61º FESTIVAL DE CANNES
Cobertura Diária

La frontière de l’aube, Philippe Garrel, França/Itália, 2008
(COMPETIÇÃO)
Palermo Shooting, Wim Wenders, Alemanha, 2008
(COMPETIÇÃO)
Chelsea on the Rocks, Abel Ferrara, EUA, 2008
(SESSÃO ESPECIAL)


La frontière de l’aube
é, como era de se esperar, um desdobramento a mais do universo garreliano. A magnífica fotografia em P&B de William Lubtchansky, cujo altíssimo contraste opõe o preto e o branco (a ausência e a presença absoluta da cor) como se buscasse fixar a essência que paira na superfície dos corpos ou a aura que a fotografia “sugaria” dos seres, de acordo com as crenças dos antigos, a serviço de uma história de amores “revolucionários” – porque desesperados, intensos e utópicos. No campo do emocional, um desolamento sem fim, um sentido de frustração inescapável, de impotência de realização plena, que impregna mesmo as cenas de amor mais doces.

Bom, a mim, que não consigo experimentar mais do que um respeito distanciado pelo trabalho do diretor, me parece que esta iluminação quase sobrenatural que a fotografia imprime à vida dos personagens corrobora para assolar sua existência, que pesa mais do que os seus corpos podem suportar, sob a égide de um conto de fadas trágico e desesperançado. No jogo entre materialidade (“estudos” sobre a impressão da luz na película, corpos que se impõe no quadro e no espaço cinematográficos) e imaterialidade (sonhos projetados desde sempre numa virtualidade, premência do risco do desaparecimento do corpo), Garrel estaria afirmando uma desilusão na fronteira do aceitável para que a vida continue.

Não compreendo a aplicação constante por vários colegas do termo “filme francês”, um tanto freqüente por aqui, a filmes como Un Conte de Noël e De la guerre, por exemplo, e não a La frontière de l’aube.  O termo designaria num tom um quê pejorativo um filme permeado de referências e gerado por uma determinada concepção de mundo oriunda de uma intelectualidade esquerdista que sobrevive hoje no seio de uma burguesia razoavelmente abastada e afetada por estado de desolação sem nome. Considerando-se que esta é uma tradição verificável, não vejo por que ela deveria ser negativada a priori. Acredito que o fato de, em tese, Desplechin e Bonello fazerem parte dela apenas intensificaria o possível diálogo de seus filmes com determinado corpo da cinematografia francesa, pois não acho que em nenhum momento esta caracterização se sobreponha a ou ofusque suas proposições artísticas e discursivas, destinadas diretamente ao contemporâneo. Já no caso de Garrel, a quem todos parecem reservar um espaço clivado do restante da produção cinematográfica – seja a de hoje, seja aquela da época em que ele despontou – , não apenas acredito que o termo se aplicaria perfeitamente, como denotaria um primado desta visão de mundo – no caso dele, de colorido um tanto anacrônico, convenhamos –  sobre qualquer outra força própria ao filme.

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Em oposição à aura que emana das imagens de La frontière de l’aube, concedendo ao filme um aspecto misterioso, a obviedade da representação banal presente na imagem “perfeita”, impecavelmente ilustrativa e a serviço de um discurso explicitado ao ponto do ridículo de Palermo Shooting. Alvo privilegiado de zombaria geral em Cannes, o filme de Wim Wenders é impressionantemente “fácil” e assustadoramente retrógrado. Um fotógrafo e professor de fotografia canastrão e moderninho grita aos quatro ventos a artificialidade e a manipulação da composição fotográfica. Fazendo o elogio da superfície mais do que tudo, ele realiza ensaios fotográficos super-produzidos e se locomove pela cidade ao som altíssimo do seu MP3 player, enquanto dispara o obturador de sua máquina digital não-sei-quantas-vezes por minuto – para depois manipular, é claro, as escolhidas no Photoshop.

Mas como aquela tal “essência” (ou “mistério”, simplesmente) teima em se fazer perceber em meio à planificação generalizada do olhar, o personagem passa a ser assolado por uma entidade maléfica em seus sonhos e, em seguida, na vida real. E esta entidade, meio Morte, meio anjo da revelação, afirma ser na realidade um “enviado”, vindo para recolocar as coisas nos eixos e garantir que a sublime relação entre ato fotográfico e vida não caia em extinção com o uso desenfreado das novas tecnologias que promovem a proliferação de imagens sem alma diante de nossos olhos. Sim, este moralismo ingênuo é a principal articulação do filme, seu motivo máximo de existir. E ele vem embalado não apenas pela narrativa mais piegas e cafona vista no cinema nos últimos tempos, como por uma imagem aparentada de toda a produção visada pela crítica proposta (publicidade, videoclipes, fotografia de moda). Ora, Wim Wenders não apenas entra em contradição como demonstra ignorar que fazer uma imagem, mesmo que seja para detratá-la, é, ainda assim, fazer uma imagem, realizar um statement diante do mundo.

A jornada redentora de Palermo Shooting é risível em absolutamente todos os seus aspectos. Tanto na estratégia de impressionar pela grandiloqüência (efeitos especiais, música modernosa altíssima na banda sonora, cores fortes e saturadas, brilho e contraste elevados), quanto na de emocionar pela “sutileza” (os diálogos afinados com uma “ingenuidade” perdida, a sensibilidade para captar espaços e momentos em sua singularidade reativada, o relacionamento amoroso renovador), ou de tocar pela relevância e atualidade do discurso. Ler nos créditos “dedicado a Ingmar e Michelangelo” só deixa a coisa ainda mais patética, e vexaminosa para alguém que já foi um dia parte importante do circuito do cinema mundial.

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Mas felizmente havia Abel Ferrara para nos redimir do moralismo de Wenders. Chelsea on the Rocks é um grande libelo à liberdade – de existir, de fazer imagens, de agir no mundo por meio do cinema. A idéia de renascimento, de passar por um processo de renovação, também está presente, mas num sentido totalmente oposto: renascer não é entrar nos bons parâmetros da vida, é se permitir perder todos os parâmetros, flertar com o desconhecido, com o proibido, com um prazer qualquer. E isto está não apenas nas histórias e lendas que Ferrara escuta apaixonadamente de seus entrevistados, ou na forma como ele capta o espírito que tradicionalmente caracterizava o Chelsea Hotel, como na própria condução do filme, que alterna indistintamente entre entrevistas investigativas, imagens observacionais, reconstituições dramatizadas, abstrações diversas e imagens de arquivo, se deixando levar por uma trilha sonora de efeito hipnotizante.

Dizer que Chelsea on the Rocks é um bom documentário ou, ainda, que é fiel em retratar seu objeto, seria uma grande injustiça com a magnitude desta modesta obra. Ferrara não apenas realizou um filme que resume seu universo, como o propulsiona ao encontro do mundo. Assistir a Chelsea é se sentir jogado naquele planeta à parte, estrangeirado e acolhido ao mesmo tempo. E ser instigado à ação – ainda que a História já tenha passado por cima de tudo, que não seja mais possível reverter a destruição operada e que o espírito que animava o hotel já tenha se dissipado à luz dos novos tempos, restando apenas a perplexidade e a tristeza. O consolo, sem dúvida, é que existe um filme; este filme. Que existe um olhar carinhoso para com a multiplicidade de formas de viver que aquele espaço encerrava, um olhar que podemos compartilhar enquanto Chelsea on the Rocks puder circular por aí.

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Encerro tardiamente minha cobertura aqui. As mostras Semana da Crítica, Quinzaine de Réalisateurs e Un Certain Regard estão sendo reprisadas aqui em Paris. Talvez um ou outro filme merecesse ser checado e receber algumas palavras nesta rebarba de cobertura. Mas, por hora, acho que devo aguardar que sejam exibidos no Festival do Rio ou Mostra de São Paulo...


Tatiana Monassa