“E são justamente essa tensão, essa ‘excitação’, somadas à energia
física gasta durante a filmagem, que dão forma e estilo ao filme.”
Joseph Losey
The shock of each moment of still being alive.
“O choque de cada momento de ainda estar vivo”. A frase é tirada de O
Homem que Veio de Longe (Boom), um dos dois filmes que Losey fez com
Elizabeth Taylor em 1968 (o outro é Cerimônia Secreta). É um momento da
carreira de Losey em que reputação e orçamento estão a seu favor, ele parece
ter toda a liberdade para fazer o filme que quiser e a exerce sem concessões,
tanto nesses dois trabalhos como no posterior Figures in a Landscape.
São seus filmes mais secretos, de acesso mais restrito, mas que permitem também
que mergulhemos mais fundo em seu estilo. Um pouco antes, Modesty Blaise (1966)
já tinha sido um caso instigante, no qual Losey encontrava, nem que por
passagens mais estreitas, constringidas no meio da extravagância, sua energia
característica e essencial. Essa energia, evidência sensível do somatório das
forças imbricadas na mise en scène, fica mais intensa em condições
específicas. O personagem precisa estar sob pressão, o mundo em luta.
Recuemos até a cena de The Criminal (1960) em que John Bannion (Stanley
Baker) sai da prisão, anda dez metros e quase é atropelado por um carro que
chega bruscamente do fora-de-campo: mal recupera a liberdade, Bannion já é
apresentado a uma nova ordem de perturbações e contingências – ou ao choque de ainda estar vivo.
A abertura de The Criminal é uma partida de pôquer. Losey mostra,
primeiro, planos individuais dos rostos de cada jogador: olhares cruzados,
blefes. Uma quadra de setes vence a rodada, quando tudo parecia previamente
resolvido: travelling para trás, saindo das cartas até mostrar os três
jogadores e seu entorno. Fica, desse modo, estabelecido o sistema – baseado
sobre o dinheiro, o poder, a mentira – que determina os mínimos gestos daqueles
homens, assim como a razão de estarem naquele espaço e não em outro. O curto
travelling ao final dessa seqüência é um desses momentos em que Losey recorre
ao reenquadramento como a busca – que permite, em si mesma, a aquisição – de um
novo acesso à cena. Esse movimento de câmera, resultante da convergência de
todas as forças – interiores e exteriores – que atravessam o plano
naquele instante preciso da sua deflagração, é o ponto de emanação privilegiado
onde o artista, pela mise en scène, oferece a evidência mais clara de
sua visão e de sua sensibilidade em relação aos personagens e ao mundo que os
enreda. Coisa para poucos além de Losey... Walsh (aquela câmera que se aproxima
do rosto de Errol Flynn em Um Punhado de Bravos, quando ele está
para embarcar no avião, mais vivo agora do que antes da guerra, percebendo o
horizonte glorioso da sua empreitada), Cimino (lento zoom no rosto de Clint
Eastwood dirigindo um carro conversível, com as montanhas ao fundo, no final de Thunderbolt and Lightfoot: reajuste do homem com o mundo, que enfim
compreende a dimensão da sua aventura e do seu destino natural), Straub
(travelling para trás no primeiro plano de Crônica de Anna Magdalena Bach,
revelando o que já estava lá e, no entanto, só pôde surgir com
o movimento de câmera) e outros raros.
Uma vez que investe o principal de sua energia e de sua inteligência na
manutenção da unidade dramática da ação, Losey se vê obrigado a não desviar
daquilo que se põe como providência imediata da decupagem. Assim mantida, a
ação implica uma incontornabilidade, uma exigência do que não pode escapar ao
olhar. Implica a lucidez.
Em contrapartida, Losey se prova mestre na mise en scéne da
alienação. Ao personagem que se descobre alienado do mundo, restam dois
caminhos: reconquistar, sob esse choque, a iluminação mental, ou sucumbir à
escuridão. Time Without Pity: alcoolizado, o personagem de Michael
Redgrave (que tem menos de 24 horas para salvar seu filho da pena de morte) se
desliga dos sons do mundo, a consciência chafurda em si mesma até que, exigida
em sua mais dispendiosa carga de sobriedade, atinge a verdade sobre o fato. The
Big Night: enquanto o adolescente George assiste, fascinado, ao solo de um
baterista de jazz, as imagens do pai sendo espancado invadem sua mente; ele
abaixa a cabeça e foge do mundo, até que a voz sensual de uma cantora vem
trazê-lo de volta. The Criminal: um antecipatório movimento de câmera
fecha o filme sobre o rosto de Pauly (o personagem atormentado que Bannion
adota como protegido na cadeia), o mundo escurece ao redor dele, e percebemos
que sua queda, motorizada pela alienação, é sem volta. A prova vem numa seqüência
posterior, quando ocorre o motim, explosão de toda a energia represada. Pois é
justamente num espaço coercitivo (como o do presídio) que o mundo recupera a
violência expansiva que está na sua gênese.
Outra cena emblemática em The Criminal é a interrupção brusca
do idílio amoroso entre Bannion e sua namorada Suzanne na sala de visitas da
prisão, quando ela evoca o assunto do roubo e do dinheiro. Ela é, aos olhos de
Bannion, a inocência perdida reencarnada. No fundo, ele sabe que bastaria levar
adiante a conversa, bastaria aguardar pelas próximas linhas do diálogo para ver
esse mito ruir. Por isso dá um basta na conversa, preserva a aparência do
idílio, blefa no jogo.
Essa cena de Bannion levantando abruptamente representa uma ação típica dos
heróis de Losey, sobretudo na fase americana e na primeira metade da fase
inglesa (pré-O Criado), de uma carnalidade mais sucinta. Bannion aponta
o dedo para Suzanne, tenciona o rosto, levanta a voz e, em seguida, o corpo. É
sua alma que se agita, e os músculos, fiéis comunicantes, reagem. A pulsação
que dá a um organismo a sua condição de vivo é convocada a não mais estar
enterrada dentro do homem, e sim agir sobre o presente. Os personagens de
Michael Redgrave e Leo McKern em Time Without Pity encarnam esse
momento toda vez que se confrontam, culminando na tragédia que a seqüência
final faz vibrar com enorme potência física. Em The Prowler,
podemos citar o abraço interrompido de Webb (Van Heflin) em Susan (Evelyn
Keyes), após ela contar que está grávida e ele perceber o risco de descobrirem
sua culpa no assassinato do ex-marido dela. Naquele abraço e naquela agitação
momentânea, o personagem atinge seu pico; arrancado da paz, ele ultrapassa
alguma coisa em relação ao cenário, à luz, ao enquadramento. O espírito
inquieto, então, aos poucos vai desinchando e encontrando um acordo com a nova
situação que se lhe apresenta.
Podemos citar também The Big Night, pura cólera juvenil
materializada na mise en scène das atitudes de George ao enfrentar um
mundo (adulto) corrompido e, no fundo, impotente. Ou a meia-hora final de Blind
Date (1959), em que a performance de Hardy Krüger vai ficando mais e mais
enérgica, palpitante, à medida que ele precisa provar, em condições cada vez
menos favoráveis, que foi vítima de uma armadilha. Mas é de Jacqueline
(Micheline Presle) o gesto mais memorável de Blind Date. Após negar seu
envolvimento com o personagem de Krüger, Jacqueline não resiste ao momento em
que ele confessa que a amava e se deixa levar por um breve impulso: ela se
impele na direção de Krüger, porém se detém imediatamente. Embora contido, esse
gesto é o suficiente para o Inspetor Morgan (Stanley Baker) perceber o que está
se passando. Ela não só conhecia Krüger, como o amava; a alma é delatora, o
gesto é a revelação.
Losey filma o movimento que nos permite enxergar a extensão de uma paixão ou de
um ódio. A esse movimento, no plano criativo, corresponde uma faixa de duração
em que a revelação sensível e a consciência do ato representacional se
encostam. Tal movimento só se manifesta por instantes muito breves, e para
apreendê-lo, portanto, é preciso um grau de concentração ideal tanto da energia
como da inteligência aplicadas à construção da cena.
Losey barroco
Até aqui, falamos de uma inequívoca integridade da matéria, e de uma
dramaturgia que não ousa desrespeitá-la. Mas o caminho entre o mundo e a forma
nem sempre se mostrará retilíneo. É entre 1954 e 1959, começando com The
Sleeping Tiger e continuando – de modo variável – com Time Without Pity, The Gipsy and the Gentleman e Blind Date, que ocorre uma primeira
investida barroca na obra de Losey, condensada depois em O Criado (1963).
Antes, o mundo e a forma tinham o mesmo tamanho. Agora, é como se Losey
estivesse tentando fazer esse mundo passar, todo ele, por uma serpentina. O
conteúdo é grande demais, e obriga o continente a multiplicar seus efeitos de
vertigem e de dobra.
A mudança crucial de que estamos falando reside não só na decupagem e na
preparação dos cenários, mas também na iluminação, nos diálogos, nos atores, em
suma, na compleição geral dos filmes. Tudo começa na concepção das idéias de
base, ou seja, na maneira de trabalhar a disposição da matéria para que esta
receba, com uma margem de erro reduzida, a forma. O estilo visual dos filmes, sobretudo
a partir da parceria com Richard MacDonald (que tem início tão-logo Losey se
instala na Inglaterra), vai ser concebido numa etapa de pré-designing:
após lido o roteiro, Losey e MacDonald conversam sobre a história e começam a
pôr em desenhos – portanto em uma “linguagem” já propriamente visual – aquilo
que pretendem executar nos cenários e nas locações. Questão de método.
Expressão ainda incompleta dessa mudança, The Sleeping Tiger é um filme
que na década seguinte se partiria em dois: embora aporte um claro refinamento
à matéria-base de Losey, o filme pode ser visto como a pedra bruta da qual
sairiam as peças polidas de O Criado e Accident. Já se acha lá,
no filme de 1954, o interesse pelo sistema de classes britânico, combinado a um
freudismo escancaradamente vulgar e tendo Dirk Bogarde como protagonista de uma
situação dramática que se tornaria cara ao diretor, fundada sobre uma espécie
de disputa psicológica (ainda não tão incisiva como em O Criado). O
caminho do barroquismo já se entrevê pela intensificação da função dramática
dos objetos cênicos, dos figurinos, dos espelhos, das escadas, pela ligação do
cenário com a atmosfera interior da trama, pelos efeitos de sobre-enquadramento
e de iluminação. Mas um certo comportamento febril dos personagens,
particularmente marcante nas cenas de Bogarde com Alexis Smith, preserva algo
da nudez de espírito, da violência crua, das pulsões subterrâneas de filmes
como The Big Night, M e The Prowler.
Nos anos seguintes, a torção barroca se acentua, e o que em Time Without
Pity e Blind Date soa como o alcance máximo de uma técnica e de uma
dramaturgia, em O Criado ganha um aspecto de decadência. O ápice e o
limite do barroquismo loseyano estariam no esplendor estético que parece em
luta com a heterogeneidade da matéria em Cerimônia Secreta e,
principalmente, Boom. Neste filme, Losey busca o fundo de essência dos
diálogos de Tennessee Williams (autor da peça original e, após um trabalho de
convencimento, roteirista do filme): partindo de um passado encoberto pelo
mito, chegar a um presente banhado pela luz da revelação e, ao mesmo tempo,
entregue aos caprichos da noite, eterna parceira da mentira. Para isso, o
principal meio de transporte é a palavra. Como em De Repente, no Último
Verão, de Mankiewicz (adaptado do mesmo Tennessee Williams, e com a mesma
Elizabeth Taylor), as palavras em Boom são gestos e, freqüentemente,
armas que se escondem sob a beleza poética de algumas frases. O paroxismo do
seu barroco, então, consistiria nessa figura antitética de uma beleza que é
destruição e vice-versa.
A consciência atormentada
É natural que Losey tenha feito um remake de M, e que portanto tenha
filmado aquele pobre demônio perdido entre dois mundos. Os protagonistas de The
Criminal, The Prowler, The Big Night, Accident, The
Sleeping Tiger, todos eles também ocupam um espaço delirante entre o mundo
da inocência, miseravelmente fraturado, e o dos mitos civilizatórios (dentre os
quais, o puritanismo e o dinheiro). Só uma consciência atormentada pode
atravessar esse espaço.
O Mensageiro (The Go-between, 1970) não segue um caminho
tão diferente. O menino que entrega as correspondências amorosas entre uma
aristocrata e um camponês não é propriamente o mediador, nem a conciliação, mas
o conflito personificado. Ele menos favorece uma união do que ajuda a
descortinar um divórcio anterior e imutável. Ele é o perfeito porta-voz dessa
consciência que, após testemunhar a colisão entre os mundos da inocência e do
seu contrário, enxerga o passado como um “país estrangeiro”. E o personagem
de Dirk Bogarde em Accident (1967) é quase sua versão adulta. Pierre
Rissient disse a esse propósito: “O que eu gosto nos grandes filmes de Losey é
a inocência, mesmo se às vezes ela se encontra invertida (...) Não acho que
possamos analisar Accident como um filme sobre a inocência, mas a
percepção da vida que se revela em certas cenas é a da inocência” (em
entrevista publicada na revista CinémAction nº 96). Não há como
descrever melhor esse aspecto de Losey, e de Accident em particular.
O homem, a mulher, a sociedade: forças que se chocaram lá na explosão
originária do universo. Alguns sobressaltos na montagem de Accident parecem justamente querer reintegrar, mesmo que sob tormento, os estilhaços
dessa explosão. Na cidade fantasma em que o casal de The Prowler vai se
refugiar, na esperança de realizar um sonho de sossego e harmonia, tudo que
existe é o vento, a areia, o rugir de forças cósmicas, o destino – cenário
digno de Sjöström (Vento e Areia, Os Proscritos), quando a
história de um casal, que pensa ter encontrado a paz e a comunhão com o cosmo,
se depara com um destino irremediável e terrível.
O herói não se entrega
A meio caminho entre o barroco mais vertiginoso de Losey (o dístico de 1968) e
sua contenção dentro de uma narrativa histórica (Mr. Klein), Figures
in a Landscape (1970) encena uma fuga sem motivo esclarecido, num
exuberante cenário montanhoso. O enredo a princípio é absurdo. Dois homens
fogem (do quê?), um helicóptero os persegue (por quê?), e a paisagem é de uma
opacidade grandiosa, intransponível. Mas em Losey nenhuma paisagem é
infra-social, e desde o início percebemos a não-gratuidade do jogo. Figures é um momento de depuração, de canalização da experiência rumo a seu núcleo. Os
eventos vão ficando cada vez menos imprecisos e mais exatos, as ações se educam
no discernimento do que é vital e do que é insólito na narrativa. Há um
plano-seqüência que começa com o helicóptero sumindo no horizonte e os dois
fugitivos (Robert Shaw e Malcolm McDowell) despontando no topo de uma montanha,
vindo em direção à câmera, que passa a acompanhá-los com travelling. Os
personagens conversam, fumam, andam, descansam, existem. A câmera anda, pára,
prossegue, respira. Em Losey, a vida de um homem, assim como o mundo que a
comporta, é um surgimento. Ele oferece um espaço para os atores, que se
tornam hospedeiros de uma força e de um movimento convergentes, deflagradores
de um estágio crítico na posição do homem face à natureza e aos outros homens.
Atingido o limite máximo de sua complexidade, o homem ou se entrega ou se
afirma. Modo de se afirmar: ação. O herói loseyano é aquele que age,
mesmo que tenha de descambar na fatalidade e se atirar à morte (como nos finais
de The Prowler, Time Without Pity, The Criminal). A morte
aparece como a última ação possível, uma reconquista da integridade. Em Figures
in a Landscape, o herói é o personagem de Robert Shaw, que não sucumbe à
ordem e prefere morrer combatendo. É no mínimo intrigante o último plano de Figures ser uma tomada aérea que se distancia do corpo do herói abatido sobre um
solo coberto de neve, em semelhança direta com o último plano de The
Criminal. Muita coisa mudou entre um filme e outro, é evidente, mas Figures parece mesmo recuperar algo de uma essência e de uma carne que os filmes de
Losey anteriores a 1960 tinham mais afloradas. Os heróis de Figures e The
Criminal possuem a mesma explosão muscular, a mesma recusa a permanecer
nesse mundo sem escapatória onde viver equivale a migrar de uma forma de
opressão a outra.
Luiz Carlos Oliveira Jr.
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