Observamos em nossos dias em todas as formas de expressão, em particular
naquelas que visam um contato coletivo (teatro, cinema, concertos...), dois
comportamentos possíveis do artista face ao público. Percebo, grosso modo, dois
tipos de comportamentos principais, definíveis em teoria: o desejo de agradar,
ou o de chocar, nos diversos sentidos da palavra. Certamente, no detalhe
concreto de cada indivíduo, o princípio se nuança, se ramifica, se cobre de
recortes às vezes contrários à lei geral. Mas o que nos interessa hoje é essa
lei, e como ela se aplica à obra e à pessoa de Joseph Losey.
Uma Harmonia coletiva
Nas épocas em que uma civilização progride ou culmina, a dualidade de que
falamos não existe. O artista se acha espontaneamente de acordo com os grandes
movimentos e com as correntes profundas que animam a coletividade da qual ele é
o fruto. Em harmonia com seu público, ele apenas deseja agradá-lo. Os egípcios
de Ramsés II, os gregos de Péricles, os romanos de César e de Augusto, os
ingleses de Elizabeth, os espanhóis de Carlos V, os franceses de são Luís ou de
Luís XIV se atiraram a um só objetivo: criar obras para o prazer e o
ensinamento dos homens. A isso se chama também classicismo, essa vontade de
fazer a obra atingir o ponto de reconciliação de seus termos fragmentados: o
homem, o mundo; fragmentação, vazio e ignorância que haviam suscitado
justamente a necessidade de criar.
O Ciclo vital
Mas, infelizmente, uma curva que subiu deve descer novamente: lei terrível da
vida. Uma civilização é um organismo vivo, como uma flor, como um pato na
lagoa, como um homem. Ela nasce, ela cresce, ela amadurece, ela envelhece, ela
morre. Ou então a matam. E quando ela envelhece, acontece nela o que acontece
em todo e qualquer organismo: seus tecidos empobrecem, seus elementos se
dissociam, tentam anarquicamente sobreviver em detrimento dos outros e perecem.
Então o artista não está mais necessariamente de acordo com seu tempo, nem com
seu grupo. Ocorre, até com bastante freqüência, de o artista se opor a eles com
todas as suas forças, o são se tornando solitário no meio de toda a agonia. As
duas opções possíveis do artista, agora que numerosos signos anunciam que há
algo de podre no reino do Ocidente, serão portanto aceitar ou recusar a
decadência.
Como essa aceitação ou essa recusa se traduzem em termos de relação com o
público? E qual maneira de abordar a alternativa Joseph Losey, cineasta
exemplar, escolheu?
Os dois comportamentos
Aceitar, ou recusar. Aceitar é, veremos a seguir, aceitar a anarquia dos
interesses contraditórios no seio de um grupo em via de perecimento. É
necessário tentar provocá-la, para melhor mostrar que se é cúmplice e mais que
cúmplice: ator. Um intelectual ou um artista que aceita a derrota de sua própria
civilização, seja porque sonha com uma outra, seja por inconsciência ou
futilidade, o que quase sempre dá no mesmo, se quer responsável pelos fermentos
que a decompõem. Ele corta alegremente o galho que o sustenta. Na sua relação
com o público, os valores negativos prevalecerão, os temas de desacordo sem a
contrapartida de uma crítica construtiva. Em vez de se pôr ao serviço dos
espectadores, o cineasta (já que falamos de cinema) se refugiará no desprezo ou
se lançará à agressão. Conivência com as capelas, piscadas de olho aos amigos,
provocações formais gratuitas, histeria temática, ou então recusa da estética,
recusa da narrativa (mediadora de comunicação) formarão as constâncias de seu
comportamento criador. Imerso por inteiro, entranhado no caos de sua época, ele
será seu eco fiel e complacente.
Recusar-se a conformar e a integrar sua criação à decomposição que os rodeia é
próprio dos cineastas que, menos atingidos pelo envelhecimento de sua
coletividade, desejarão salvá-la mais do que traí-la. Distanciados de todo
romantismo e em particular do culto exacerbado ao individual na arte, eles
conservam junto ao público uma atitude clássica de respeito. Podemos citar
aqui, dentre outros, dois grandes americanos: Raoul Walsh, Allan Dwan; dois
grandes germânicos: Fritz Lang, Otto Preminger; alguns franceses já citados
alhures (1); um italiano: Cottafavi (2). Esses aspiram menos a
cuspir no rosto do espectador do que a lhe trazer a beleza, o ensinamento, o
apaziguamento, quiçá o divertimento que eles têm missão e vocação de fazer
jorrar do deserto.
Assim, o paradoxo da criação artística em período de declínio é que o artista
em acordo com seu tempo é por isso mesmo levado a se dissociar do público, e
que o artista em ruptura é por isso mesmo levado a se lhe conciliar. Dois
exemplos ilustrarão essa proposição: Godard e Fritz Lang. O primeiro, atento à
confusão do crepúsculo, porta-bandeira da modernidade; o segundo, nem antigo
nem moderno: eterno, vertiginosamente longe (como diz às vezes), em sua vida
como em sua obra, das erosões do presente; e portanto muito mais próximo de nós
do que tantos outros, colados à sua época como moscas sobre um pedaço de carne.
E Losey?
Losey clássico.
O comportamento de Joseph Losey face ao público, tal como se depreende de
seus filmes, e também de suas falas, não entra de maneira tão simples nesse
esquema dualista; o qual apenas representa, repitamos, o esboço geral do
problema.
Convém antes notar que a ferida do exílio (Losey deixou os Estados Unidos em
1952) teve conseqüências importantes sobre a evolução de seu trabalho. O estilo
mudou, o olhar mudou. Cortada de suas raízes, a generosa simplicidade americana
cedeu lugar a uma trajetória mais complexa, por vezes sinuosa, enriquecida de
preciosidade onde os problemas próprios a Losey – o homem, a mulher e a
sociedade, reencontrar uma certa pureza perdida – são abordados de viés, por
meio de roteiros singularizados ao extremo (O Criado, Boom, Cerimônia
Secreta), propondo situações e personagens cuja generalidade dramática é
por vezes assegurada tão-somente graças à mestria da direção de atores.
Isso não significa que o caráter excepcional de uma situação ou de um
personagem lhes tire obrigatoriamente seu poder de exemplo e de generalidade.
Ao contrário, muito melhor que a banalidade cotidiana, o excepcional pode
atingir a amplitude, a profundidade, a grandeza que esperamos de uma obra para
que ela nos toque o coração e o espírito. Os reis loucos das tragédias nos são
mais fraternais que o medíocre bípede dos “documentos sociais” dos quais Losey
constantemente se manteve à distância tanto por vontade quanto por instinto.
Mas se ele mira sempre tão alto, é através de um universo mais estreito, mais
confinado, talvez justamente porque o cineasta olha hoje de muito perto um meio-ambiente
demasiadamente determinado por suas coordenadas geográficas e sociais.
Em resumo, nos deparamos agora com roteiros europeus, com um estado de espírito
europeu, menos vigoroso e mais sutil.
A primeira parte de sua obra, que batizaremos de americana mais por comodidade,
ainda que ela extravase à Europa, e que vai até os arredores de 1959 (Blind
Date), não oferece dificuldade maior quanto à interpretação das relações de
Losey com o público. Estamos na América, perto de seus pioneiros. Apesar de certos
degenerados precoces, o sangue aqui ainda é jovem. Isso quer dizer: quando
Losey filma em Hollywood, ele se preocupa somente em filmar o melhor possível;
na confiança, na certeza não mesmo racional mas vital de que o público será
tocado e sairá mais rico da sala se ele, Joseph Losey, tiver feito bem o seu
trabalho. E o público quer dizer todos os públicos: não especialmente os
porteiros, ou os burgueses, ou os intelectuais de Greenwich Village, ou os
casais de Los Angeles, mas essa parte mais ou menos enterrada em todo homem, de
desejos, de angústias, de sonhos, que a obra tem por função exumar e talvez
curar.
Que uma obra não seja recebida da mesma forma por todos os homens, é a
evidência. Mas há numa obra realmente grande bastante clareza, emoção e universalidade
para concernir a todos os homens. É a lição do classicismo americano de um
Losey (O Menino dos Cabelos Verdes, The Lawless...). Uma lição
que exclui a esperteza, o esnobismo, a pretensão, o populismo, em proveito da
ambição mais elevada.
Losey moderno.
O período europeu de nosso cineasta complica um pouco esses dados. Não que ele
desvie do público para buscar somente os aplausos dos colegas. Seus filmes não
param de trazer a marca de uma firme vontade de comunicação. A “história”,
elemento de base, esqueleto indispensável para segurar as carnes, é neles
contada da forma mais explícita e mais direta. Losey não busca nem a falsa
ambigüidade nem embaralhar as pistas para desconcertar o espectador por
artifícios da forma. Com raras exceções, se o espectador é desconcertado, será
por aquilo que o filme mostra, não pela maneira como ele mostra. Em termos mais
abruptos, tendo alguma coisa a fazer e a mostrar, Losey não é impelido a
adulterar a matéria para se fazer valer.
Entretanto, uma circunstância nova aparece: o contato com a Europa, e sobretudo
com certos meios de estetas e de intelectuais londrinos. Esse contato podou um
pouco a confiança e a inocência do americano transplantado. Sabemos que a
capital britânica é o foco mais virulento da doença que infecta a Europa. Como
dizem os jornais bem-pensantes, tudo que é novo nos chega de Londres. Sem
dúvida, não foi sem experimentar uma secreta fascinação que Losey se achou
bruscamente no centro daquilo mesmo que ele pressentia e denunciava sem descanso.
À questão: “Seus filmes não são ao mesmo tempo uma crítica e uma defesa da
civilização ocidental?”, ele responde: “É bem evidente que meus filmes criticam
certos aspectos do mundo no qual eu vivo (...) De todo modo, é certo que eu não
criticaria o mundo no qual eu vivo, que não teria nenhum motivo de criticá-lo,
se eu não o apreciasse, não o amasse, não aceitasse certos de seus valores.
Mesmo se percebemos nele uma espécie de horror ou de mal, o simples fato dessa
percepção que não pode ser senão ativa remete a uma afirmação da existência
desse universo.” (3)
Trabalhando em ligação com seus meios, circulando em seus salões, Losey
estabelece desde então uma nova relação com um novo público, restrito e
particularizado. Seria oportuno reler as páginas clarividentes que Pierre
Rissient consagrou a esse assunto em seu trabalho sobre Losey (4), e
mais especialmente a propósito de King and Country. Modesty Blaise irá
então mais longe no sentido da frivolidade e do comprometimento. Mas, com Accident e Secret Ceremony, parece que Losey se recupera e consegue agora
integrar completamente sua fascinação à sua crítica; controlar uma atração que,
nos seus momentos de plena lucidez, distanciados de toda complacência, confere
a esses filmes uma superfície ao mesmo tempo rude e adesiva, que cola na pele
irritando-a (Eva é o primeiro exemplo disso).
Agradar e desagradar ao mesmo tempo.
Se examinamos no presente essas diversas constatações à luz dos princípios
expostos mais acima, percebemos que Losey, consciência aguda e vasta de seu
tempo, abraça em um mesmo movimento os dois pólos da dualidade. Ele assume o
risco de agradar e de desagradar ao mesmo tempo, levando ao coração da
corrupção (corrupção sobretudo da verdade) um fino escalpelo de ouro cujo
brilho, elegância e precisão se misturam estreitamente ao horror que ele
disseca. Um horror que tem também, aliás, suas belezas, e mesmo suas alegrias,
pois nada é branco ou preto, salvo nos filmes ruins. Secret Ceremony ilustra
à maravilha essa ambivalência.
Cerimônia Secreta não é um título escolhido ao acaso. Trata-se, com
efeito, de um jogo, com suas regras e sua instigadora: a jovem Cenci.
Conhecemos o jogo da verdade; aqui, é o jogo da mentira. Mas um jogo, dir-se-á,
não é uma cerimônia. Vejamos. Se ele se passa em um lugar privilegiado,
particularmente adaptado, e se ele é grave, assemelha-se então a toda
empreitada humana que quer fundar alguma coisa de estável sobre as fraquezas
humanas e na passagem destrutiva do tempo. Na perspectiva agnóstica que é a de
Losey, ainda que atormentada por reminiscências, o jogo supremo é a liturgia. E
é a uma espécie de equivalência da liturgia que assistimos em Cerimônia
Secreta, equivalência reforçada pelos objetos religiosos que semeiam o
filme. Qual lugar é mais adaptado ao jogo de Cenci do que sua própria mansão,
misteriosa e transpassada de luz como uma igreja? Em um outro sistema de
referências, poderíamos falar também de teatro: de seus atores, de suas
convenções, de sua cortina e de seu lustre.
O defeito do cerimonial de Cenci é que ele repousa não sobre elementos de
verdade que se deseja aprofundar e cristalizar através de regras, mas sobre uma
mentira fundamental: Léonora não é sua mãe e nenhum ritual poderá abolir essa
evidência. Desde então, a representação teatral se afundará nas cores da
tragédia e culminará na morte.
É, portanto, o inferno do jogo, é a dificuldade de ser, mas de ser no
verdadeiro. Aqui, a liturgia assume posição de fé... Isso deveria ser então a
noite, a noite total. Entretanto, no vermelho e no azul da noite, a luz palpita
ainda. Como para dar razão a Pascal sobre o que ele diz da prece maquinal, no
interior e por meio do cerimonial: relações de afecção, tateantes, errantes, se
estabelecem. O jogo será interrompido, pisoteado em um acesso de raiva lúcido.
Com um golpe de faca no ventre, a puta suprime a última mentira: batismo de
sangue. Antes de morrer, a jovem mestre de cerimônia, com sua boca muda em
forma de grito, clama por socorro do alto do púlpito de sua igreja, ou do
balcão de seu teatro; ela clama: tudo é ainda possível.
Michel Mourlet
1. Éric Rohmer, Pierre Schoendoerffer, Claude Chabrol nos seus bons dias,
Claude Sautet, Jacques Deray, Michel Deville, Jacques Rouffio. Incluiria ainda
Truffaut por causa, sobretudo, de O
Quarto Verde, Tavernier por A Morte ao Vivo, Bertrand Blier por Preparem seus Lenços, Alain
Corneau, Gérard Blain.
2. Escrito em 1969. Alguns anos mais
tarde, teria incluído Dino Risi e Comencini, cujas obras foram realmente
conhecidas na França a partir dos anos 70. E, curiosamente desconhecido, o
filme de Marco Vicario, Esposamante, distribuído na França em 1978.
3. Cahiers du Cinéma, n° 111.
4. Éd. universitaires, coll. “Classiques
du cinéma”.
(Tradução de Luiz Carlos Oliveira Jr.)
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