Ele adora esse corpo do homem e da mulher que se mede a tudo.
Paul Valéry (Introdução ao Método de Leonardo Da Vinci)
A é A. O real não apresenta nenhuma ambigüidade e surge à consciência na
iluminação da evidência. São esses clarões sucessivos que abrem a via do
conhecimento, não os sistemas que substituem uma dança do espírito à marcha do
mundo. Nietzsche, Valéry mostram o que é uma inteligência que se deixa investir
pela ordem das coisas, sua lógica não sendo a daqueles que dobram essa ordem a
um desejo, mas simplesmente a relação que engaja todas as suas partes. A razão
não é um projetor direcionado pelo homem a um espetáculo irracional; ela está
no espetáculo; é preciso deixá-la vir por si mesma. Hegel, que possuía algumas
clarezas, dizia isso muito bem.
A maioria dos realizadores projeta sobre o mundo o seu sistema, a vagueza de
seu olhar, a distorção de sua inteligência. Uma obra nula é antes uma obra
falsa, um espelho que deforma. Nós andamos por esses filmes como em um sonho
ruim, esbarrando a cada instante em objetos irreconhecíveis. Nosso bom senso
consistirá então em fugir dessa sufocante esfera de artifício, em retornar à
verdade que banha por todos os lados a sala de cinema e vem bater nas suas portas
sem nela penetrar.
Ora, Losey é o realizador cujo espelho é de uma água tão pura que se faz
esquecer e somente a realidade, em seus filmes, se desvela diante de nós. Olhos
desavisados, unicamente sensíveis às provocações de ordem wellesiana, podem confundir
essa nudez do verdadeiro com a destituição da maioria. Um cronista citava
recentemente uma frase extraída de uma apresentação que eu tinha feito de Losey
em seu semanário para caçoar espirituosamente da palavra “cósmico” empregada
para defini-lo. Ele não podia, entretanto, me reprovar por eu ter me servido
dela para não importa o quê, não importa quando: conheço apenas um realizador
que sabe impor constantemente a presença do mundo, o peso do ambiente sobre o
centro da cena, pela utilização dos ruídos, das luzes, pela identificação do
cenário ao drama e do drama ao cenário. O núcleo do drama se assemelha então ao
coração ardente de um sol cujos raios se prolongam e vibram indefinidamente no
espaço. Lembremos esses dois planos de Time Without Pity: o primeiro
mostra Londres, a ponte sobre o Tamisa e o Parlamento; o relógio soa;
retornamos sem transição ao interior de uma casa, em presença dos personagens;
o relógio pára de soar, levemente atenuado pelo obstáculo das paredes. Um
detalhe assim tão ínfimo basta para inscrever a cena na totalidade do real.
Que um artista tenha um “universo” é uma declaração de impotência, de limitação
e, mais gravemente, de artifício. Stendhal, Racine, Bach ou Da Vinci não têm
universos. Eles se interessam sem dúvida por certos aspectos do mundo em
detrimento de outros, e isso cabe à sua honra, mas sabem como não escoar essas
formas privilegiadas pela calha de uma sensibilidade caricatural. Podemos
dizer: o universo de Kafka. Não podemos dizer: o universo de Losey. O que desorienta
os detratores deste último é a ausência de referências a um vício fundamental
do ato criador, capaz de manter seus sentidos fluidos ou imprecisos. Nessa
perspectiva, Hitchcock tem um estilo e Losey não. A noção de estilo recobre por
conseguinte um direcionamento do verdadeiro: Hitchcock, Welles, Eisenstein inventam formas, certamente, mas essa constatação não é a mais severa das críticas?
O artista não inventa, ele descobre, senão nós nos curamos de seus fantasmas. A
história da arte é em grande parte a história das doenças do espírito.
Pouquíssimos artistas seguiram a estrada retilínea do olhar puro. O olhar puro
quer dizer essa perfeita limpidez da consciência no fundo da qual as formas
verdadeiras do mundo se desenham, e que se chama também de inteligência porque,
conforme veremos, a inteligência e a beleza não se separam.
Há um conhecimento absoluto, um desvelamento do ser feito de tal modo que o
pensamento do contrário é psicologicamente impossível e se torna um simples
apagamento do intelectual. Ater-se a essas evidências, recusar as arquiteturas
frágeis, desprovidas de inquéritos e de provas, as teorias sedutoras mas
gratuitas, é a condição de um pensamento e, portanto, de uma arte profundamente
enraizados na vida. Losey fornece desse saber o reflexo mais fiel e o mais
brutal. Trata-se não de um universo, mas do universo; não de um mundo possível
ou impossível, mas do mundo real.
Isso não quer dizer que Losey versa sobre a rotina do realismo, e nos propõe a
banalidade, a sujeira como cauções necessárias à veracidade. O mais raro, o
mais nobre, o mais apaixonado do homem é seu propósito. Mas esse propósito é a
simplicidade mesma, e eis por que ele surpreende. Nossos costumes de pensamento
se chocam contra a exatidão. Assim como temos o hábito de mentir, cremos que
nos mentem quando nos dizem a verdade: um crítico erroneamente intitulou um
artigo sobre Time Without Pity “O Esplendor do Falso”, e falou-se de
expressionismo a respeito desse filme, o que abre a porta aos mal-entendidos. O
expressionismo, com efeito, não se contenta em se opor ao impressionismo pela
intervenção de uma vontade organizadora, ele implica também um acento sobre o
que deve importar. Ora, na mise en scène de Losey o que é
essencial é por si mesmo, sem valorização exterior, graças tão-somente à
retitude do gesto que designa.
Se uma palavra pudesse definir essa arte, seria então honestidade. Que essa
honestidade se exerça sobre os momentos mais ternos ou sobre os mais violentos,
ela não deixa de desconcertar, de parecer perversa ou ingênua àqueles que
perderam a inocência, ou nunca seguiram com o dedo a granulação de um rochedo.
Diríamos que essa arte nasceu de uma estarrecedora conjuntura da infância e da
lucidez. O mundo aparece em seu frescor brutal – mas a inteligência é adulta e
não se rompe sob o choque. Ela, ao contrário, sobrepuja-o, se refaz, domina uma
aparência de caos, e numa total claridade poderá seguir seu caminho.
Da mesma forma falou-se do jogo teatral dos atores, confundindo assim
teatralidade e dramaturgia. Um jogo teatral, na acepção ordinária, é um jogo
excessivo para representar sentimentos cuja expressão ultrapassa a intensidade.
Um jogo dramático pode ser um jogo que exprime na sua integridade
sentimentos excessivos. Eu digo “pode ser”, pois no mais das vezes o dramático
recorre ao teatral por incapacidade do sentimento de se bastar por si mesmo.
Mas justamente, no caso de Losey, há drama e não teatro. Se sua experiência de
teatro lhe serviu bastante, é bem mais por causa da utilização do espaço cênico
do que pela direção dos atores. O espaço de fato permanece o mesmo, enquanto a
rampa e as convenções do teatro não existem mais sobre a tela.
Daí uma liberdade dos gestos desconhecida alhures. Assistimos à sua eclosão, a
mais espontânea que há, e a seu trajeto às vezes inusitado no espaço e sempre
sublime no coração. Experimentamos ao mesmo tempo o estupor e a sensação
bastante viva, bastante fresca, do verdadeiro. Nunca tínhamos estado tão perto
dos seres humanos, de sua carne, de seus nervos, das pulsações do seu sangue. O
gênio de Losey reencontra a perfeita objetividade: a arte mais orquestrada
atinge a espontaneidade do sentimento em vias de nascer. Losey é o único
profeta: ele prevê o que ainda não existe em nenhum grau e que vai surgir do
nada. E isso graças a sua intuição do ser do ator, a possessão do que é
engendrando o poder sobre o que pode ser. Essa possessão, porquanto uma recente
estréia parisiense nos permite tomar Time Without Pity como exemplo,
descobrimo-la, total, no jogo de Leo McKern em que a loucura da dominação e do
orgulho, contida em todas as fibras dessa carne poderosa, explode em cóleras
mitológicas, manifestação de um ardor e de um sofrimento infinitos.
Pois essa claridade que banha os seres e as coisas está lá para guiar um monstro
singular, semi-cego num universo quase opaco, para lhe mostrar as arestas vivas
onde ele se fere e que doravante ele saberá evitar. Desse monstro, na noite,
ela faz um homem. O demônio do saber, a tentação da lucidez são outra coisa
além do desejo de dominar o universo e impor-lhe a lei humana? A mise en
scène de Losey, como a escrita de Valéry, é a cada segundo um ato de
conhecimento, o olhar de um olho virgem e a conquista de um espírito
desprevenido. Sua grandeza é ter compreendido que não há saúde fora da
inteligência. Donde sua comum atitude diante das metafísicas e de todas as
construções arbitrárias do espírito. Seu domínio é aquilo que podem sentir,
tocar, dominar. Imaginamos o estarrecimento desse tipo de espírito diante das
sem-vergonhices de pensamento às quais assistimos por toda parte.
Se a beleza e a lucidez caminham em par, não há mais, como se acreditava
freqüentemente, “estética” e “moral” como duas atividades separadas que se
estuda cada uma em seu capítulo nos manuais da Sorbonne, mas um movimento único
do qual a beleza, a moral, a inteligência são os diferentes nomes. O olhar mais
nítido escolhe a forma mais nobre, e a mão a molda com fidelidade. Não
conhecemos outra definição da arte. Nos filmes de Losey, descobrimos esse
movimento no estado mais desembaraçado, mais livre, mais puro. É ele, e somente
ele, que anima a cena e a conduz à sua compleição. Uma exigência perpetuamente
mantida, uma escolha ao mesmo tempo orgulhosa diante dos homens e respeitosa da
natureza exprime essa convergência das faculdades rumo a um ponto central, o
mesmo para todos, mas que poucos espíritos entrevêem e que quase ninguém
atinge. Passou o tempo de buscar o segredo do mundo. Através do furor e da
tragédia, assim como nas alegrias mais fervorosas, é questão de nada mais que
aprender a viver.
Michel Mourlet
(Originalmente publicado em Cahiers du Cinéma n° 111. Tradução de Luiz Carlos Oliveira Jr.)
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