Uma vez diante de Transylvania, é normal
(e, em certa
medida, até desejável) procurar ali no meio de toda aquela profusão de música
cigana e gente desequilibrada alguns traços de Exílios, a obra-prima de
Tony Gatlif lançada por aqui três anos atrás. É irresistível, por exemplo, observar
a crise de Zingarina (Asia Argento), após uma grande desilusão amorosa, uma
experiência de berros desesperados e um estado de semiconsciência que coincide
com a passagem de uma grande festa popular romena pela rua, com Zingarina se
misturando a toda aquela gente fantasiada e alegre, a câmera tomando partido
daquele torpor como se fosse ela própria parte da dança, enfim, é irresistível
olhar esta seqüência logo no começo de Transylvania e não relacioná-la
diretamente ao transe mulçumano-umbandista experimentado por Zano e Naïma, lá pelo
fim de Exílios. A força dos 10 minutos daquele plano-seqüência magistral
de Gatlif acabaria eventualmente se tornando uma espécie de paradigma do sucesso
de suas operações de estilo, a partir do qual se poderia medir algo como o grau
de vísceralidade de determinada cena, a maior ou menor entrega dos atores ao
jogo de perda dos sentidos proposto pelo diretor, o destino pessoal
destes personagens à deriva equilibrados com o destino político coletivo dos
renegados da Europa, sejam imigrantes, ciganos, ou simples marginais, gente
não-enquadrável.
Desde Gadjo Dilo (1997), que o projetou para o mundo,
a experiências com os filmes de Gatlif é, necessariamente, uma experiência de
reconhecimento, de familiaridade, do reencontro regular com um universo que,
paradoxalmente, não nega sua apresentação espetacular como partidária do gosto
pelo exótico, e ao mesmo tempo se esforça para criar um solo comum onde a
narração e a experiência da recepção consigam se conectar, não normalizando o
exotismo, mas apresentando-o como uma possibilidade de vida igualmente real,
possível, em última instância, reconhecível. Se Exílios foi o auge da
conjugação de todos esses elementos, a existência de Transylvania só poderia
valer se tivesse consciência de que é a rebarba de algo outro, o dia
seguinte àquele transe revelador. Gatlif parece estar bastante seguro da armadilha
que seu estilo criou para si mesmo, e então trabalha exatamente na exposição
disso que um dia fora uma marca autoral e que agora já soa como fórmula. Primeira
atitude, o espírito de Transylvania é, literalmente, a imagem em negativo
de Exílios. Se lá tudo o que o casal protagonista desejava (e simbolizava,
em sua trajetória da França de volta à Argélia natal) era o
apego à História, a necessidade de fazer parte de uma narrativa que não
começasse e terminasse neles mesmos, colar-se a terra, deixar-se marcar pela
experiência coletiva, aqui o mandamento é o desapego total, a confusão entre
fronteiras, a desterritorialização.
De fato, a visita à famosa região da Romênia é assumida como um passeio por um
parque temático em tamanho natural, onde a relação que Zingarina e seu parceiro
de andanças, Tchangalo (Birol Ünel) estabelecem com o
ambiente é mais próxima da animosidade arrogante que da afeição pelo desconhecido.
A esta gente de identidade voluntariamente sustada (Zingarina é italiana, mas
vivia na França, enquanto Tchangalo é alemão de descendência turca, ambos se
comunicam em inglês entre si, e num romeno macarrônico com o resto das pessoas),
que vive impulsionada pela vivência táctil do mundo, onde nenhum drama pode ser
psicológico, mas sempre físico, nenhum trauma pode se manifestar internamente,
mas tão somente pelo extravaso quase desesperado dessa dor, o contato com o exterior,
com a superfície das outras coisas, não é um fetiche, mas uma necessidade. E
assim, toda exacerbação cultural da região (as bandas formadas sempre por mais
de 10 pessoas, tocando instrumentos que repelem a delicadeza, que demandam grossura
de modos, as danças que exigem um esforço
físico e uma movimentação fora do comum) não serve de passaporte para o autoconhecimento,
para a investigação íntima da alma ou qualquer bobagem dessas. A única virtude
elogiada por Transylvania é o choque constante. Se em Exílios,
o
resultado positivo da experiência por terras estranhas era a chance de abrigar
na pele as cicatrizes acumuladas desse contato com o mundo, receber fluídos alheios,
dividir o suor, aqui os corpos só se tocam para, naturalmente, se repelirem.
Qualquer aproximação é bruta, qualquer sentimento, mesmo o amor ou a
tolerância, só se manifestam pelo gesto violento e desmedido.
Esse primado da ação, levado às últimas conseqüências em Transylvania, é o
que garante a maior parte de seu encanto. Nesta estrutura narrativa que torna
a trajetória dos personagens uma sucessão de esquetes, onde uma situação é apresentada,
desafia os limites de exposição e a disponibilidade ao confronto dos dois, para
então se seguir adiante, onde um novo encontro os aguarda, tudo nos leva a crer
que o que importa não é o jogo, mas os jogadores. Nada do que vemos Asia Argento
e Birol Ünel fazer aqui é novidade, ou algo que já não os tenhamos visto fazer
em outros filmes, mas é a concentração esquizofrênica
dessas situações-limite que tornam a coisa toda tão vigorosa (não à toa, este é o
filme de Gatlif em que o humor aparece mais espontaneamente, entendido aqui como
a manifestação física mais conciliadora entre sujeitos propensos ao confronto
e um mundo que não faz questão de tornar a briga mais fácil). De todo modo, esse
vigor já parece se ressentir de ter apenas uma via de expressão (os atores) e
uma instância de emolduração (a câmera sempre na mão, mas que não prescinde da
janela larga do cinemascope, tentativa de estar tão próxima da
potência individual quanto abarcar tudo aquilo que se puser em torno dela). Por
mais fervorosa e entorpecida que pareça a presença destas pessoas no mundo do
filme – tapas na cara, socos, gritos estarrecedores, corridas, caminhadas exaustivas,
garrafas quebradas na cabeça, um parto visto como cerimônia de
exorcismo – elas existem num fluxo visual e sonoro que nunca se arrisca com a
mesma inteireza. Transylvania é o reconhecimento da força de um universo
fílmico que Tony Gatlif soube construir como poucos, ao longo de todos seus filmes,
e que por isso se permitiu aqui abandonar todas as “grandes questões” anteriores
em nome do puro delírio com sua própria existência, com suas
próprias regras de funcionamento. Mas, ao mesmo tempo, representa o fim de uma
linha, o esgotamento daquele universo – que graça pode ter uma mágica depois
que o mágico revelou a mecânica de seu truque? Talvez esta seja a hora do cinema
de Gatlif se desligar de sua identidade e viver, finalmente, a
experiência do abandono, aquela mesmo que a seus personagens sempre pareceu ser
tão liberadora.
Rodrigo de Oliveira
(DVD: Imovision)
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