ZODÍACO
David Fincher, Zodiac, EUA, 2007

Ao contrário do cinema pregresso de David Fincher, repleto de exageros e intensidades performáticas, Zodíaco é um filme de inação. Um filme que contempla o cinema a partir da perspectiva do depois: não há mais ação em curso para ser registrada; o cinema já passou, balizou todo o território, e retirou-se de campo. E como fazer um filme sobre um serial killer sob essa premissa? Como esgarçar o gênero por uma aparente desertificação do que lhe seria constituinte? Pois parece ser justamente pela chave do reverso que Fincher responde a esta proposição um quê improvável, e realiza um filme fundamental para a reflexão sobre o cinema comercial americano hoje.

O mundo de Zodíaco é praticamente um mundo de maquete. A caracterização de época hiper-realista, quase caricatural em sua obsessão pelos detalhes de figurino, arte e maquiagem, forja um cenário impecável, de poucas matizes cromáticas. Esta construção de um ambiente perfeitamente “cinematográfico” vai além da precisão espantosa da direção de arte e estende-se também ao timing das cenas e aos detalhes de um roteiro extremamente bem construído em nuances e elipses. Somos apresentados, logo de início, a um universo que soa absolutamente familiar, mas cujo afã descritivo é tão profundo que instaura um estado perceptivo próximo de uma meta-narrativa.

Porque, em Zodíaco, o puro fetichismo ou o impulso de releitura que pautam a grande maioria dos produtos derivados dos gêneros consagrados cedem lugar ao vazio e ao oculto. O Zodíaco não é um assassino como os outros. Ele não é o outro da sociedade – alienado ou excluído –, nem é a ameaça que a coloca em xeque. Ele é, sim, uma idéia – ou, se quisermos, um “personagem”, no sentido abstrato – disseminada nos interstícios da sociedade. Sua identidade é, portanto, desde sempre uma quimera – acessível apenas pela leitura de suas cartas em primeira pessoa, que gera “encarnações” por vozes diversas e reforça sua completa invisibilidade –, e a ação prototípica do gênero – o gozo de matá-lo ou prendê-lo, ou ainda de surpreendê-lo em flagrante realizando o ato condenável –, uma miragem irrealizável. Apenas nós, espectadores, temos acesso à encenação dos crimes, cuja dedicada estilização configura uma espécie de “cena ideal” e mantém sempre na zona de penumbra a figura do assassino.

Pode-se dizer, pois, que, de certa forma, é a sociedade mediatizada a verdadeira protagonista do filme. A sociedade que assimila amplamente um conceito de narrativa criminosa a ponto desta tornar-se um clichê que gera e modela novas empreitadas de extermínio. Por isso centrar a “ação” nos espaços da redação de um jornal e de delegacias de polícia (que aqui se assemelham completamente entre si), palcos privilegiados (juntamente com o tribunal), na mitologia do cinema americano, de decisões que dizem respeito ao conjunto da sociedade. Por isso, também, situá-la temporalmente num período-chave na história do cinema para a reconfiguração da ficção policial.

Afinal, Zodíaco não dramatiza apenas estes foros de especulação, debate e negociação de sentidos citados, mas também o próprio estabelecimento do savoir-faire e da tecnologia que moldaram este clichê de assassino e de investigação policial que conhecemos. Se por um lado temos o esforço afoito de juntar peças para desvendar o quebra-cabeça, frustrado justamente pela pulverização de informações e falhas de comunicação entre as frentes, temos por outro a problematização dos métodos. Incriminar um suspeito com base em indícios de que natureza?, tomar ou não a caligrafia como critério decisivo?, ou ainda: adotar qual linha teórica dentro dos procedimentos eleitos? O método dedutivo e intuitivo sai de cena e estabelece-se um campo moldado pelo conhecimento.

No entanto, tudo se passa para o espectador como se o desenrolar de uma investigação policial fosse algo dado, e um processo com um único rosto – daí a dimensão de “meta-narrativa” que citei mais acima. A crise se dá, portanto, num nível subjacente ao do encaminhamento da narrativa principal. Como muito bem apontado por Luiz Carlos Oliveira Jr. em sua crítica de Os Donos da Noite, em Zodíaco também trata-se de um enredo com fortes tons conceituais, mas que nunca abdica da força da cena. O statement de Fincher é: não é necessário ocupar-se de ficcionalizar (mais uma vez) a investigação policial em si. Pois todos nós já sabemos identificar os padrões, juntar as pistas, desconfiar de suspeitos; e conhecemos também as armadilhas: rastreamento de ligações, impressões digitais, etc. O interesse é outro: uma vez que o assassino é uma idéia disseminada e não um agente, é a própria noção de fato que é colocada em questão. Resta a profusão da dúvida, do não-saber; quiçá da desorientação material no mundo.

Os cenários quase fixos abrigam mais e mais conversas retóricas, nas quais argumentações e informações vão e vêm, circulando incessantemente. Evidencia-se, assim, um palco no qual os “heróis” também deixam de ser agentes, pela evacuação da ação que os configuraria como tal. Antítese radical do movimento de um Dirty Harry, tal como o filme faz questão de apontar. Não mais ressignificação e remodelação de um movimento vetorial, mas a própria retirada do vetor da equação. Zodíaco constrói-se em pura simultaneidade e sobreposição de camadas, e o regime real de ações (a construção factual da intriga: um gesto físico que encadeia outros e provoca conseqüências) encontra-se eclipsado. As inúmeras localidades em jogo, que provocam os problemas de jurisdição do caso, encontram-se não apenas conectadas através de um mesmo acontecimento, mas achatadas a um único território plano.

Desta operação de achatamento resultam as lacunas que contaminam o filme. O espaço fora-da-tela, aqui, não é o fora do enquadramento; é o fora da cena. Acedemos aos fatos pela palavra, que abunda, ou pelos indícios posteriores de que algo se deu. Neste sentido, a própria imagem do filme também ocupa a função de mediação: a forte presença dos atores, juntamente com a caracterização ostensiva dos personagens, faz com que a intensidade de suas performances preencha a tela. Mas o interesse perdura na abstração, no outro da cena: a circulação desconhecida do assassino, que pode apenas ser imaginada. Estas duas instâncias em diálogo instauram no coração de Zodíaco a constatação de uma crise da imagem figurativa no contexto da ficção naturalista.

É possível filmar a cena A, mas não é mais possível fechar sobre ela um enunciado sem expor necessariamente a fratura existente entre o primeiro e o segundo gesto. É através desta colocação que David Fincher reconfigura completamente o seu maneirismo e a própria posição que ocupava no cinema até então. Um enorme questionamento percorre Zodíaco. Mas seus desdobramentos como filme-problema são ainda impossíveis de serem previstos.

Tatiana Monassa

(DVD: Warner)

 








Arte do vazio e do oculto em Zodíaco (David Fincher)