La frontière de
l’aube, Philippe Garrel, França/Itália, 2008
(COMPETIÇÃO)
Palermo Shooting, Wim
Wenders, Alemanha, 2008
(COMPETIÇÃO)
Chelsea on the
Rocks, Abel Ferrara, EUA, 2008
(SESSÃO ESPECIAL)
La frontière de l’aube é,
como era de se esperar, um desdobramento a mais do universo garreliano. A
magnífica fotografia em P&B de William Lubtchansky, cujo altíssimo
contraste opõe o preto e o branco (a ausência e a presença absoluta da cor)
como se buscasse fixar a essência que paira na superfície dos corpos ou a aura
que a fotografia “sugaria” dos seres, de acordo com as crenças dos antigos, a
serviço de uma história de amores “revolucionários” – porque desesperados,
intensos e utópicos. No campo do emocional, um desolamento sem fim, um sentido
de frustração inescapável, de impotência de realização plena, que impregna
mesmo as cenas de amor mais doces.
Bom, a mim, que não consigo experimentar mais do que um respeito distanciado
pelo trabalho do diretor, me parece que esta iluminação quase sobrenatural que
a fotografia imprime à vida dos personagens corrobora para assolar sua
existência, que pesa mais do que os seus corpos podem suportar, sob a égide de
um conto de fadas trágico e desesperançado. No jogo entre materialidade
(“estudos” sobre a impressão da luz na película, corpos que se impõe no quadro
e no espaço cinematográficos) e imaterialidade (sonhos projetados desde sempre
numa virtualidade, premência do risco do desaparecimento do corpo), Garrel
estaria afirmando uma desilusão na fronteira do aceitável para que a vida
continue.
Não compreendo a aplicação constante
por vários colegas do termo “filme francês”, um tanto freqüente por aqui, a
filmes como Un Conte de Noël e De la guerre, por exemplo, e não a La frontière de l’aube. O termo designaria num tom um quê pejorativo um
filme permeado de referências e gerado por uma determinada concepção de mundo
oriunda de uma intelectualidade esquerdista que sobrevive hoje no seio de uma
burguesia razoavelmente abastada e afetada por estado de desolação sem nome. Considerando-se
que esta é uma tradição verificável, não vejo por que ela deveria ser
negativada a priori. Acredito que o fato de, em tese, Desplechin e Bonello
fazerem parte dela apenas intensificaria o possível diálogo de seus filmes com
determinado corpo da cinematografia francesa, pois não acho que em nenhum
momento esta caracterização se sobreponha a ou ofusque suas proposições
artísticas e discursivas, destinadas diretamente ao contemporâneo. Já no caso
de Garrel, a quem todos parecem reservar um espaço clivado do restante da
produção cinematográfica – seja a de hoje, seja aquela da época em que ele
despontou – , não apenas acredito que o termo se aplicaria perfeitamente, como
denotaria um primado desta visão de mundo – no caso dele, de colorido um tanto
anacrônico, convenhamos – sobre qualquer outra força própria ao filme.
***
Em oposição à aura que emana das
imagens de La frontière de l’aube, concedendo ao filme um aspecto
misterioso, a obviedade da representação banal presente na imagem “perfeita”, impecavelmente
ilustrativa e a serviço de um discurso explicitado ao ponto do ridículo de Palermo
Shooting. Alvo privilegiado de zombaria geral em Cannes, o filme de Wim
Wenders é impressionantemente “fácil” e assustadoramente retrógrado. Um
fotógrafo e professor de fotografia canastrão e moderninho grita aos quatro
ventos a artificialidade e a manipulação da composição fotográfica. Fazendo o
elogio da superfície mais do que tudo, ele realiza ensaios fotográficos super-produzidos
e se locomove pela cidade ao som altíssimo do seu MP3 player, enquanto dispara
o obturador de sua máquina digital não-sei-quantas-vezes por minuto – para depois
manipular, é claro, as escolhidas no Photoshop.
Mas como aquela tal “essência” (ou “mistério”,
simplesmente) teima em se fazer perceber em meio à planificação generalizada do
olhar, o personagem passa a ser assolado por uma entidade maléfica em seus
sonhos e, em seguida, na vida real. E esta entidade, meio Morte, meio anjo da
revelação, afirma ser na realidade um “enviado”, vindo para recolocar as coisas
nos eixos e garantir que a sublime relação entre ato fotográfico e vida não
caia em extinção com o uso desenfreado das novas tecnologias que promovem a
proliferação de imagens sem alma diante de nossos olhos. Sim, este moralismo ingênuo
é a principal articulação do filme, seu motivo máximo de existir. E ele vem
embalado não apenas pela narrativa mais piegas e cafona vista no cinema nos
últimos tempos, como por uma imagem aparentada de toda a produção visada pela
crítica proposta (publicidade, videoclipes, fotografia de moda). Ora, Wim
Wenders não apenas entra em contradição como demonstra ignorar que fazer uma
imagem, mesmo que seja para detratá-la, é, ainda assim, fazer uma imagem, realizar
um statement diante do mundo.
A jornada redentora de Palermo
Shooting é risível em absolutamente todos os seus aspectos. Tanto na
estratégia de impressionar pela grandiloqüência (efeitos especiais, música
modernosa altíssima na banda sonora, cores fortes e saturadas, brilho e
contraste elevados), quanto na de emocionar pela “sutileza” (os diálogos
afinados com uma “ingenuidade” perdida, a sensibilidade para captar espaços e
momentos em sua singularidade reativada, o relacionamento amoroso renovador),
ou de tocar pela relevância e atualidade do discurso. Ler nos créditos “dedicado
a Ingmar e Michelangelo” só deixa a coisa ainda mais patética, e vexaminosa para
alguém que já foi um dia parte importante do circuito do cinema mundial.
***
Mas felizmente havia Abel Ferrara
para nos redimir do moralismo de Wenders. Chelsea on the Rocks é um
grande libelo à liberdade – de existir, de fazer imagens, de agir no mundo por
meio do cinema. A idéia de renascimento, de passar por um processo de renovação,
também está presente, mas num sentido totalmente oposto: renascer não é entrar
nos bons parâmetros da vida, é se permitir perder todos os parâmetros, flertar
com o desconhecido, com o proibido, com um prazer qualquer. E isto está não
apenas nas histórias e lendas que Ferrara escuta apaixonadamente de seus
entrevistados, ou na forma como ele capta o espírito que tradicionalmente
caracterizava o Chelsea Hotel, como na própria condução do filme, que alterna
indistintamente entre entrevistas investigativas, imagens observacionais,
reconstituições dramatizadas, abstrações diversas e imagens de arquivo, se
deixando levar por uma trilha sonora de efeito hipnotizante.
Dizer que Chelsea on the Rocks é um bom documentário ou, ainda, que é fiel em retratar seu objeto, seria uma
grande injustiça com a magnitude desta modesta obra. Ferrara não apenas realizou
um filme que resume seu universo, como o propulsiona ao encontro do mundo.
Assistir a Chelsea é se sentir jogado naquele planeta à parte, estrangeirado
e acolhido ao mesmo tempo. E ser instigado à ação – ainda que a História já
tenha passado por cima de tudo, que não seja mais possível reverter a
destruição operada e que o espírito que animava o hotel já tenha se dissipado à
luz dos novos tempos, restando apenas a perplexidade e a tristeza. O consolo,
sem dúvida, é que existe um filme; este filme. Que existe um olhar carinhoso
para com a multiplicidade de formas de viver que aquele espaço encerrava, um olhar
que podemos compartilhar enquanto Chelsea on the Rocks puder circular
por aí.
***
Encerro tardiamente minha cobertura
aqui. As mostras Semana da Crítica, Quinzaine de Réalisateurs e Un Certain Regard
estão sendo reprisadas aqui em Paris. Talvez um ou outro filme merecesse ser
checado e receber algumas palavras nesta rebarba de cobertura. Mas, por hora,
acho que devo aguardar que sejam exibidos no Festival do Rio ou Mostra de São
Paulo...
Tatiana Monassa
|