ODE A DON HERTZFELDT

A primeira imagem mostra uma criança e um balão. Na verdade, uma criança com um balão vermelho e um chocalho. De certa forma, é o padrão de um zilhão de animações, é a muleta recorrente do cinema de animação, utilizar as formas voláteis do desenho em relação ao live action para criar fofuras às quais o espectador se apega de modo regressivo, quando não francamente estúpido. Mas algo vai diametralmente contra o esperado. Ao invés de perpetuar o coro de amenidades, o balão malcomportado começa a agredir a cabeça do menino. Atônitos, surpreendidos, observamos a manutenção estóica, mínima do quadro. Fora do barulho seco do choque e dos movimentos do balão que provocam golpes na criança, nada se movimenta. Pausa estudada e precisa, timing elegante e sádico, até que o balão repita sua ação violenta. O filme seguirá de forma quase matemática, multiplicando as maldades e o número de crianças com seus balões (ou balões com suas crianças, melhor), e terminará sem desenlace, apenas com o puro descontrole. Esse é Billy's Balloon, 6min, quarto filme de Don Hertzfeldt, um cineasta que até agora tem sete filmes (além de segmentos para um programa de tv e um novo filme, I Am So Proud of You, a estrear ainda em 2008), e uma minutagem inferior ao tempo médio de um longa-metragem. Ainda assim, é um dos maiores realizadores contemporâneos.

E como tudo tem a ver com contexto, isso acontece também por uma questão de contexto. É cada vez mais raro nos depararmos com verdadeira rebeldia e independência numa época em que esses valores nos são vendidos de forma domesticada e prefabricada, em que o cinema já vive há tempos num momento de mediação sobre mediação, de cerebralismo sensual num canto e de placidez contemplativa em outro, e em todas as esquinas a marca da perfeição técnica. Hertzfeldt representa o exato outro lado: perfeição lapidada no conceito, sim, mas também uma incrível imediaticidade, uma profunda gratuidade, um autêntico sentimento de do it yourself que passa pela técnica de animação e se instala na percepção total da obra. Humor perverso, nonsense, absurdo icônico, paródia, metalinguagem selvagem, todas as estratégias são possíveis no universo de Hertzfeldt para desarmar o espectador de suas preconcepções a respeito de animação e a respeito de narrativa em geral. Como com Beckett ou Steve Reich, existe esse sentimento de exatidão ao experimentar a obra e ver que o artista deixa claras todas as suas premissas e não adiciona purpurina nenhuma além do que sua premissa pede.

E no caso de Hertzfeldt a relação com a técnica é extrema. Dominando quase inteiramente – ou seja, praticamente sem equipe – o processo de animação, seus filmes podem ficar mais "sofisticados" com o tempo, mas ainda mantêm os "saltos" típicos da animação dita caseira, que não cola os frames em perfeita continuidade. Essa "pulsação", mais que um efeito de assinatura (impossível, já que não é exclusividade dele), tem uma coerência total com o traço sem relevo, com a frontalidade do tratamento dos temas, com a concreção da narrativa. Ela confere a seus filmes toda vulnerabilidade, toda uma sensação de lo-fi que se traduz em visceralidade e honestidade consigo mesmo (e com o espectador, em seguida). E ela é, de certa forma, o ponto de partida perceptivo de todas as audácias que no traço e nas ações dos personagens invadirão a tela e nos deixarão ora chocados, ora impressionados pelo humor selvagem.

Os dois casos estão muito presentes em Rejected, seu quinto filme e espécie de concretização de todos os procedimentos realizados nos filmes anteriores (a partir do fim de Rejected, digamos, a estética de Hertzfeldt ganha os contornos de uma viagem solipsista sobre a relação entre o eu e mundo). O filme apresenta segmentos curtos para canais infantis e propaganda de comida encomendados a Hertzfeldt que teriam sido recusados por seus compradores. O primeiro, mais memorável, brinca com a idéia do nome do canal, Family Learning Channel, para colocar um moonstrinho segurando uma colher enorme e dizendo "Minha colher é grande demais" três vezes até que uma banana com pernas e braços adentra o quadro e diz "Eu sou uma banana!" É claro que o principal efeito é o inicial, o do choque com a falta de sentido de tudo, mas num segundo momento a idéia de aprendizagem e de recognição (é um learning channel) é questionada de forma agudacriando um jogo de adequação entre formas e finalidades (o tamanho de uma colher) e identidades, no caso inúteis (por que dizer que se é uma banana quando estamos vendo que estamos diante de uma?). Assim visto, o nonsense inicial vai se transformando em desvirtuamento violento dos pressupostos em que se baseiam esses veículos encomendados. O segundo exemplo é ainda mais provocativo e afrontador: numa lógica típica de apresentador e auditório, um boneco fala coisas evasivas típicas do feelgood televisivo como "This is fun", para a resposta efusiva da platéia, até que o apresentador passa a sangrar pelo ânus e grita "My Anus Is Bleeding", e a efusividade da platéia mantém-se a mesma, como que indiferente ao que está acontecendo com seu mestre de cerimônias. Além dos gritinhos da platéia, que podem evocar os gritinhos dos Teletubbies, essa vinheta abusa da escatologia para sublinhar a apatia da lógica do espetáculo, que faz do espectador um bonequinho de dizer "Ê", indiferente ao que acontece a sua frente. Ainda que o choque da desproporção seja o que mais afeta e impressiona num primeiro momento, intuitivamente compreendemos a lógica da paródia da alegria artificialmente construída.

A desproporção, na verdade, povoa os filmes de Hertzfeldt. Seu primeiro, Ah l'amour, era basicamente um filmete que mostrava um rapaz puxando assunto com meninas e recebendo em troca violências verbais e físicas absolutamente exageradas (desde dizer "Preciso do meu espaço" com um simples "Oi" até retirar toda pele do personagem e colocar sal em sua carne viva até o corpo derreter). Depois de um filme menos interessante, Genre, brincando com os arquétipos dos gêneros cinematográficos e levando-os a limites curiosos, Lily & Jim explora o constrangimento dos encontros às cegas, mas de certa forma atinge todo espectro de dúvidas de auto-estima provocadas por relacionamentos amorosos (ou pela expectativa deles). Até agora o único filme efetivamente naturalista do cineasta – com situações psicologicamente coerentes e plausíveis –, Lily & Jim no entanto mantém a mesma inclinação pela observação aguda sobre as dificuldades de externalizar os sentimentos e as incertezas no contato com o outro. A parte final de Rejected, de certa forma, ao implodir o mundo de certezas dos personagens e do papel para evidenciar o próprio autor em conflito consigo mesmo (mudança impressionante de tom e densidade entre a primeira parte e a segunda), maximiza o ceticismo e instala o artista num solilóquio que será o tema de seus filmes seguintes.

Em The Meaning of Life (2005) e Everything Will Be OK (2006), não é propriamente o tema que nos dá essa sensação de instabilidade quanto às percepções que recebemos, mas a forma de cada filme. Nos dois, é quebrado o liame de narração ou de nexo lógico, nos instalando em regime de contemplação ignorante ou deslumbrada. Em The Meaning of Life, vemos distanciadamente um número cada vez maior de pessoas aparecendo na tela, andando a esmo e repetindo coisas – que, no contexto, representam idéias "sobre a vida" –, até que pela multiplicação de vozes tudo fica indiscernível e a relatividade absoluta se instala. Em poucos minutos, faremos uma viagem galática, observaremos diversos seres de outros mundos e de formas físicas distintas andando, caminhando e falando como nós. Entre essas situações, imagens incrivelmente belas de corpos celestes, de colorido exuberante e leveza nos movimentos, aparecem para nós. Se a beleza dessas imagens – que nos impressionam tão mais porque comparadas ao fundo branco e ao traço sumário de Hertzfeldt – nos encanta e nos causa mistério, elas também parecem cinicamente nos dizer que a pergunta sobre o significado da vida não é realmente importante. Que a vida é degeneração, mas que a decrepitude dos corpos (que aparece em duas ocasiões no filme) só existe num plano individual.

Everything Will Be OK
radicaliza o esfacelamento do ponto de vista individual, narrando a vida interior de um personagem, suas manias, suas observações, suas reações ao mundo exterior. Como que saído de uma sessão de The Meaning of Life, todo o circo dos hábitos humanos não parece fazer sentido particular a Bill – e ao espectador que acompanha Bill. Visualmente o filme é organizado em torno de borrões brancos com coisas acontecendo sobre fundo preto, e freqüentemente a tela é dividida em três ou quatro borrões arredondados, deixando fragmentadas as percepções particulares de cada borrão – um descolamento ou uma certa gratuidade da relação entre a coisa e seu sentido. Descolamento que, aliás, inclusive acontece no nível da narração em certos momentos. Bill parece sofrer de uma doença degenerativa que afeta suas percepções e vai terminar por matá-lo, mas na verdade o filme não é sobre percepções irregulares. Ao contrário, é sobre o próprio estado de normalidade, sobre o cotidiano repetitivo e angustiante, novamente sobre o circo de hábitos que reproduzimos como que por reflexo condicionado. Porém, mais que um elgoio auto-indulgente do modo depressivo, Bill é uma janela para observarmos as reproduções mecânicas dos tecidos sociais e interpessoais.

A cada filme, a técnica de Don Hertzfeldt vai ficando mais e mais variada. A profusão de cores e efeitos que aparece na segunda parte de Rejected vai ganhando mais corpo e principalmente mais ritmo. Everything Will Be OK dosa com incrível precisão a montagem super-rápida de lembranças e sensações com a letargia interior de um personagem em luta com suas cognições, da mesma forma como organiza excelentemente imagens visualmente intensas de cor e formas abstratas (evocando por vezes quadros de expressionismo abstrato) com seus modestos personagens de pauzinhos. O mais decisivo é que, mesmo dando uma guinada em sua arte, permanece em seus filmes aquela mesma visão bestificada dos gestos dos homens, aquela mesma virulência, só que em modo reflexivo, diante da auto-imagem florida e evasiva do espetáculo contemporâneo (e do papel do audiovisual, e da animação, dentro dessa economia).

Não é toda hora que surge um artista pronto a desmistificar e tornar ridículos os procedimentos banais e vagabundos do campo expressivo em que trabalha. Muito menos comum é fazer isso e ao mesmo tempo afirmar um estilo, uma sensibilidade, uma assinatura, e assim fazendo nos apresentar o mesmo mundo que conhecemos sob outros olhares que melhor formalizam problemas que conhecemos intuitivamente mas não formulamos dessa maneira. Uma má vontade incontida, uma hostilidade produtiva, uma maneira de esquartejar o modorrento senso comum seja devolvendo sem maquiagem a imagem construída (Ah l'amour, Lily & Jim, Rejected), seja mostrando em modo reflexivo a banalidade da existência humana (The Meaning of Life, Everything Will Be OK). Não é toda hora que a gente pode dizer de um artista que ele tem sintonias existenciais com Luis Buñuel. E que suas obras completas até agora podem ser os Cão Andaluz, os Viridiana, os Anjo Exterminador, os Idade do Ouro de nossa época.

Ruy Gardnier

 

 
 






Imagem...


...e contra-imagem (Billy's Balloon)


Trabalhar a indiferença do espectador (Rejected)


Plasticidade complexa e técnica mista:
desenho, material filmado (Everything Will Be OK)


Borrões brancos e o descolamento entre
a coisa e seu sentido (Everything Will Be OK)