A verdade não é complexa, nós é que
somos.
Oscar Wilde
É sempre estimulante ler os textos escritos sobre Joseph Losey. Encontramos nas
palavras de Michel Mourlet e Jacques Serguine (e poderíamos ainda mencionar
outros exegetas, dentre os quais Marc Bernard, Jean Douchet e Jacques
Lourcelles) a evocação cautelosa e delicadíssima de uma arte que imaginamos
requintada, preciosa, rara e aristocrática, uma arte que não pode ser senão o
equilíbrio solicitado pelo talento mais natural. E no entanto, o erro a jamais
se cometer com Losey é acreditar que sua técnica é meramente refinada e seu
domínio sobre a matéria exaustivo e total. Se confrontamos a evidência dos
filmes com a descrição destes por seus comentadores, o que observamos é, sim, a
presença de uma técnica apurada e um talento consumado, e isto desde os
primeiros trabalhos (impossível resistir à tentação de afirmar que sobretudo neles), de O Menino dos Cabelos Verdes a Time Without Pity, passando por M e The
Lawless. Contudo, se refinamento há – e sua existência é mesmo inegável –,
ele invariavelmente aparece como que submetido à espontaneidade e à força bruta
dos dons naturais de Losey, a saber uma franqueza instintiva aliada à qualidade
palpitante de sua direção de atores (cuja violência latente culminará na sua
própria refração, i.e. Eva), ou ainda
como uma forma, uma forma de
controlar uma matéria ainda mais áspera e encolerizada, porém curiosamente
menos febril e intensa, que aquela com a qual tomamos contato nos filmes de seu
período norte-americano e os que realizou imediatamente após o início de seu
exílio na Inglaterra (tal procedimento, que verificamos em tudo que na obra de
Losey segue O Criado, nasce da
colisão de uma extrapolação das tendências mais preciosistas e posteriormente
mais recorrentes de sua obra com a moderação e a sobriedade de seus primeiros
filmes).
O objetivo deste texto é simples: identificar as linhas de força que sustentam
uma técnica e reconhecer nesta técnica uma arte que busca registrar o momento em
que a descrição de uma intenção passa pela legitimação do gesto que a
caracteriza no mundo material.
Uma franqueza luminosa
Das primeiras cenas de Time Without Pity,
o que retemos? Uma luz vibrante e áspera, que incide sobre a pele e é por esta
rebatida, de tal forma que o que vemos é algo como a energia refratada de cada
corpo e cada objeto, sua equivalência em peso, seu prenúncio, sua força em
densidade; alguns gestos que, sem qualquer mediação ou concessão, parecem
eclodir diretamente de uma agitação do espírito, de uma ameaça que a partir de
certo instante o corpo não será mais capaz de conter em si. Do momento em que
tais gestos são iminentes ao instante em que se revelam até alcançarem um
estado ideal de lenta redução, testemunhamos algo como a diminuição de toda a
intensidade e toda a pressão que cercam a gestão desta matéria, portanto seu
equilíbrio e sua conquista, aquilo que freqüentemente é chamado (e, também
freqüentemente, empregado para descrever justamente os exemplos mais
inadequados, os filmes evidentemente mais incapazes de sustentar ou conduzir
matéria tão delicada, os de Malick, Shyamalan ou Van Sant) de rarefação por
alguns.
O que nos interessa neste texto são outras coisas, porém. A lucidez, por
exemplo. A racionalidade também. Uma racionalidade que quando extrapola nos
emociona, e quando a razão é capaz de detectar algo assim belo choramos; uma
racionalidade que encontramos plenamente em The
Boy with Green Hair, The Lawless e Time Without Pity, em alguns
momentos de Encontro com a Morte e The Criminal, de The Gipsy and the Gentleman e King & Country, e até mesmo em Don
Giovanni e O Mensageiro. Numa
série de filmes notáveis cuja singularidade ainda não cessou de gerar
mal-entendidos, Losey foi capaz de inscrever logicamente seu experimento
inédito, o sobressalto grandioso e trepidante antecipando aquilo que seria, em
um termo, o método de uma ambição e a concretização deste método, isto é: uma
arte, a da dramaturgia cênica.
Entendemos por dramaturgia cênica não a dramaturgia que é refém da matéria, seu
objeto ou mesmo sua substância, mas que em si e por si é a própria matéria, sua condição e sua exigência, aquilo que
Serguine chama de “nudez” e define como “uma seqüência de gestos contendo cada
um a totalidade de um homem”, que Mourlet chama de “transparência” e descreve
como “a presença do mundo, o peso do ambiente sobre o centro da cena, pela
utilização dos ruídos, das luzes, pela identificação do cenário ao drama e do
drama ao cenário”. Essa matéria – já decantada de seus elementos volúveis, o
incômodo de uma superfície desigual substituído pela coerência de um olhar
impassível do mundo sobre si mesmo –, onde encontrá-la? Algumas sugestões.
O sol, ardente e imenso, seus raios “se prolongando e vibrando indefinidamente
no espaço”; um avião pousando sobre uma pista, freando violentamente ao mesmo
tempo em que avança ferozmente; Michael Redgrave descendo deste avião, os
passos desmedidos, a instabilidade e a força que traz consigo um acúmulo da
energia que tudo ilumina do início de Time
Without Pity ao seu final, onde vemos Leo McKern jogando o conteúdo de uma
garrafa de Whisky sobre o chão de seu escritório, braços estendidos e uma
euforia monstruosa, os últimos instantes do êxito que conclama e os primeiros
de uma derrota que não antecipa; ou ainda Bruno Cremer, o olhar abissal e a
expressão solene que lhe tomam o rosto ao descobrir que a filha sabe que é um
assassino, o olhar de Caim, em Un jeu
brutal (Jean-Claude Brisseau, 1983); Woody Harrelson reunido à sua família,
debaixo da chuva que cai sobre seu rosto e o sol que ilumina seu sorriso, em The Sunchaser (Michael Cimino, 1996).
Fim
Podemos agora proceder com a pergunta que iniciava o tópico anterior: afinal, o
que vemos? O que é espantoso, o que
desorienta, é a franqueza luminosa que Losey dedica às circunstâncias mais
irremediáveis, aquelas em que a realidade de uma situação não acaba traída pelo
seu resultado no mundo material mas pelo contrário, se vê prolongada e mesmo
protegida por uma compreensão aguda do real,
a verdade irrecusável dos seres e das coisas, de cada ser e de cada coisa. É isto a dramaturgia cênica, não pode
ser outra coisa: o privilégio e a conquista do mundo por um intelecto capaz de
nos conduzir naturalmente à emoção.
Bruno Andrade
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