CARTA DE NOVA YORK #2

Quando Peter Hutton tinha 18 anos, ele se alistou na marinha mercante. Gastou 10 anos viajando por águas internacionais, uma experiência monástica que dá forma a cada frame de seus meditativos filmes experimentais. Com 16 anos, Steven Spielberg já tinha realizado um filme sci-fi de 140 minutos intitulado Firelight. Num debate que deu o pontapé inicial da maravilhosa retrospectiva de Hutton que aconteceu recentemente no Museu de Arte Moderna de NY, o diretor citou os irmãos Lumière como seu modelo. Se alguém traçasse as origens das fagulhas do gênero fantástico que alimentaram a caixa de brinquedos sempre em expansão de Spielberg, elas iriam inevitavelmente acabar aos pés de Georges Méliès, o grande fabulista do cinema em suas origens. E então, a partir dessa admitidamente seletiva comparação, no mês passado Nova York apresentou a antinomia central do cinema em telas rivais: as calmas paisagens realistas de Hutton, e a extravagante trucaria de Indiana Jones e o Reino da Caveira de Cristal. Ambos os cineastas são mestres em seus respectivos terrenos, e se os filmes de Hutton me deram mais prazer, suponho que tenha sido uma questão de temperamento. Ou de ponto de vista.

Os filmes de Hutton são simples. Ele escolhe uma locação, seja o Hudson River (Study of a River [1994-1995]) ou o litoral Islandês (Skagafjordur [2002-2004]), e compõe um estudo da área em planos estáticos, silenciosos e geralmente em 16mm P&B. Como os Lumière, ele apenas põe a câmera e filma, e seu senso de composição é tão acurado quanto o deles. Suas paisagens são imponentes e assustadoramente desabitadas, carecendo de qualquer figura facilmente identificável, enquanto seus panos de fundo (montanhas, topos de árvores, arranha-céus) comportam ermos primeiros planos (ovelhas, rios, humanos). Seus New York Portraits (1978-1990) são cenas de pós-ação, cômodos vazios, esquinas, motéis baratos. As pessoas mostradas fugindo de uma acelerada tempestade de neve são espectros, não personagens encorpados. Como P. Adams Sitney escreveu num recente artigo na Artforum, há um insistente sentido de solidão em seus filmes, porque cada plano reflete claramente seu realizador e o tempo que ele suportou para capturar cada conjunto especial de circunstâncias. Esses não são filmes para se envolver emocionalmente, mas para se deixar absorver.

Cada plano é uma entidade discreta, e Hutton as separa com ponta preta na montagem. É um cinema de radical liberdade para o espectador – permitindo-nos construir narrativas, dissecar composições, ou se distrair pensando num time de baseball fictício. Acabei escolhendo o caminho do meio, tentando adivinhar quando Hutton escolheria terminar cada plano, procurando simetrias escondidas na imagem (será que ele vai cortar quando o último vagão de trem passar no fora-de-quadro?, quando a proa do navio estiver centrada entre duas montanhas?). É uma conversa sem fim entre realizador e espectador, mas Hutton ainda encontra tempo para alguns choques visuais, especialmente em seu ótimo Time and Tide (1998-2000), que detalha as viagens de navios quebradores de gelo no Hudson. Numa seqüência de tirar o fôlego, Hutton simplesmente filma, em cores, a superfície de gelo branca ao lado de um navio, até a terra lentamente se rachar e revelar o escuro vazio sob dela. É aquele raro exemplo em seus filmes em que ele manipula o olhar do espectador, puxando o tapete da expectativa de apenas mais uma bela paisagem de gelo num filme repleto delas.

Spielberg, é claro, cunha seu cinema a partir de tais manipulações, e Indiana Jones e o Reino da Caveira de Cristal o apanha orquestrando mais uma impressionante máquina de satisfazer a platéia. 18 anos depois de Indiana Jones e a Última Cruzada, e 7 anos depois de sua guinada para materiais de temática mais obscura (começando com o ainda gravemente subestimado AI, de 2001), Caveira de Cristal prova que ele ainda pode convocar o garoto de 16 anos que vive dentro dele quando a bilheteria pede. Harrison Ford se esforça para fingir interesse, mas o resultado é mínimo, enquanto a brisa está nas indiscretamente imaginativas seqüências de perseguição, nas caricatas personagens de Cate Blanchett e John Hurt, e no roteiro de nível sub-pulp que vai do non-sense ao território vagabundo de Vincent Price depois que o crânio de acrílico inanimado deixa Indy hipnotizado. Enquanto fonte de grossos lucros para Hollywood, é bem manufaturado e bastante divertido. Até mesmo Méliès iria ruborizar com a pura artificialidade de algumas das seqüências de ação, que incluem algumas esgrimas sobre jipes do exército e uma viagem de cipó estilo Tarzan de um personagem que encarna um Brando da era O Selvagem. Com sua bilheteria monstruosa ao longo do feriado, e a retrospectiva de Hutton longe do bafafá, está claro que Méliès continua detentor do cinturão de campeão de sua longa batalha do século, com Lumière levando o prêmio da crítica, ao menos por enquanto.


R. Emmet Sweeney

(Junho de 2008)