Ao contrário do cinema pregresso
de David Fincher, repleto de exageros e intensidades
performáticas, Zodíaco
é um filme de inação. Um filme que contempla o cinema
a partir da perspectiva do depois: não há mais ação em curso para
ser registrada; o cinema já passou, balizou todo o território,
e retirou-se de campo. E como fazer um filme sobre um
serial killer
sob essa premissa? Como esgarçar o gênero por uma aparente
desertificação do que lhe seria constituinte? Pois parece
ser justamente pela chave do reverso que Fincher responde
a esta proposição um quê improvável, e realiza um filme
fundamental para a reflexão sobre o cinema comercial
americano hoje.
O mundo de Zodíaco
é praticamente um mundo de maquete. A caracterização
de época hiper-realista, quase caricatural em sua obsessão
pelos detalhes de figurino, arte e maquiagem, forja
um cenário impecável, de poucas matizes cromáticas.
Esta construção de um ambiente perfeitamente “cinematográfico”
vai além da precisão espantosa da direção de arte e
estende-se também ao timing
das cenas e aos detalhes de um roteiro extremamente
bem construído em nuances e elipses. Somos apresentados,
logo de início, a um universo que soa absolutamente
familiar, mas cujo afã descritivo é tão profundo que
instaura um estado perceptivo próximo de uma meta-narrativa.
Porque, em Zodíaco,
o puro fetichismo ou o impulso de releitura que pautam
a grande maioria dos produtos derivados dos gêneros
consagrados cedem lugar ao vazio e ao oculto. O Zodíaco
não é um assassino como os outros. Ele não é o outro
da sociedade – alienado ou excluído –, nem é a ameaça
que a coloca em xeque. Ele é, sim, uma idéia – ou, se
quisermos, um “personagem”, no sentido abstrato – disseminada
nos interstícios da sociedade. Sua identidade é, portanto,
desde sempre uma quimera – acessível apenas pela leitura
de suas cartas em primeira pessoa, que gera “encarnações”
por vozes diversas e reforça sua completa invisibilidade
–, e a ação prototípica do gênero – o gozo de matá-lo
ou prendê-lo, ou ainda de surpreendê-lo em flagrante
realizando o ato condenável –, uma miragem irrealizável.
Apenas nós, espectadores, temos acesso à encenação dos
crimes, cuja dedicada estilização configura uma espécie
de “cena ideal” e mantém sempre na zona de penumbra
a figura do assassino.
Pode-se dizer, pois, que, de certa forma, é a sociedade
mediatizada a verdadeira protagonista do filme. A sociedade
que assimila amplamente um conceito de narrativa criminosa
a ponto desta tornar-se um clichê que gera e modela
novas empreitadas de extermínio. Por isso centrar a
“ação” nos espaços da redação de um jornal e de delegacias
de polícia (que aqui se assemelham completamente entre
si), palcos privilegiados (juntamente com o tribunal),
na mitologia do cinema americano, de decisões que dizem
respeito ao conjunto da sociedade. Por isso, também,
situá-la temporalmente num período-chave na história
do cinema para a reconfiguração da ficção policial.
Afinal, Zodíaco
não dramatiza apenas estes foros de especulação, debate
e negociação de sentidos citados, mas também o próprio
estabelecimento do savoir-faire
e da tecnologia que moldaram este clichê de assassino
e de investigação policial que conhecemos. Se por um
lado temos o esforço afoito de juntar peças para desvendar
o quebra-cabeça, frustrado justamente pela pulverização
de informações e falhas de comunicação entre as frentes,
temos por outro a problematização dos métodos. Incriminar
um suspeito com base em indícios de que natureza?, tomar
ou não a caligrafia como critério decisivo?, ou ainda:
adotar qual linha teórica dentro dos procedimentos eleitos?
O método dedutivo e intuitivo sai de cena e estabelece-se
um campo moldado pelo conhecimento.
No entanto, tudo se passa para o espectador como se
o desenrolar de uma investigação policial fosse algo
dado, e um processo com um único rosto – daí a dimensão
de “meta-narrativa” que citei mais acima. A crise
se dá, portanto, num nível subjacente ao do encaminhamento
da narrativa principal. Como muito bem apontado
por
Luiz Carlos Oliveira Jr. em sua crítica
de Os Donos da
Noite, em Zodíaco também trata-se de um enredo com
fortes tons conceituais, mas que nunca abdica da
força
da cena. O statement de Fincher é: não é necessário
ocupar-se de ficcionalizar (mais uma vez) a investigação
policial em si. Pois todos nós já sabemos identificar
os padrões, juntar as pistas, desconfiar de suspeitos;
e conhecemos também as armadilhas: rastreamento
de ligações,
impressões digitais, etc. O interesse é outro: uma
vez que o assassino é uma idéia disseminada e não
um agente,
é a própria noção de fato que é colocada em questão.
Resta a profusão da dúvida, do não-saber; quiçá da
desorientação
material no mundo.
Os cenários quase fixos abrigam mais e mais conversas
retóricas, nas quais argumentações e informações vão
e vêm, circulando incessantemente. Evidencia-se, assim,
um palco no qual os “heróis” também deixam de ser agentes,
pela evacuação da ação que os configuraria como tal.
Antítese radical do movimento de um Dirty
Harry, tal como o filme faz questão de apontar.
Não mais ressignificação e remodelação de um movimento
vetorial, mas a própria retirada do vetor da equação.
Zodíaco constrói-se em pura simultaneidade e sobreposição de camadas,
e o regime real de ações (a construção factual da intriga:
um gesto físico que encadeia outros e provoca conseqüências)
encontra-se eclipsado. As inúmeras localidades em jogo,
que provocam os problemas de jurisdição do caso, encontram-se
não apenas conectadas através de um mesmo acontecimento,
mas achatadas a um único território plano.
Desta operação de achatamento resultam as lacunas que
contaminam o filme. O espaço fora-da-tela, aqui, não
é o fora do enquadramento; é o fora da cena. Acedemos
aos fatos pela palavra, que abunda, ou pelos indícios
posteriores de que algo se deu. Neste sentido, a própria
imagem do filme também ocupa a função de mediação: a
forte presença dos atores, juntamente com a caracterização
ostensiva dos personagens, faz com que a intensidade
de suas performances preencha a tela. Mas o interesse
perdura na abstração, no outro da cena: a circulação
desconhecida do assassino, que pode apenas ser imaginada.
Estas duas instâncias em diálogo instauram no coração
de Zodíaco a constatação de uma crise da imagem figurativa no contexto
da ficção naturalista.
É possível filmar a cena A, mas não é mais possível
fechar sobre ela um enunciado sem expor necessariamente
a fratura existente entre o primeiro e o segundo gesto.
É através desta colocação que David Fincher reconfigura
completamente o seu maneirismo e a própria posição que
ocupava no cinema até então. Um enorme questionamento
percorre Zodíaco.
Mas seus desdobramentos como filme-problema são ainda
impossíveis de serem previstos.
Tatiana Monassa
(DVD: Warner)
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