar a energia da outrora vivacidade dos sons e espaços
de seus filmes. Trocando em miúdos, se O Jogador e Short Cuts deram novo fôlego a uma carreira
quase dada por morta, os filmes que vieram em seguida
a eles quase todos compõem-se de repetições
no vazio de alguns dos procedimentos-padrão de
Altman, com as dosagens costumeiras de intriga em painel,
cinismo ridicularizante, comentário social astuto,
charme protocolar, etc., mas tudo abafado por um sentimento
de fórmula fácil. E, o que é pior,
no caso de Altman: nenhum senso de aventura.
Pois, apesar de tantas defesas
apaixonadas de sua obra, a enorme maioria se prende
ao elogio da consistência teimosa da fórmula-painel
e ao trabalho negativo feito por Altman, qual seja,
a desmistificação dos gêneros e
ideais americanos operados sobretudo na primeira parte
da década de 70 por filmes que, bem ou mal-resolvidos,
já estão fincados como marcos dentro da
história do cinema americano daquele período.
No entanto, nos parece que nem o esqueleto de estrutura
multiplot (que na verdade não deve abarcar sequer
a metade de seus filmes) nem o trabalho do negativo
operado no seio da indústria cinematográfica
e da imagem oficial americana constituem o que há
de distintivo na arte desse cineasta. Claro, sim, são
valores a serem considerados, mas algo que toca muito
mais a esperteza do que o real talento expressivo do
cineasta (num mundo que confunde os dois, é preciso
sempre sublinhar que há diferença), e
acima de tudo não dá conta daquilo que
se vê na tela, em especial na meia dúzia
de anos que vai de MASH e Voar É Com
os Pássaros até Buffalo Bill and
the Indians. São filmes recheados por um
senso de quase insanidade, tamanha a profusão
de coisas acontecendo e o aparente descontrole do filme
em organizar tudo aquilo que apresenta. E isso vai de
par com um certo elogio do improvisado, do aleatório,
da vida desregrada, maníaca ou charmosa que vivem
seus personagens e que é refletida pela sensação
de soltura, de que o próprio ritmo do filme caminha
em corda bamba sem rede de proteção abaixo.
Montagem ríspida, quase grosseira, que se combina
intimamente com a errância de seus personagens
rumo à própria autodestruição,
que mal ou bem corresponde a seus objetivos.
E são esses perdedores
maravilhosos que constituem o pólo positivo que
a visão em negativo do gênero e da imagem
oficial complementa. Perdedores que estão sarapintados
ao longo de sua carreira, mas que um ator mais do que
todos representará, por sua repetida presença
e pela incrível sintonia artística com
seu diretor: Elliott Gould. Mas há outros: Tom
Waits, Bud Cort, Barbara Harris, Donald Sutherland...
Em comum, partilham todos eles uma certa atitude de
enorme descompromisso com os valores oficiais e mesmo
uma certa nobreza obstinada em serem errados, em traçarem
seu caminho incorporando os acasos. E silenciosamente
reverenciando o fato de que, no fim das contas e da
vida, tudo dá no mesmo, e viver o presente vale
mais que planejar o futuro. É recorrente vermos
Robert Altman apresentar o mundo como um enorme circo
em que cada um desempenha seu papel de forma um tanto
mesquinha e hipócrita; seus perdedores, no entanto,
representam o avesso desse mundo, os únicos que
vão jogar outro jogo, mesmo niilista, mesmo suicida,
mas o único possível de jogar com algum
frescor e força.
Dentro do período entre
1970 e 1976, em que celebra-se o momento em que Robert
Altman fez seu anti-western (Onde os Homens São
Homens), fez seu anti filme de guerra (MASH),
seu filme anti-mitológico (Buffalo Bill)
e devassou a indústria country (Nashville),
há dois filmes que querem ser acima de tudo estudos
sobre espaço, ou a transformação
de paisagens externas em paisagens internas através
de mergulhos em abismos cada vez mais profundos de seus
personagens. São O Perigoso Adeus (The
Last Goodbye) e Jogando Com a Sorte (California
Split). O primeiro ainda pode ser vendido como anti-alguma
coisa, no caso um anti-noir, mas é meio absurdo:
o noir já é primeiramente um olhar sobre
o submundo da cidade, sobre a madrugada, as espeluncas
e os deslocados. O que está em jogo em O Perigoso
Adeus, e que também está em jogo em
grande parte dos filmes dos anos 70, é colocar
em cheque a funcionalidade do roteiro e a agilidade
da trama, instalando seu espectador diante de uma diversidade
solta (sem a "costura" habitual) que produz
uma soberba naturalidade das situações
apresentadas.
E essa naturalidade exerce sua
presença tão mais quanto as próprias
situações que tomam a tela parecem ser
absolutamente irreais. Em O Perigoso Adeus, a
edição de som e a utilização
de música transformam a percepção
da realidade do personagem Marlowe dono total
do ponto-de-vista do filme como algo quase onírico
(mais pesadelo que sonho, no entanto), tamanha é
a sensorialidade indiscriminada dos índices sonoros
e a sempre urgente sensação de conspiração
absoluta que domina a trama. Em Jogando Com a Sorte,
o mergulho no vício, as peripécias e as
situações absurdas em especial
as da casa de Sue e Barbara fornecem esse mesmo
clima de um mundo irreal vivido no entanto com toda
naturalidade (o que faz pensar no que teria sido Medo
e Delírio caso tivesse sido dirigido por Altman
nos 70s e não por Gilliam, um mão pesada,
numa época em que o tema já tinha virado
inteiramente um fetiche pop). Aproveitando a dinâmica
de atuação de uma dupla de personagens,
George Segal e Elliott Gould, o filme consegue possivelmente
o melhor trabalho de Altman na interação
entre atores e na relação deles com os
espaços em que estão. A mistura de aventura
e vazio construída ao longo do filme e concretizada
no "Don't mean a fucking thing, does it?"
de Gould para Segal, depois de faturar uma nota preta,
é possivelmente o ápice da carreira de
Altman, só comparada ao momento em que Barbara
Harris, depois de passar uma série de situações
ridículas, finalmente consegue seu sonho de estrela,
no fim de Nashville. É o trunfo dos perdedores,
a vitória da obstinação mas ao
mesmo tempo o reconhecimento que essa vitória
é irrisória, a final admissão de
que no fundo do poço não tem muito mais
coisa que na superfície: em Short Cuts,
confrontados com o terremoto que vai matar a todos,
Tom Waits e Lily Tomlin bebem abraçados e riem
o fim que está prestes a chegar, sem desespero
ou medo, só entrega ao destino, seja ele qual
for. Em nenhum outro filme multiplot veremos personagens
que não se alarmam e parecem mesmo brincar com
o alarmismo criado pela intriga. Por motivos óbvios,
mas são esses exatos motivos que fazem de Altman
um bom cineasta e todos os outros o oposto disso.
Esse viço existe em todos
os grandes filmes de Altman. Ele é o contraponto
necessário às tiradas sarcásticas
sobre o circo humano fazendo suas palhaçadas
em respeito aos valores hipócritas da vida em
sociedade (sobre os quais, diga-se, Altman fartou-se
mais do que o necessário, com um quê de
mesquinho pairando de vez em quando). A disposição
para a vida de seus heróis maluquetes e perdedores
encontra ressonância na construção
rítmica de seus filmes através da soltura
da trama, da instalação na indeterminação
do que vai acontecer e na aceitação do
instante e do acaso como o palco daquilo que é
o essencial. Ao final de Jogando Com a Sorte,
um último gesto: mais um rodar de roleta. Como
a dizer que tudo permanece em movimento, que a diversidade
presente ao longo de todo filme permanece inalterada,
apenas uns saem e outros entram. Se Altman vai confrontar
os códigos e as imagens oficiais de um país,
não é simplesmente com a finalidade de
zombar delas, mas de abrir espaço para um outro
regime de tempo mais presente e menos futuro
e causalidade menos determinação
no nível da percepção que o espectador
tem da narrativa, construindo a imensa confusão
sensorial sonoro-espacial que conhecemos de seus melhores
filmes. No caso de um cineasta, ou seja, de alguém
que trabalha com expressões visuais e sonoras,
é um elogio melhor do que dizer que é
anti qualquer coisa1.
Ruy Gardnier
1. Esse texto
foi escrito de modo a não repetir os temas e
as questões já presentes no texto que
escrevi para o catálogo da retrospectiva "As
Muitas Vidas de Robert Altman", em especial o trabalho
de som, o "realismo" e as maneiras como Altman
influenciou o cinema americano.
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