Don Hertzfeldt é um artista da
observação como há muito não se via. Crítico feroz da normatização (seja ela de
qual natureza), poeta singelo do cotidiano, filósofo elaborado da condição
humana. De forma geral, podemos dizer que, hoje, a arte da observação no cinema
tem sido mais e mais confundida com contemplação desafetada, ou registro
inerte, com o objetivo de expor a complexidade impenetrável da existência, ou
de existências em particular. Mas este exercício supremo do não-julgamento não
raro se transforma numa afirmação de não-posicionamento, num atestado de
impossibilidade de estabelecer grandes assertivas.
No entanto, na modesta e
avassaladora obra deste jovem animador americano, a sutileza do olhar encontra
uma anarquia virulenta, que não hesita em apresentar elaboradas proposições
discursivas e explodir a forma usual da técnica. Através da exposição de
situações e da investigação de causas e conseqüências, Hertzfedlt propõe em
seus filmes uma espécie de “laboratório humano” no qual todas as experiências
destilam sentidos perplexos para práticas sociais ocidentais. De forma ampla, o
que está em questão para ele é sempre o risco de aniquilação da liberdade por
intrincados conjuntos invisíveis de regras que pautam absolutamente tudo o que
fazemos.
Em seus primeiros filmes, estas
regras (ou normas) constituíam a temática em si. Assim sendo, em Ah, l’amour (1995), uma linha expositiva encontra uma enunciação fechada, quando – após
vermos o personagem tentar flertar repetidas vezes com meninas diferentes
utilizando-se de investidas gentis e sempre recebendo doses inacreditáveis de
agressão – a frase “eu tenho dinheiro” é respondida com um “eu te amo”. Um
funcionamento social profundo – embora no mais das vezes oculto – é exposto
nesta série de esquetes que constituem uma autêntica progressão de argumentação-desenvolvimento-conclusão.
E a conjetura torna-se ainda mais contundente quando se observa que, em
determinada cena, o personagem passa por uma menina gordinha e, diferentemente
de como age com todas as outras que encontra, a ignora.
Este campo “de testes” observado em Ah,
l’amour retorna em Genre (1996), com maior destaque para o lado
anedótico-satírico. Um coelho na página branca de desenho de um animador é
submetido aos gêneros cinematográficos mais diversos, sendo obrigado a reagir
de acordo, não importando sua disposição para tal. Enquadrado, formatado, ele
sofre a cada vez, terminando por confrontar seu criador com uma plaquinha
sugerindo um novo “gênero”: “o filme pretensioso de estudante” (assim como Ah
l’amour, Genre foi realizado por Hertzfeldt durante a faculdade de
cinema). A pressão da normatização paira sobre o indivíduo e sobre a forma
cinematográfica; assim como em Lily and Jim (1997), em que o modelo
americano de consultório sentimental televisivo expõe as angústias de Lily e de
Jim, casal que se conhece num encontro marcado às cegas e que, apesar de terem
gostado um do outro, sucumbem a diversos constrangimentos, originados pela
sombra projetada pelos padrões de comportamento na espontaneidade dos gestos de
cada um.
Os curtas seguintes do realizador radicalizam
esta afronta a um modelo prévio de relacionamento das pessoas com o mundo e às
expectativas do espectador quanto ao desenvolvimento de um filme. Em Billy’s
Balloon (1998), espécie de releitura paródica de Le Ballon rouge, de
Albert Lamorisse, um balão vermelho com vida própria se apodera de seu pequeno
dono e decide brincar com ele de forma sádica, torturando-o. O tempo das ações
e o ritmo dos cortes impõem um impressionante desconforto e potencializam a
brutalidade da ação. Controlando com precisão estupefante a relação entre
quadro e narrativa, Hertzfeldt destrói um ideal de universo infantil inocente e
põe em evidência uma violência banal de forma inaudita. Se estamos acostumados
a ver cartoons nos quais a intensidade de ações violentas é diluída na
aceleração das formas, como em Pica-Pau ou Tom & Jerry, nunca
havíamos visto um desenho estabelecer uma placidez absoluta para transmitir tal
peso.
Já em Rejected (2000), o
desvio da norma provoca um desmantelamento progressivo de tudo o que está “de
pé”, um desmoronamento da própria “realidade”, em determinada instância. A
longa série de vinhetas para um canal familiar qualquer e filmetes
publicitários, que teriam sido rejeitados pelas instâncias que os encomendaram,
instala um estado de nonsense progressivo, que passa de uma crítica aos
modelos idiotizantes, limitadores e preconceituosos usualmente empregados
nestes formatos audiovisuais, ao puro descontrole da perda total de parâmetros,
fazendo uma muito bem estudada sátira descambar para um despropósito que põe em
risco a própria existência de tudo que está em cena. A falta de sentido das esquetes
termina por provocar um caos formal, como uma hecatombe, que faz o universo se
desregular e explodir. Procurando um lugar seguro, fugindo do desgoverno de seu
criador, os personagens tentam escapar da destruição de seu próprio suporte: o
papel em que estão desenhados, que se amassa e ameaça engoli-los.
Esta dimensão cósmica se acentua em
seus dois filmes seguintes, The Meaning of Life (2005) e Everything
Will Be Ok (2006), grande obra-prima. No primeiro, o impulso da observação,
exacerbado ao ponto do minimalismo narrativo, coloca homens circulando pela
Terra, lado-a-lado com outros seres habitando outros planetas, e com o cosmos
repleto de astros. As inúmeras enunciações que ouvimos de infinitos passantes –
que vão desde frases triviais até grandes constatações – se contrapõem aos
grunhidos indiscerníveis dos seres desconhecidos de galáxias longínquas.
Assombrados pela finitude, como o filme ilustra, vivemos como eles, perdidos em
questionamentos essenciais fadados à ausência de respostas e pequenas grandes
preocupações cotidianas.
Preocupações que tomam dimensões
existenciais insustentáveis para Bill em Everything Will Be Ok. Tragando
a narração descritiva para o interior de sua percepção paranóica e degenerativa
do mundo exterior, Bill, à medida que mergulha num descolamento completo da
realidade, põe em crise as vivências mais simples possíveis. O mundo inteiro em
seu entorno parece sofrer de deslizamento de sentido. Como indivíduo, Bill não
pertence à massa de anônimos de The Meaning of Life. Suas observações não
definem um ponto de vista ou posicionamento no mundo, elas formam uma espiral
alucinada rumo a um esfacelamento da existência. Bill é o dentro e o fora, é a
impossível conciliação entre a distância crítica e a imersão na própria vida. A
“observação” levada ao seu paroxismo.
Com uma acuidade impressionante,
Hertzfeldt traduz sutilezas de posturas e gestos em seu traço
ultra-simplificado, confiando ao som um papel fundamental: o de conferir
densidade aos desenhos bidimensionais, realidade a uma estilização completa do
mundo. Em paralelo, utiliza-se de imagens filmadas justapostas aos desenhos e a
efeitos luminosos, criando uma visualidade multi-facetada absolutamente
estonteante. Esta recusa de se limitar a um plano – o abstrato de desenhos
filmados quadro-a-quadro –, presente em todos os seus filmes, à exceção de Lily
and Jim e Billy’s Balloon, impõe necessariamente a impossibilidade
de se circunscrever a qualquer parâmetro limitador. Embalado por uma noção indisfarçável
de tragédia, seus pequenos teatros humanos expõem sempre seres submetidos a uma
vontade maior que os ultrapassa, seja a do simples destino, seja a de um mastermind,
como em Genre e Rejected. De uma forma ou de outra, eles
encontram-se encerrados, represados. E quando a virulência de uma desordem
irrefreável irrompe, o mundo entra em completo desequilíbrio e combustão. E a
perplexidade que registra esse processo é a que está na origem do nome de sua
empresa, que empresta uma denominação curiosa a seus filmes: “bitter films”.
Amargos, melancólicos, mas também hilários, estes curtas-metragens constituem
uma obra em completa ebulição criativa e inquietude de espírito. E o melhor:
ele está apenas começando.
Tatiana Monassa
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