POR UMA ARQUEOLOGIA DO 'OUTRO' CINEMA

"Por uma arqueologia do ‘outro’ cinema", de 1983, é o primeiro grande esforço para tentar circunscrever a geração do dito cinema marginal dentro de seu tempo e das tensões culturais em que vivia o cinema brasileiro naquele período. É um testemunho pessoal, de alguém que se envolveu de forma determinante no(s) grupo(s) do udigrudi, e ainda assim o texto mantém um inequívoco poder de análise e de apresentação do ambiente artístico. Tendo ficado praticamente subterrâneo, sem reedição desde sua edição original, em cinco partes, em 1983, essa versão de "Por uma arqueologia do ‘outro’ cinema" volta com algumas correções e acréscimos do próprio Geraldo Veloso. E, para deixar curto o elogio, é uma das mais instigantes leituras que se vai encontrar em toda a bibliografia do cinema brasileiro. (RG)

* * *

O lançamento de Tabu na cidade, nesta semana, bem como a sua premiação, no final de 1982, no festival de Brasília, leva-nos a refletir em torno do filme de Julio Bressane sobre uma série de questões encadeadas que poderão desaguar numa "arqueologia" de uma fase, um segmento fundamental do moderno cinema brasileiro. Julio, um dos avatares de uma produção tão intensa quanto desconhecida e que veio a ser chamada, independentemente da vontade de seus realizadores, "underground brasileiro", "cinema marginal" ou mesmo "udigrudi" é, no momento, objeto de reconhecimento público através de algo que pode ser considerado uma chancela da comunidade cinematográfica/cultural do nosso país: a premiação de Brasília (apesar de tudo o que se tem feito para esvaziar este festival, em termos de importância dentro do contexto do cinema brasileiro).

A mim, como testemunha e "cúmplice" ativo de todo o processo que veio a culminar nesta fase do cinema brasileiro desde o seu momento de gênese aos dias que correm, talvez seja possível estabelecer dados para um futuro trabalho – que necessariamente surgirá – de levantamento das causas determinantes (sociais, estéticas, históricas, entre outras) do que veio a ser este "desvio" do que o cinema brasileiro consagrou como seu momento de ouro: o aparecimento do "cinema novo".

1.
Julio Bressane, até onde acompanho a sua trajetória, começou seu trabalho no cinema exatamente junto comigo. Enquanto Walter Lima Jr., um dos maiores cinéfilos do "cinema novo", filmava com a colaboração de Julio (seu assistente de direção) a sua obra-prima, Menino de Engenho (que é, sem dúvida alguma, uma das mais exemplares adaptações cinematográficas de um grande romance feitas pelo cinema brasileiro, juntamente com Vidas Secas) eu, juntamente com Carlos Prates Correia, Flávio Werneck, Guará Rodrigues, Harley Carneiro e outros mineiros, iniciávamos nossos passos no profissionalismo, em O Padre e a Moça e A Hora e Vez de Augusto Matraga. Tínhamos, nós mineiros, anteriormente, tido a tentativa de Namorados, projeto de José Haroldo Pereira, que acabou por não se realizar. Mas isto é outro papo.

Conheci Julio na casa de Eduardo Escorel, onde hospedei-me logo que cheguei ao Rio, de mudança, há cerca de dezoito anos atrás. Não foi exatamente um encontro cordial. Remoendo complexos de rejeição ainda não devidamente ruminados pelo processo de transformação radical em minha vida, às voltas com um grupo de pessoas que se dedicava a uma exclusivíssima atividade no cinema brasileiro, que se reunia em torno de Joaquim Pedro de Andrade, não entendi a exuberância daquela figura que, "de cara", agrediu minhas preferências cinematográficas (Howard Hawks, Ford, Nick Ray, Godard, a nouvelle vague, etc.) qualificando-as com meia dúzia de lugares comuns ideológicos, em voga na época. Mas não foi uma situação que estigmatizasse uma relação. Pouco depois, Julio casava-se com Helena Ignez que durante as filmagens de O Padre e a Moça havia se tornado minha grande amiga, o que contribuiu para nos aproximar num relacionamento bastante fraternal apesar de algumas diferenças.

Julio partiu imediatamente para seu primeiro trabalho autoral realizando um curta-metragem sobre Lima Barreto (o escritor) que daria um direcionamento quase que automático ao seu primeiro longa-metragem, Cara a Cara, feito logo depois. Neste meio tempo fez, com Escorel, um média-metragem, em 16mm para ampliação para 35mm (a primeira experiência de ampliação realizada no país), sobre o show de Maria Bethania, na boate Cangaceiro (o primeiro espetáculo de Bethania, após sua exitosa substituição de Nara Leão, no show "Opinião"), Bethania Bem de Perto.

2.
Nesse meio tempo, chamava-nos a atenção, todos os sábados, a presença no Suplemento Literário do Estado de São Paulo – tradicional trincheira de um ensaísmo altamente influente no contexto do cinema brasileiro (Paulo Emilio Salles Gomes, Jean-Claude Bernardet, Maurice Capovilla, Gustavo Dahl, Rudá Poronominare de Andrade e outros) – de um articulista "terrorista", na melhor tradição macmahonista dos "Cahiers du Cinéma" (explico melhor: dentre as diversas linhas de criticismo que se alternavam nos Cahiers – de marxistas como Jean Domarchi e Louis Marcorelles, cristãos existencialistas como André Bazin ou Eric Rohmer, existencialistas sartreanos ou pontyanos como Alexandre Astruc ou Jacques Rivette – ficou célebre o grupo de cinéfilos freqüentadores assíduos do Studio MacMahon – até hoje esta lá na Avenue MacMahon, próximo à Place de l'Étoile ou Charles De Gaulle – que realizaram uma critica radicalmente impressionista, com colorações muitas vezes direitistas, ligados à programação daquela sala, calcada no cinema americano de Preminger, Losey, Walsh, Ray, Don Weis, Dwan, Wellman, Fuller, Sirk e tantos outros). O exemplo talvez mais elucidativo deste criticismo poderiam ser as opiniões críticas do cronista homossexual/marxista/surrealista, Jacques Joli (autor de preciosidades como: "a profundidade do olhar de Randolph Scott vale mais que todo o expressionismo político do cinema italiano", ou idiossincrasias do tipo a colocar nas alturas autores como Vittorio Cottafavi, diretor de "soap operas" históricas da Cinecittà do tipo "Maciste contra qualquer coisa"). Era Rogério Sganzerla. Pouco tempo depois, numa daquelas noites quando começava a "febre Paissandu", com sessões de sexta-feira, às dez da noite, programadas por Fabiano Canosa para a Cinemateca, em colaboração com o cinema dos irmãos Valancy, no Flamengo, que tanto marcou uma geração e que logo evoluíram para pré-estréias à meia-noite (é conhecido o papel que esta programação, com o apoio de imprensa dado por Maurício Gomes Leite, teve na divulgação e transformação de Godard num fenômeno de público, no Brasil muito antes de qualquer país do mundo), Geraldo Mayrink me apresenta a dois paulistas "malucos" que estavam filmando coisas geniais. Era uma sessão de Pierrot le fou e Rogério, acompanhado de Andrea Tonacci, tinha vindo de São Paulo exclusivamente para ver o filme. Rogério montava o filme de Tonacci (Olho por Olho) e Tonacci fotografava o filme de Rogério (Documentário). Rogério estudava administração de empresas e advocacia e Tonacci engenharia, no Mackenzie, de São Paulo. A partir de então passei a ir a São Paulo e hospedar-me com Rogério. Visitávamos a noite paulista amparados pelo apoio de muito scotch (barato, na época). As cantinas do Bexiga, cabarés da Boca do Lixo (muitas vezes tivemos a companhia de figuras como Joel Barcellos, Paulo Ramos e outros), o velho Giggetto, com sua cara art déco, assistiu a pequenos atos terroristas contra Walter Hugo Khouri – que sentava algumas mesas ao lado – perplexo com aqueles desconhecidos e pós-adolescentes malucos, ou mesmo com cara de "bicões". No "Pep’s" sentávamos à mesa, do lado de Antônio Houaiss e uma turma de boêmios diurnos da "desvairada paulicéia", capitaneados pelo "fabuloso Presidente", Francisco Luiz de Almeida Salles, na Galeria Metrópole.

Quando vinham ao Rio, Tonacci e Rogério ficavam (mal acomodados) no apartamento que dividia com Guaracy "Guará" Rodrigues, José Marinho e o Ferraz (um cadete da aeronáutica que nos acordava fazendo cooper, às seis da manhã, sobre nossos corpos sonolentos, num apartamento conjugado mínimo) no edifício Belair, na praia de Botafogo (tínhamos uma das mais gloriosas vistas do Rio à nossa frente e uma renitente fome em nossos estômagos).

3.
Em Minas, o CEMICE (Centro Mineiro de Cinema Experimental) florescia com os filmes de Carlos Alberto (O Milagre de Lurdes) – que projetei pela primeira vez, na cabine da Líder, para Glauber, Saraceni e mais meia dúzia de pessoas, sob espantosos elogios: "É o novo Buñuel! Queremos conhecer esse cara!") – de Schubert Magalhães (Alelluia) e o de Neville – nesta época nós o conhecíamos como Néville e não Neville – d'Almeida (O Bem-Aventurado) e que acabava de chegar de um longo período de vida em Nova York onde, entre outras coisas, tinha estudado cinema. Marcinho Borges fazia também o seu Joãozinho e Maria e Luiz Otávio (Tatá) Madureira Horta também rodava Ocorrência Policial. Em torno desses filmes, personagens como Túlio Marques Topes Filho, José Sette de Barros Filho, Sérgio Lara, Tiago Veloso, Paulo Vilara, Milton Gontijo, Alberto Graça, Leônidas (Léo Bocão) Lafetá, Mário (Bode) Veloso Costa, Ronaldo de Noronha, Marcos Rocha, começavam a dar andamento a um processo cujas ramificações podemos hoje verificar com mais tranqüilidade.

Os filmes de Neville, Marcinho e Tatá foram se juntar aos de Tonacci e Rogério no II Festival JB-Mesbla que já nos havia revelado, no ano anterior Antônio Calmon, Xavier de Oliveira, Carlos Frederico e José Alberto Lopes. Podemos considerar que aí se iniciaria o núcleo que iria formar o que se pode chamar de cinema marginal (izado – como o denominaria Tonacci, alguns anos depois). Sérgio Santeiro (ou Sérgio "Blue") seria "rifado" do festival, com seu Paixão, por ter profissionais no elenco (Ari Coslov, José Wilker). Teríamos também, nesse festival, Haroldo Marinho Barbosa, Gilberto Santeiro, Fausto Baloni, Sylvia Ferreira e Edson Santos, além do ganhador do prêmio máximo, Joel Macedo (O Quarto Movimento, revelando Márcia Rodrigues que se tornaria, em seguida, A Garota de Ipanema, de Leon Hirszman).

4.
Julio, Rogério, Neville, Tonacci, eu e alguns incorporados adiante (Elyseu Visconti Cavalleiro, Sylvio Lanna – participante do III Festival JB-Mesbla, com O Roteiro do Gravador –, Paulo Bastos Martins – inteiramente independente e ativíssimo animador do cineclubismo em Cataguases com seu inquieto Cine Clube Eisenstein ou o Tablado Atômico, que nos chocava com manifestos provavelmente inspirados pelo espírito de Rosário Fusco, além da sua colaboração com Paulo Cezar Saraceni e Fernando Campos – é o provável inspirador do personagem Paulo Martins, de Terra em Transe –, entre outros que seguiram outros rumos (Tatá e Marcinho Borges) ou que vieram a efetivamente cinematografizar mais tarde – ou com menos freqüência – (José Sette de Barros Filho, no primeiro caso ou Túlio Marques, no segundo) assim como figuras que se mantiveram numa linha de independência – mas bem próximos – como Carlos Frederico, Luis Rosemberg Filho, Sérgio Santeiro, Carlos Prates Correia, Sylvia Ferreira, Edson Santos, Serginho Bernardes.

5.
Julio Bressane partiu imediatamente para o longa-metragem com um roteiro autoral bastante calcado no universo limabarretiano e com filiações formais extremamente glauberianas: Cara a Cara. Depois, sem romper com o grupo de origem, co-produziu vários filmes da segunda "fornada" do "cinema novo" (Brasil Ano 2000, entre outros). Rogério por sua vez, tentava sistematicamente a aproximação com os "cardeais" do "cinema novo". Fazia um trabalho de defesa sistemática do "cinema novo" em uma geografia dominada por um grupo de críticos extremamente hostil a ele, "cinema novo", que era São Paulo. E quando vinha ao Rio, mostrava seu work in progress obsessivo, O Bandido da Luz Vermelha, a Cacá Diegues, a Glauber Rocha, a Gustavo Dahl, com quem, principalmente, mantinha contatos. Da minha parte, mantinha-me na tentativa de profissionalização trabalhando com David Neves, Gustavo Dahl, Iberê Cavalcanti, Joaquim Pedro, Paulo Gil Soares, João Carlos Horta ou montando os filmes mineiros de Neville, Flávio Werneck, Carlos Alberto e mesmo tentando formar a Tekla Filmes, juntamente com Mauricio Gomes Leite, Carlos Heitor Cony e Wilson Cunha (produtora que realizou O Velho e o Novo, sobre Otto Maria Carpeaux e o momento político do país, e A Vida Provisória, de Maurício, ambos, e Tostão, a Fera de Ouro, de Ricardo Gomes Leite e Paulo Laender, além de alguns curtas e associações com outros longas da época) e formando parcerias quiméricas para filmes em episódios, com Rogério, Neville, Tonacci, Schubert, Carlos Alberto, Moisés Kendler (chegamos – eu, Tonacci e Joel Macedo – a formar a produtora Tempo Produções Cinematográficas, que começou a rodar o longa, em episódios, Os Últimos Heróis, quando Joel rodou o seu filme com Neville no papel principal ao lado da então desconhecida Adriana Prieto, que nunca chegou a ser montado; Tonacci filmou o seu Blá, Blá, Blá, que tantos prêmios ganhou, além de causar tanto impacto pela sua forca política; o argumento que se tornaria o meu filme, veio a se transformar, mais tarde, no meu primeiro longa-metragem, Perdidos e Malditos.

Neville, depois de nova temporada em Nova York, retorna com negativo, material de iluminação e uma parceria com Jorge Mautner, um ano e meio depois. Vem morar comigo e Carlos Freire (colunista literário da Tribuna de Imprensa), no Leblon. Com ele, vêm Guará e Mautner. Daí surge Jardim de Guerra e a atuação política dos anos 67/68. Sucedem-se as "dançadas", os gestos ousados, os grandes amores, momentos de criatividade em ebulição. Posteriormente, os primeiros desencontros, novas parcerias, novos rumos.

Rogério traz para o Rio o seu primeiro longa, O Bandido da Luz Vermelha, recém terminado. O filme cai com enorme impacto sobre a comunidade cinematográfica. A inesquecível sessão, na cabine da Líder (o laboratório cinematográfico do Rio, na rua Álvaro Ramos, em Botafogo), com todo o "cinema novo" presente, vai desencadear uma série de reservas, mais ou menos veladas – a meu ver causadas pelos ciúmes dos resultados fantasticamente criativos alcançados por Rogério, em seu filme. Ferido, Rogério se recolhe e procura continuar o seu trabalho em esquemas bastante pessoais. Em torno dele vai começar a surgir o movimento da "boca do lixo", paulista. Antônio Lima, Carlos Reichenbach, João Callegaro, João Silvério Trevisan, Emilio Fontana, João Batista de Andrade (com sua a produção mais caracterizadamente próxima, Gamal, o Delírio do Sexo) e Carlos Alberto Ebert, vão começar a arejar o tão esclerosado cinema paulista, num trabalho que vinha sendo já desenvolvido por figuras como Roberto Santos, Ozualdo Candeias, Luis Sérgio Person, Maurice Capovilla, Thomaz Farkas, Sérgio Muniz e que tinha em homens como José Mojica Marins, um modelo de postura artística "kitsch", essencialmente ligada a uma visão brasileira de fazer cinema.

Neville d'Almeida, ainda não muito bem recebido por diversas áreas do "cinema novo", terminava saudavelmente Jardim de Guerra. Julio ainda esperaria algum tempo para vir a se juntar ao grupo e dar a guinada criativa mais significativa em seu trabalho. Com a sua aproximação de Guaracy (Guará) Rodrigues e Neville (aproximadamente à época da realização do II Festival Internacional do Filme, do Rio ou pouco antes), vai começar a surgir, sob sua conhecida capacidade de produção, o momento de definição do que viria a se tornar o cinema mais radicalmente autoral e poético que se fez em seguida.

Solitário, Rogério, em Belo Horizonte e Brasília (os dois festivais de cinema brasileiro de 1968), vai começar sua linha de ataques e de rompimento explícito com o "cinema novo". Dá, junto com Helena Ignez, sua mais famosa e violenta entrevista sobre o que viria a ser seu discurso recorrente desde então, ao "Pasquim", onde torna pública uma nova postura de cisão com o cinema-origem. O "cinema novo" procura seus primeiros passos industrializantes e se fecha, cada vez mais, em jogadas concentradoras, na tentativa de alcançar situações de poder mais sólidas. O "cinema novo" arma um movimento de boicote ao II FIF-Rio, organizado pela administração do Instituto Nacional de Cinema – naquele momento, abertamente em guerra contra o "cinema novo". Rogério rompe o boicote e coloca O Bandido na representação brasileira.

A produção de Rogério, A Mulher de Todos, vai ao mercado com grande resultado de bilheteria. Julio parte então para uma iniciativa inédita no Brasil: realiza dois filmes ao mesmo tempo, rompendo radicalmente com uma linha ideologizante (mas nunca a-ideológica) que havia prendido e tolhido o seu processo criativo, mais puro e espontâneo. Realiza O Anjo Nasceu e Matou a Família e Foi ao Cinema (que montei para ele). Neville, pouco depois, radicalizando o discurso poético, vai fazer um dos mais violentos "documentários" do período de transição anômica das cabeças das pessoas, pós-AI-5: Piranhas do Asfalto.

7.
Julio e Rogério fundam então a Belair Produções Cinematográficas, que vai nos dar seis longas-metragens (Barão Olavo, o Horrível, Cuidado Madame, A Família do Barulho, de Julio, e Betty Bomba, a Exibicionista, Copacabana, mon amour, Sem Essa, Aranha, de Rogério). Em seguida exilam-se "voluntariamente" por alguns anos, na Europa.

Tonacci e Sylvio Lanna, unidos na Total Filmes, vão realizar em Minas, com recursos do Banco do Estado de São Paulo (Comissão de Cinema de São Paulo), Bang Bang (de Tonacci) e Sagrada Família (que chamou-se, antes, Decúbito Dorsal e Ilegítima Defesa), de Sylvio. Elyseu Visconti vai rodar os seus Monstros de Babaloo (1970) e O Lobisomem (1971). Eu vou filmar, com produção inteiramente independente, Perdidos e Malditos, em 1970. Neville vai rodar seu Mangue Bangue. Outros filmes da época, que vão completar o painel, são: O Anunciador, o Homem das Tormentas, de Paulo Bastos Martins (rodado inteiramente em Cataguases, com pessoal local), Vida de Artista, de Haroldo Marinho Barbosa, A Possuída dos Mil Demônios, de Carlos Frederico, Meteorango Kid, Herói Intergalático, de André Luis de Oliveira (realizado um pouco antes, na Bahia e que se tornou um dos filmes "manifesto" do movimento, tendo sido premiado no Festival de Brasília), Jardim de Espumas, de Luiz Rosemberg Filho. Outros autores surgiram na época na Bahia, São Paulo, Minas e Rio (Álvaro Guimarães, Emilio Fontana, Trevisan, Ebert e Carlos Prates Correia faz seu primeiro longa, O Crioulo Doido).

Glauber Rocha, o maior representante do "cinema novo" e do cinema moderno brasileiro, seu grande exegeta e "agit-prop", depois de realizar um "clássico" do momento cinemanovista, O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro, não fica indiferente a esta ebulição. Figura sensibilíssima, antenas ligadas, sem romper politicamente com seu grupo de atuação basicamente formado em torno de Nelson Pereira dos Santos (o "pai" de todos nós), Leon Hirszman (a cabeça racional, cartesiana/política/filosófica), Joaquim Pedro (o refinamento cultural/social moldado por um aprendizado técnico europeu), Walter Lima Jr. (o mais "charmant" contador de casos e maior formação cinefilica de todos), Cacá Diegues (o "delfim", poeta e político de O Metropolitano e Movimento), Saraceni (o rosselliniano. recém-saído do Centro Sperimentale di Cinematografia, contemporâneo da turma de Marco Bellocchio, Gustavo Dahl, Geraldo Magalhães, Bernardo Bertolucci e Gianni Amico – os dois últimos não fizeram o Centro mas eram da "turma") e Gustavo (cabeça lúcida, cinefílica, de extremo bom gosto e grande nível de informação), além de Ruy Guerra (com quem sempre teve convivência polêmica). E mais figuras como David Neves, Luiz Fernando Goulart (a turma da rua da Matriz, de Botafogo), Fernando Duarte, Mário Carneiro, Sérgio Sanz, Eduardo Escorel, Arnaldo Jabor, Luis Carlos Saldanha, Miguel Borges (autor do talvez mais maldito e extraordinário filme de então, Canalha em Crise, e da idéia do cinema "bola-bola"), Marcos Farias, Fernando Campos, Paulo Gil Soares, António Carlos Fontoura, Miguel Torres (morto muito cedo, em desastre no nordeste, fazendo locações para filmes – do Coutinho ou do Ruy Guerra?).

Glauber faz seu experimento "udigrudi", até hoje inédito, Câncer. Anos mais tarde, antes de morrer, reivindica o direito de ter sido sua a primeira manifestação do cinema "underground" brasileiro – como se não fosse suficiente o fato de ter forçado as direções do cinema brasileiro para rumos absolutamente novos, com Deus e o Diabo na Terra do Sol.

8.
Como pano de fundo, à mesma época, os movimentos políticos do país vão tornar irrespirável o ambiente para a criação artística mais livre e poética. Os que ficam no país vão buscar a metáfora, a parábola, a alegoria mais desvairada, o recurso a obras do passado, para resistir ao recrudescimento do processo totalitário que toma conta do país, com reflexos nas áreas culturais utilizando instrumentos e organismos estatais criados com o objetivo de controlar o setor (o já existente INC – Instituto Nacional de Cinema – criado logo após o golpe de 64, e a Embrafilme, criada em 1969, depois do AI-5). Ao "cinema novo" não resta senão o caminho da industrialização mais explícita ou o exílio (Glauber parte para uma longa temporada no exterior). Ao cinema "marginal", discriminado por seus próprios "pais", não resta outro caminho. Julio e Rogério partem primeiro, com os originais das suas duas últimas produções, pela Belair, para serem finalizadas na Europa (Cuidado Madame e Sem Essa, Aranha). Seguem- lhe os passos, Guará, Gilberto Macedo e, logo depois, Neville, eu e tantos outros. Caetano e Gil haviam mostrado o caminho. A explosão do movimento "pop" e contracultural no mundo, maio de 68, Week end, de Godard, Sympathy for the Devil, com os Rolling Stones, a separação dos Beatles, a radicalização política de Lennon e Yoko, as experiências lisérgicas de Leary e Alpert, a ação dos black panthers e dos weathermen, além do movimento estudantil brasileiro, que desaguaria nas guerrilhas rural e urbana, o Baader-Meinhoff, fazem parte do pano de fundo dessa ação. No Brasil, o regime autoritário vai evoluindo em paralisia repressiva. De 1967, com o advento do novo fenômeno glauberiano, Terra em Transe, vão surgir novas tentativas de reflexão sobre a nacionalidade brasileira, dentro da circunstância histórica universalizante (nossos destinos políticos, descobrimos perplexos, estão agora muito diretamente ligados às páginas internacionais dos jornais, à guerra do Vietnã, que vai nos dar novas perspectivas de resistência ao tacão militarista que invade o mundo).

Caetano e Gil desabrocham sua criatividade com "Alegria, Alegria" e "Domingo no Parque". O universo fragmentário da "aldeia global" explode em nossa música através de arranjos "kitsch" e sofisticados (paradoxo?), de Rogério Duprat. Os concretistas/semiólogos Haroldo/Augusto de Campos e Décio Pignatari vão se tornar os "gurus" dos novos tempos. Pound (Ezra) e "Coração de Luto" se misturam na revalorização da sopa tropicalista. O "kitsch" da história em quadrinhos, avalizado por ensaios de Umberto Eco, vai estourar em Alphaville, de Godard, ou Made in USA e Deux ou trois chores que je sais d'elle. A teoria da informação (McLuhan, Moles, Eco acompanhando as diretrizes dos neo-hegelianos pessimistas, de Frankfurt – Benjamin, Adorno, Marcuse, Horkheimer) vai ser o roteiro obrigatório para nossas cabeças. José Celso Martinez Correa, sob o impacto de Terra em Transe, vai estabelecer a ponte necessária com a montagem de O Rei da Vela: cultura brasileira moderna e o "cinema novo", com o modernismo dos anos vinte.

O "cinema novo" acorda sob este impacto. A cisão "cinema novo" x "udigrudi" se faz no momento que se descobre o caráter da cisão entre Mário e Oswald de Andrade. Mário de Andrade, um esforçado e brilhante catalogador, arquivista, etnógrafo cartesiano, não resiste à fúria criativa e existencial do rico, perdulário e aristocrata brilhante que vivia em contato direto com as modas intelectuais européias transmitidas pela convivência direta com Bréton, Artaud, Eluard. Picabia, Cendrars, de Oswald. O "cinema novo", projeto cultural cuidadosamente elaborado dentro de um esquadro poético novo, mas ainda dramaturgicamente "quase"-acadêmico como postura individual do ser criador, vai ceder lugar à sanha do "aventureiro" cultural, do homem que vai procurar a aventura física, filha dos últimos vagabundos cósmicos da guerra espanhola, da resistência (Malraux, Sartre, Kerouac, Henry Miller, os dadaístas – via Beatles), buscando o marginalismo social (mais por falta de escolha que propriamente por opção) não como modelo a ser observado com distanciamento científico (como há vários personagens no meio disso tudo que o fizeram), mas certamente como radical opção de vida. E a vagabundagem cósmica/existencial passa a ser a opção (ou compulsão) para todos nós. O cinema é apenas um braço poético necessário para nosso testemunho.

9.
Londres torna-se o ponto de atração maior. Os festivais de Wight e Glastonbury vão dar o "toque" do inicio de uma nova era (Lennon já teria anunciado o fim do sonho) de sobrevivência, já que os maiores "santos" deste tempo tinham "escorregado" deste contexto (Brian Jones, Jimi Hendrix, Jim Morrison, Janis Joplin e outras "dançadas"), um a um.

No cinema, Carmelo Bene vai causar o impacto, em Cannes 1969, com seu Capricci, que sucede a sua obra-prima, Nostra signora dei turchi. A gratuidade e vacuidade do discurso político/dramático vai a seu ponto supremo. Philippe Garrel espanta a caretice pós-"nouvelle vague" do cinema francês com ensaios lisérgicos de impacto. Julio Bressane, que assiste a tudo isto em seu período de auge de emprenhamento informacional, volta ao Brasil para fazer O Anjo Nasceu e Matou a Família e Foi ao Cinema.

Nélson Rodrigues, o maior expoente do impressionismo opinativo, nosso maior dramaturgo, aquele que vai coloquializar a palavra, a língua brasileira, da Tijuca e do Engenho de Dentro, com suas tragédias sofoclianas, vai sempre criar uma fascinação mágica sobre o cinema brasileiro. Nelson Pereira dos Santos faz uma das melhores adaptações de seu xará (Boca de Ouro), J.B. Tanko e Billy Davis o acompanham (Engraçadinha Depois dos Trinta e Bonitinha Mas Ordinária, respectivamente), Leon Hirszman faz um de seus melhores filmes, trazendo para o cinema A Falecida. Antes de se tornar a coqueluche ou o bálsamo para os fracassos comerciais anteriores de Jabor, seu Toda Nudez Será Castigada e O Casamento e, com isto, desencadear a maior onda de adaptações de sua obra antes de sua morte (Neville torna-o um fenômeno de bilheterias com A Dama do Lotação, depois repete a dose, com resultados mais seguros, em Os Sete Gatinhos, Haroldo Marinho faz Engraçadinha, Braz Chediak roda Álbum de Família e Pedro Carlos Rovai refilma Bonitinha), Nelson vai ser a influência marcante na obra de vários homens do "udigrudi". A agilidade dialoguística vai ser tentada em momentos de Perdidos e Malditos. Certas marcações de interpretação obedecerão explicitamente aos estereótipos rodrigueanos de contorno de personagens no trabalho com os atores Paulo Villaça e Maria Esmeralda. Julio Bressane mistura o universo suburbano do jornalismo (de O Dia, A Luta Democrática e A Notícia) com as obsessões rodrigueanas, em uma brilhantíssima colagem, com entrelaçamentos poéticos habilmente armados (Matou a família e Foi ao Cinema), referenciada igualmente em Pugni in tasca, de Marco Bellocchio (amigo que Julio cultivou durante sua presença no Rio no II FIF-Rio, pouco antes da filmagem de Matou a Família...).

Rogério não fica imune a esta influência em O Bandido... Nelson é leitura comum a todos nós, nessa ocasião. Não há quem não sonhe em levar para as telas, Perdoa-me por me Traíres ou que saiba, de cor, passagens inteiras de O Casamento.

10.
No exílio, Julio arma imediatamente a produção de Memórias de um Estrangulador de Louras, consagrando Guará (Guaracy Rodrigues) como estrela maior do "udigrudi", um "Jack, the ripper" do terceiro mundo, mutante, ameaçando a solidez da cultura européia.

Enquanto não partimos também, no Rio, acompanhamos atentos, esses movimentos. Procuramos agir da forma mais subterrânea conforme os tempos nos exigem. O contexto político do país, bem como o do cinema brasileiro, nos obriga a isto. Depois de realizar Perdidos e Malditos vou colaborar com Elyseu Visconti na montagem de Os Monstros de Babaloo e com Neville em Piranhas do Asfalto. Sylvio Lanna faz, em seu trabalho Sagrada Família, a transição característica dos tempos que passam.

Composto por um roteiro razoavelmente "costurado" dramaticamente, com imagens "limpas", enquadramentos estudados e rigorosos, embora a trama já obedeça a um desenvolvimento extra-real, beirando o grotesco, filtrado pelo uso obsessivo da grande angular 9.8mm (a primeira lente que "pintou" no Brasil, trazida por Tonacci, fazia pouco tempo), a tentativa de "barbarizar" o comportamento de uma civilizada família mineira num, segundo Sylvio, roteiro de "entradas de bandeiras" ao inverso, através de uma fábula/anedota/charada que vai ganhar, por sua vez, um tratamento equivalente à sua proposta de barbarização temática em termos lingüístico/cinematográficos, em jorro de criatividade irmã de um Finnegans Wake, de Joyce. Sylvio, por sua vez, "barbariza-se" em seu cotidiano pessoal e dá um rumo inteiramente aleatório (conscientemente aleatório) à sonorização do filme. O mais marcante do cinema "pós Belair", de Piranhas no Asfalto e Mangue Bangue, além de Perdidos e Malditos, é a progressiva "invasão" que o cinema passa a realizar em nossas vidas, antecipando situações latentemente desejáveis, radicalizando o lúdico ato de filmar (viver) ajudando-nos a desvelar corajosamente o nosso passado, as nossas obsessões, numa confusão vida-obra perigosa, quando não potencialmente fatal. Sagrada Família foi a continuação disso.

O que havia "começado" em Piranhas..., esta documentação quase etnográfica (não o seria, exatamente no sentido científico, já que o sujeito e objeto eram uma unidade só), iria continuar em Perdidos..., radicalizar-se em A Família do Barulho, em Sem Essa, Aranha, Barão Olavo, o Horrível e, finalmente, em Sagrada Família e chegaria ao seu delírio em Mangue Bangue. Andrea Tonacci tinha nos dado a noção do nonsense "pop" com o seu Bangue Bangue – fábula absurda armada em torno de uma noção imagística de extremo bom gosto, reunindo obsessões num work-in-progress coletivo habilmente conduzido (a cigana, o bode expiatório simplório, o grupo grotesco de bandidos, o mágico, o "kitsch" representado pela jukebox e outros elementos, o cinema de Hatari, a pop art de Rosenquist e Rauschenberg, o Buick-42, o visual mais delirante, marcado por uma magistral fotografia, em preto e branco/Ferrania, do Tiago Veloso, numa das mais belas visões de Belo Horizonte, desde Sangue Mineiro, de Mauro).

Sylvio Lanna, na virada da década, documenta a tentativa de saídas políticas para um grupo de pessoas que acompanharam de perto o marginalismo social/político. Neville continua esta trajetória em Mangue Bangue (realizado com Paulo Villaça, Marcelo França, Maria Gladys, Hélio Oiticica, "Jimi Hendrix", em pleno Mangue carioca, com todos os seus personagens, com a presença de elementos de "selvageria" absoluta, documentando a trajetória de um corretor de bolsa de valores, em pleno "boom" dos anos 70, que transforma sua dimensão de vida em perspectivas de um hedonismo violentamente político). A constante das obras deste período é a documentação do dropping-out de uma geração que se recusa a participar de um esforço de desenvolvimentismo estéril e mediocrizante, do "Brasil Grande". O apelo à pobreza hedônica, à economia alternativa, à construção de comunidades de proteção contra o mundo repressivo e diabolicamente massacrante, a busca da liberdade do vácuo a-ideológico (e extremamente ideologizado por isto mesmo), é uma constante nesses filmes.

Sagrada Família e Mangue Bangue representam os momentos de formação de comunidades de vida e criação. Na rua João Afonso, no Humaitá, Rio, vão se formar dois núcleos de trabalho criativo nesse momento: o Bandeira Dois, comunidade de vivência/criação, que reúne em torno de Luiz Carlos Maciel, figuras como Maria Gladys, Érico de Freitas, Carlos Guimas e, posteriormente, Sérgio Bandeyra, além de tantos outros que vão ser documentados em Mangue Bangue. Mais acima, na mesma rua, minha casa vai se abrir para Sylvio Lanna e José Sette de Barros Filho, além de dezenas de outras figuras que vão ser documentadas pelo gravador "louco" de Sylvio e ser remixados numa das mais barrocas trilhas documentais do cinema brasileiro, em Sagrada Familia. José Sette começa a rodar, com a minha câmara Eclair NPR, 16mm, recém-comprada de Luis Carlos Saldanha (a mesma Eclair que, quando chegou ao Brasil, redimensionou a perspectiva do cinema documental, pois nos trazia a possibilidade do som direto mais ágil), Misterius, que começa aí e vai continuar sua trajetória pelas estradas da França em direção a Paris, Marselha, Espanha, Portugal, Marrakech. Descobre-se o super-8 e o distanciamento da perspectiva industrial vai se tornando cada dia mais quilométrico. O cinema como busca da imediatização da criatividade, como extensão poética do cotidiano. A busca hedonista e a anulação dos destinos individuais vão dirigindo as preocupações deste grupo. O cinema torna-se imediato e descartável. Pouco ou nada sobrou destes produtos. Misterius, de José Sette, que permanece inacabado, daria mais proximamente o clima criativo desta época. A guerrilha urbana é selvagemente perseguida e, freqüentemente, cruza com nossos caminhos em um processo de proteção mútua.

11.
Durante o ano de 1971 o êxodo é quase completo. Logo que chegam a Londres, Julio e Neville começam a filmar dois longas, Crazy Love e Night Cats, simultaneamente. A linha documental prossegue em Neville. Julio radicaliza sua reflexão ensandecida sobre o cinema de retina. A auto-dilaceração por um grande amor desesperado é acompanhada por uma auto-cirurgia em busca da abertura do campo visual. A aventura da morte e a postura de cobrança histórica da rapina colonial, de séculos e séculos imposta pelos europeus aos países colonizados, paira sobre estes filmes, sendo poeticamente espelhada por eles. Ao montar o seu filme, Julio me pede para preservar a "integridade do fotograma". Os "foguetes" (ou "velos") no inicio dos planos são preservados. A sacralização do celulóide acompanha o processo de cinematografização no cinema de Julio.

Rogério e Helena Ignez se afastam, em um silêncio discreto. Viajam e filmam materiais que vão ser aproveitados posteriormente em filmes dele. O misticismo modoso invade a cabeça de muitos de nós. A muitos de nós serve como salvação para o desespero anômico de uma geração. Salva-nos mesmo da autodestruição (para outros serve de pretexto para o mergulho mortal). A vida torna-se uma arte de viver. O cinema se banaliza, como processo procurado compulsivamente. Passa a ser ponto de comunicação. Nossas viagens passam a ser reportadas e intercambiadas. É comum a reunião em apartamentos para a exibição, para dezenas de pessoas, de trabalhos comuns. Faço então, Wild Idle, em minhas andanças entre Amsterdã, Londres, Paris, Roma. Julio, depois de uma temporada em Nova York, dá-nos Lágrima Pantera, a Míssil. Monto estes filmes assim como terminamos, eu, Liège Monteiro e Neville, Mangue Bangue. Sylvio Lanna logo chega e vai para a África onde roda o seu Forofina (África em linguagem tribal, de um daqueles países que visita). Maria Gladys roda o seu primeiro longa-metragem, The First Odalisca, ainda inacabado.

12.
Pouco a pouco começa a ocorrer a volta ao Brasil. José Sette, Neville, Julio, eu, Elyseu, Tonacci, Maria Gladys retornamos. Os tempos são outros e nos chocam. Difícil adaptação. Julio é o mais regular continuador de um trabalho. Pouco depois de chegar, roda O Rei do Baralho, O Monstro Caraíba, Agonia e O Gigante da América (os dois últimos com "grana" da Embrafilme) e adiante, faz ainda Cinema Inocente e agora, também apoiado pela Embrafilme, Tabu.

Rogério faz Abismu e tenta realizar uma visão ficcionalizada da vida de Noel Rosa. Realiza também um trabalho arqueológico de acompanhar os passos de Orson Welles quando aqui esteve, no início dos anos 40, para rodar It's All True, rastreando os arquivos do DIP (Departamento de Imprensa e Propaganda, do Getúlio Vargas), realizando descobertas extraordinárias, que vai dar num belíssimo curta, Brasil, misturando o encontro musical de Gil, Caetano, João Gilberto com este material, numa poética e singela visão do Brasil.

José Sette se torna o mais produtivo de todos nós. Ao retornar, faz um ensaio em longa-metragem, Inside, violento e contundente. Depois, em anos de trabalho, realiza outro longa, Bandalheira Infernal, além de trabalhos de documentação diversos (uma belíssima viagem numa Bahia geralmente distante dos olhos turistas, em Cidade da Bahia, realizado com Humberto Ribas; filmes sobre a disputa da terras no Pará, ou levantamento de uma exclusivíssima manifestação cultural/religiosa africana, revelada para ele e seus parceiros, Rolando Monteiro e Carlos Figueiredo da Silva, pelo antropólogo Nunes Pereira, Casa das Minas – 1ͺ e 2ͺ partes – filmes sobre arte e ecologia, alem de um envolvente e hábil documento sobre a pré-história mineira, com uma reconstituição poética da trajetória da Peter Wilhelm Lund, Interior das Minas e, finalmente, seu trabalho maduro de reconhecimento mais genial, uma visão sobre o expressionismo através do mergulho na obra de Oswaldo Goeldi e, no momento, está realizando um ambicioso trabalho de acompanhamento do processo eleitoral, do ano de 1982, em Minas, através de sua cobertura cinematográfica, em videotape e outros meios).

De minha parte, radicalizo minha visão de "cinema-menor" com um "filme de ateliê",

mudo (ou em silêncio), numa tentativa de sobrevivência criativa em reação a um momento de solidão quase absoluta. por inadaptação total aos apelos industrializantes por que passava o processo cinematográfico do país e que me excluía das tentativas de realização de um projeto através da Embrafilme, Nacional ou Estrangeiro?. Resulta disso, Homo Sapiens (ou Bando de Anjos): um mergulho umbilical embalado pelas certezas de busca da banalização do ato de filmar que poderia terminar com a perspectiva alienante, olimpiana, da estrutura de poder ao qual o cinema confirmava através da sua história. A experiência buscava uma referência em autores como Andy Warhol, da última produção de Godard ("Numéro deux"), ou mesmo Stan Brakhage ou outros experimentalistas americanos que traziam para o cinema o sopro do hiper-realismo, via quadrinhos de Robert Crumb (e seus personagens taoístas como Mister Natural ou Schumann, the human), ou convencido das propostas radicais de Cesare Zavattini, ao sonhar acompanhar, com a câmara, noventa minutos da vida de um personagem com quem literalmente não aconteceria nada (e afinal não é isto que Warhol perseguia com Sleep ou Empire State ou mesmo com Chelsea Girls?). Faço, em 1978, um pequeno ensaio para a Funarte tentando traduzir o discurso poético ao qual me propunha, propondo uma articulada declaração de princípios que acabava por se confundir com minha postura obsessiva e conscientemente perseguida: Toda a Memória das Minas.

Andrea Tonacci trabalha mais explicitamente numa linha antropológica, tornando-se veículo para o discurso de minorias étnicas, em processo de assédio pela "civilização", com um equipamento de videotape entregue a estes grupos culturais para que estabeleçam uma relação com sua a identidade cultural. Elyseu Visconti, por sua vez, parte para trabalho semelhante, documentando ocorrências culturais em extinção como congadas, reizadas e outras, em incursões sistemáticas pelo interior do Brasil. Neville, como todos sabemos, vai partir para a opção industrial, sem fugir de uma fidelidade ao seu projeto artístico, acalentado obstinadamente, adaptando Nélson Rodrigues e, agora, retomando uma linha mais autoral, com o seu mais recente filme, Rio Babilônia.

13.
Não há a mesma coesão de grupo (será que algum dia houve?). Não é mais possível estabelecer paralelos íntimos entre as obras produzidas, hoje, por todos nós. A riqueza e pluralidade das descobertas individuais levaram-nos por caminhos diversos, mas não distanciados. Permanece a mesma insistência no cinema autoral, poético, confessional, a mesma vontade e prática de jogar-se no vazio aliadas a uma infantilidade e imaturidade perseguidas conscientemente (não seria isto um paradoxo?). A mesma perspectiva em relação ao cinema anti-industrial, anti-retórico, anti-poder, pessoal, secreto, atípico e, por tudo isso, marginalizado. Não há a mesma ferocidade. Há uma certa paz conquistada em razão de um refletir constante. Uma preocupação com a reflexão, com a pesquisa, com o estudo, com a leitura. A mesma inquietação curiosa norteia a todos nós, como a outras áreas do cinema brasileiro. O movimento curta-metragista, dos anos 76/78, não nos deixa mentir. Muitos elementos do "cinema novo" recusaram-se a abraçar o brilhareco imposto pelo olimpianismo alienado teatralizante e defasado, neo-hollywoodiano, neo-vera-cruziano, das nossas emissoras de televisão.

Carlos Alberto Prates Correia é hoje o melhor exemplo do cinema 1ivre e poético que consegue sobreviver, a duras penas, dentro do sistema. Alberto Graça, com o seu Memórias do Medo, Oswaldo Caldeira, com Ajuricaba, Sérgio Santeiro com sua atuação política (que tem lhe valido uma imobilidade criativa, certamente indesejável) também nos dá demonstrações de radical coerência. O cinema paulista da Gira Filmes e seus desdobramentos (Tatu, CDI) nos trazem uma perspectiva nova e extremamente saudável. As mulheres, cada vez mais ativas na realização, dão-nos os novos contornos do cinema que surge.

14.
O modernismo de 22, que certamente foi o que de mais saudável aconteceu à cultura brasileira contemporânea é, obviamente, o ponto de referência, de espelho, à atitude romântico/barroca que o cinema brasileiro e seus autores adotam a partir do advento do cinema chamado marginal.

O "cinema novo" surgiu sob influência maior da abertura do discurso ideológico populista, provocado pelo liberalismo juscelinista, herdeiro do getulismo e suas propostas nacional-desenvolvimentistas (na seu mandato "pós-estado novo"), comado ao exemplo do cinema italiano do pós-guerra ou do cinema ideológico francês (de Clair, Dellanoy, Autant-Lara e outros), passando pela extensão mais longínqua, que foi a nouvelle vague. O crescimento do movimento estudantil, a criação, no início dos anos 60, do CPC (Centro Popular de Cultura, da União Nacional dos Estudantes) vieram sedimentar as propostas de Cavalcanti (pós-Verá Cruz – o Cavalcanti de O Canto do Mar, ou Simão, o Caolho), Alex Viany, Nelson Pereira dos Santos (o homem de ligação entre essas gerações), com o aparecimento de novas propostas dramatúrgicas já tentadas pelo Teatro de Arena e por aqueles autores. Uma nova geração surge com Cacá Diegues, Miguel Borges, Marcos Farias, Leon Hirszman e, independentemente, Joaquim Pedro, Ruy Guerra, Miguel Torres e o grupo baiano (Glauber Rocha, Luis Paulino dos Santos, Roberto Pires, Paulo Gil Soares, Rex Schindler, Olney São Paulo, Geraldo Sarno, Orlando Senna e outros). O modernismo ainda não era uma presença referencial forte neste momento. Isto só viria a ocorrer depois. Glauber, ao se embrenhar no Cocorobó, de braços com Paulo Gil (sua dimensão poético/telúrica mais forte) e Walter Lima Jr. (seu braço cinematográfico/cultural), não sabia que as limitações de produção conectadas ao seu mágico visionarismo messiânico, casado à sua exuberante formação (Buñuel, Eisenstein e Shakespeare), de filho de Vitória da Conquista, iriam moldar um produto criado para ser ''apenas" uma leitura ideológica, de cordel, do gênero industrial dominante no cinema brasileiro então – o filme de cangaço – e que redundou, exatamente por estas limitações (já imaginaram se Glauber tivesse as condições hollywoodianas para realizar o Reds do sertão?), na maior obra-prima do cinema dos anos 60 e uma das maiores da sua história. Sua identificação com o modernismo era "automática": nenhum compromisso com as métrica e poética parnasianas, procura de uma brasilidade, visão de um realismo crítico, ligação com a poética do inconsciente.

15.
A progressiva conscientização das afinidades entre o modernismo e o "cinema novo" foi se dando posteriormente. Terra em Transe vai "puxar" para mais perto a obsessão com a reflexão sobre a "nacionalidade/identidade" sul-americana, brasileira. José Celso Martinez Correa, como já dissemos, explicita esta relação. Redescobre Oswald e faz a ligação. O modernismo formacional evidentemente pairava sobre toda a modernidade que o "cinema novo" trazia para nós. A convivência pessoal de um Paulo Emílio Salles Gomes com Oswald, de um Joaquim Pedro de Andrade com Mário de Andrade (Mário, grande amigo de Rodrigo Melo Franco, pai de Joaquim, certamente povoou o cotidiano de Joaquim em seu processo formacional) ou com Manuel Bandeira (evidente, pois chegou a filmá-lo em O Poeta do Castelo), são apenas detalhes em todo esse panorama. Sérgio Santeiro vai procurar cinematografizar documentalmente esta obsessão modernista em seu Klaxon (com Gustavo Dahl representando Oswald), ou redimensionar, ensaisticamente, via orientação formal/concretizada, a visão romântica da cultura sul-americana através de Guesa, o poema de Sousândrade. Não desconhecemos a obsessão de Mário Carneiro em filmar Macunaíma finalmente passado para as telas por Joaquim Pedro, em 68/69. Haroldo Marinho, depois da descoberta, realizada por Luiz Carlos Maciel, de Qorpo Santo (sua montagem censurada de Relações Naturais), vai nos dar a visão da atitude criativa romântico/barroca deste "louco" gaúcho, do inicio do século, passando para o cinema Eu Sou a Vida, Eu Não Sou a Morte. Rogério sempre se interessou pelas letras e vida de Oswald. Quis, num determinado momento, realizar um projeto em cima de Mário de Andrade, Paulicéia Desvairada. Em Julio, vamos ver uma transposição mimética, inclusive de atitudes. Ao "cinema novo'' mariodeandradeano contrapõe-se o cinema-atitude-frente-à-vida-poético-radical-oswaldiano, de Julio e Rogério.

16.
A preocupação de síntese-brasiliana/universal (como Glauber, epicamente estabelecida em Deus e o Diabo e Terra em Transe, para citar apenas suas obras maiores) permeia a obra dos dois mais conhecidos representantes de nosso "udigrudi". Em menor escala, em Julio (O Monstro Caraíba, A Família do Barulho) e, em maior, em Rogério (sua obras maiores, O Bandido e Aranha) fica evidente. A postura de esvaziamento e destruição da respeitabilidade que o "cinema novo" acabou por dar à sua produção (Os Herdeiros, Brasil, Ano 2000) destoando de uma proposta de descontração inicial ("para se fazer cinema basta uma câmara na mão e uma idéia na cabeça": complemento radical das posturas expostas no manifesto por uma estética da fome), filha da imposição neo-realista do cinema anônimo, feito nas ruas, colado à realidade, passando pelas propostas do cinema de caméra stylo, da nouvelle vague e do cinema etnográfico de Rouch/Morin/Maysles/Leacock, com seus avanços tecnológicos, libertando o cinema da dramaturgia teatral do stage, já que o "cinema novo" se compromissou com um projeto em decadência em todo o mundo, o de "cinema industrial" (Luiz Carlos Barreto, uma tarde, na sala da Tekla Filmes, exorta-nos, a mim e a Neville, a seguir rumos "próprios", na direção de um possível cinema "marginal" – segundo suas palavras – usando, pela primeira vez, o rótulo, em 1969, já que o "cinema novo" estava "por demais compromissado por relações econômicas e de poder" ainda segundo palavras textuais de Barreto, ditas sob nossos perplexos e penalizados olhares acompanhados por Maurício Gomes Leite e Billy Davis, vitimas maiores deste impasse de transição), Julio e Rogério contrapuseram a atitude de esvaziamento da "gravidade" do ato de filmar. Aranha é um discurso sobre o ser faminto do Brasil (uma crioula masturba-se com uma garrafa durante todo o filme, o Brasil é representado por Maria Gladys, vestida de verde-amarelo, descendo a favela do Vidigal, gritando "estou com fome!", enquanto o Zé Bonitinho/Aranha/Jorge Loredo recita frases apocalípticas e Luiz Gonzaga toca "Asa Branca", num dos mais espantosos retratos épicos do país) ou A Família do Barulho é uma vertical visão das relações de poder através de personagens quase estáticos (Guará grita para Kleber Santos: "cala a boca, babaca!", entremeado por closes longos da Odalisca Gladys ou Helena Ignez e fotos familiares de Julio, onde vêem-se personagens da história militar de nosso país, do tenentismo aos nossos dias). Poesia histórica, O Gigante da América e O Monstro Caraíba (Carlos Imperial grita para Wilson Grey: "Acorda, Brasil"). Arqueologia poética.

17.
A mim, bem como sei que a formação de um Neville, Guará (figura-elo de tudo isto, outro capítulo necessário da revelação destes segredos), sempre houve um referencial mais colado no discurso existencialista mais radical. O gesto essencial, anônimo, universal, a banalização do cinema (politicamente tramado e realizado por Julio com uma eficiência do mais lúdico prazer de filmar/viver/refletir), "o cinema sou eu", meu umbigo é mais importante que um close de Elizabeth Taylor (apesar dos seus maravilhosos olhos cor de violeta, em Raintree County), visão destilada obsessivamente num marxismo sartreano, num processo poético de catarata (ou cascata?) narrativa ("eu sou o que narra"), o espelho do outro (o incômodo "outro") do qual devo escamotear meu ser (e meu ser só existe pela existência do outro!), de Henry Miller, da prosa devoradora de Fitzgerald, da safadeza introspectiva de Drummond, vai nos dar uma outra dimensão. Uma dimensão da curiosidade sujeito/objeto, que vai dar onde não sabemos. A arte substitui a vida. O teatro é vivo. Que papel tenho eu? O travelling é uma questão de moral ou a moral é uma questão de travelling? Cinema épico ou anedótico? Documento ou ficção? Mimese ou imaginação absoluta?


Geraldo Veloso – maio 1983

(Artigo publicado, em cinco seqüências (17 de maio, 24 de maio, 31 de maio, 7 de junho e 14 de junho), no jornal "Estado de Minas", de Belo Horizonte.
A série de artigos acompanhou a realização de uma das primeiras retrospectivas completas do cinema "marginal", realizada em Belo Horizonte (houve outra, igualmente em Belo Horizonte, em 1977, também curada por mim, para o Grupo Novo de Cinema e a distribuidora Agedor, do Paulo Bastos Martins), na mesma ocasião, sob a minha produção e curadoria, para o Instituto Humberto Mauro, na sala Humberto Mauro, do Palácio das Artes. Nessa retrospectiva exibi, pela primeira vez, para o público, o meu segundo longa-metragem, "Homo Sapiens/Banco de Anjos", com acompanhamento de piano, ao vivo, em improviso do jornalista e crítico Marcelo Castilho Avellar.)