três mulheres e a densidade impossível
Three Women, Robert Altman, EUA, 1977

Lançado em 1977, durante o período de contrato de Altman com a Fox para a realização de cinco filmes, Três Mulheres é freqüentemente citado como uma incursão feita pelo cineasta americano no universo de Bergman, de franca inspiração em Persona. Tal definição, entretanto, seguindo a uma visão atenta do filme, se apresenta um tanto quanto reducionista. Altman já havia visitado o terreno do drama psicológico cinco anos antes com Imagens, mas os resultados deixaram bastante a desejar. Imagens acaba sendo uma repetição confusa de clichês de cinema de arte. Algo como se Altman tivesse embarcado na onda equivocada que, para se legitimar como artista, seria necessário filmar à moda européia.

Não há como negar que existe fortemente em Três Mulheres a influência da matriz Bergman/Persona, mas o que Altman, agora mais seguro e amadurecido, vem a operar é não mais uma tentativa de macaquear uma fórmula, mais sim a inserção desses códigos num universo que domina como poucos: o da cultura e sociedade americanas. Assim, o preto-e-branco sombrio usado por Sven Nykvist na fotografia de Persona torna-se um colorido destacadamente vivo que reflete uma Califórnia ensolarada e desértica. E a rigidez da câmera e dos enquadramentos bergmanianos se transfigura com Altman num impressionante fluxo de imagens caracterizando uma inconstante fluidez nos movimentos e enquadramentos que inundam a tela em cinemascope.

Essa fluidez se faz presente desde as primeiras cenas, com imagens de água circulando pelas várias piscinas que pontuam a narrativa e pelos movimentos dos corpos envelhecidos e desajeitados que se banham no spa onde vão se encontrar as protagonistas vividas por Shelley Duvall e Sissy Spacek. Fluxo este também que irá se refletir na transposição gradativa de um certo – porém, a seu modo, bastante estranho – realismo, aparente nos momentos iniciais, para um clima de sonho para onde o filme literalmente deságua em sua conclusão.

Falando em sonhos, Robert Altman sempre fez questão de declarar que Três Mulheres foi um projeto que lhe surgiu a partir de um sonho. Se a inserção de elementos oníricos em uma narrativa cinematográfica pode surgir como pretexto para qualquer tipo de liberdade por parte do cineasta, nesse caso específico Altman não faz a utilização desse recurso de forma frouxa ou aleatória. Apesar de uma aparente confusão, Três Mulheres é um filme onde tudo é absolutamente planejado, mesmo que esse não seja passível de uma leitura única ou fechada. Forma-se um leque, mas Altman exerce pleno controle sobre as possibilidades de como abrir, fechar e movimentar esse leque.

A partir de um primeiro olhar, vemos em Três Mulheres a temática arquetípica de personalidades que ao mesmo tempo se fundem e se dividem. Pinky Rose (Spacek) chega do interior e vai trabalhar em um centro de hidroterapia juntamente a Mildred Lamorreaux (Duvall). As duas passam a dividir um apartamento e Pinky passa a se inserir gradativamente no universo de sua companheira. Após uma tentativa de suicídio e um coma, Pinky absorve de vez a personalidade da outra. As mudanças na narrativa e nas atitudes das personagens são pontuadas por um casal, proprietário de um bar temático e do condomínio onde elas residem: a silenciosa Willie Hart, a 3ª mulher, sempre pintando figuras femininas assustadoras e primitivas e seu marido Edgar. Willie e Edgar funcionam, respectivamente, como pontos de coesão e fissura entre a dupla de protagonistas, até a seqüência final onde Pinky-Millie-Willie passam a configurar um eixo ao mesmo tempo uno e tripartido, destacado a partir do momento em que se torna clara a saída de cena da figura de Edgar.

Visto assim, teríamos mais um filme alegórico redundante. O que torna Três Mulheres uma obra ímpar é justamente seu posicionamento dentro do universo da cultura americana imposto por Robert Altman, que não esconde imprimir em seu trabalho um tom jocoso e até mesmo muitas vezes debochado. Partindo da caracterização das personagens, sendo Pinky introduzida como uma criança grande, praticamente uma retardada, ao ponto em que Mildred é uma abobalhada “sem-noção”, que tenta exalar simpatia enquanto é rejeitada por todos que a cercam. Já temos aqui uma franca inversão do universo Bergman/Persona onde a atriz que cessa sua comunicação com o mundo e sua ardilosa enfermeira são substituídas por uma dupla de patetas e jecas que desconhecem a forma correta de se consumir anticoncepcionais.

Com suas personagens, Altman não desperdiça aqui oportunidades de criticar uma América cafona e consumista como fizera pela maior parte de sua obra. Em especial a partir da impagável Mildred, que guia sua conduta por fórmulas propagadas por revistas de comportamento e receita, ignorando – ou ao menos fingindo ignorar – o seu próprio ridículo, fantasiando jantares, encontros e relações que jamais se concretizam. Essa sátira a um consumismo tolo e superficial tem seu momento mais expressivo quando Millie prepara um jantar festivo de pratos grotescos, numa junk-food das mais indigestas e um clima radicalmente “anti-gourmet”. Por sinal, as protagonistas são oriundas do Texas, estado que muito bem poderia ser o berço de toda a breguice norte-americana, também resumidas no bar temático de faroeste de propriedade de Edgar e Willie para onde a ação converge e tem sua conclusão.

Três Mulheres é um filme que Robert Altman não tem vergonha em impregnar dos signos mais óbvios e descarados. Temos as cores que dominam vestuário e indumentária das protagonistas: amarelo para Mildred e, obviamente, um rosa para Pinky, que se torna mais óbvio ainda quando ele se transmuta de um rosa-bebê para um rosa-brilhante acompanhando a transformação de sua personalidade. Outra repetição constante é a de imagens duplas, em especial a das gêmeas que trabalham no spa. Igualmente descarada é também a forma em que a maioria dos homens que aparecem no filme é apresentada dentro dos mais evidentes clichês de masculinidade perpetuados pelo cinema americano: caubóis, policiais e motoqueiros. E o que dizer quanto ao sonho de Pinky próximo ao final em que as imagens se ligam através de uma espécie de cordão umbilical que irá reaparecer no momento que antecede a seqüência final? Ou mais ainda das pinturas grotescas de Willie, síntese de um exagero kitsch?

Todos esses elementos: inversão de universos e características das personagens do modelo bergmaniano, repetição de signos óbvios e tolos, crítica aos elementos da sociedade americana, direcionam a uma convergência na qual Três Mulheres acaba por se impor como uma paródia, um filme onde Altman exerce uma iconoclastia tão corrosiva como em M.A.S.H. . Um filme que não deve ser levado completamente a sério. Não um drama alegórico a seu modo bergmaniano, mas sim uma comédia na qual Altman acaba refletindo sobre a impossibilidade desse tipo de cinema dramática e psicologicamente denso, característico de uma Europa fria e racional, no âmago de uma América solar, bitolada, consumista e cafona. Ao contrário do muito que se disse, em Três Mulheres Robert Altman foi essencialmente um anti-Bergman.

Gilberto Silva Jr.