TRANSYLVANIA
Tony Gatlif, França, 2006

Uma vez diante de Transylvania, é normal (e, em certa medida, até desejável) procurar ali no meio de toda aquela profusão de música cigana e gente desequilibrada alguns traços de Exílios, a obra-prima de Tony Gatlif lançada por aqui três anos atrás. É irresistível, por exemplo, observar a crise de Zingarina (Asia Argento), após uma grande desilusão amorosa, uma experiência de berros desesperados e um estado de semiconsciência que coincide com a passagem de uma grande festa popular romena pela rua, com Zingarina se misturando a toda aquela gente fantasiada e alegre, a câmera tomando partido daquele torpor como se fosse ela própria parte da dança, enfim, é irresistível olhar esta seqüência logo no começo de Transylvania e não relacioná-la diretamente ao transe mulçumano-umbandista experimentado por Zano e Naïma, lá pelo fim de Exílios. A força dos 10 minutos daquele plano-seqüência magistral de Gatlif acabaria eventualmente se tornando uma espécie de paradigma do sucesso de suas operações de estilo, a partir do qual se poderia medir algo como o grau de vísceralidade de determinada cena, a maior ou menor entrega dos atores ao jogo de perda dos sentidos proposto pelo diretor, o destino pessoal destes personagens à deriva equilibrados com o destino político coletivo dos renegados da Europa, sejam imigrantes, ciganos, ou simples marginais, gente não-enquadrável.

Desde Gadjo Dilo (1997), que o projetou para o mundo, a experiências com os filmes de Gatlif é, necessariamente, uma experiência de reconhecimento, de familiaridade, do reencontro regular com um universo que, paradoxalmente, não nega sua apresentação espetacular como partidária do gosto pelo exótico, e ao mesmo tempo se esforça para criar um solo comum onde a narração e a experiência da recepção consigam se conectar, não normalizando o exotismo, mas apresentando-o como uma possibilidade de vida igualmente real, possível, em última instância, reconhecível. Se Exílios foi o auge da conjugação de todos esses elementos, a existência de Transylvania só poderia valer se tivesse consciência de que é a rebarba de algo outro, o dia seguinte àquele transe revelador. Gatlif parece estar bastante seguro da armadilha que seu estilo criou para si mesmo, e então trabalha exatamente na exposição disso que um dia fora uma marca autoral e que agora já soa como fórmula. Primeira atitude, o espírito de Transylvania é, literalmente, a imagem em negativo de Exílios. Se lá tudo o que o casal protagonista desejava (e simbolizava, em sua trajetória da França de volta à Argélia natal) era o apego à História, a necessidade de fazer parte de uma narrativa que não começasse e terminasse neles mesmos, colar-se a terra, deixar-se marcar pela experiência coletiva, aqui o mandamento é o desapego total, a confusão entre fronteiras, a desterritorialização.

De fato, a visita à famosa região da Romênia é assumida como um passeio por um parque temático em tamanho natural, onde a relação que Zingarina e seu parceiro de andanças, Tchangalo (Birol Ünel) estabelecem com o ambiente é mais próxima da animosidade arrogante que da afeição pelo desconhecido. A esta gente de identidade voluntariamente sustada (Zingarina é italiana, mas vivia na França, enquanto Tchangalo é alemão de descendência turca, ambos se comunicam em inglês entre si, e num romeno macarrônico com o resto das pessoas), que vive impulsionada pela vivência táctil do mundo, onde nenhum drama pode ser psicológico, mas sempre físico, nenhum trauma pode se manifestar internamente, mas tão somente pelo extravaso quase desesperado dessa dor, o contato com o exterior, com a superfície das outras coisas, não é um fetiche, mas uma necessidade. E assim, toda exacerbação cultural da região (as bandas formadas sempre por mais de 10 pessoas, tocando instrumentos que repelem a delicadeza, que demandam grossura de modos, as danças que exigem um esforço físico e uma movimentação fora do comum) não serve de passaporte para o autoconhecimento, para a investigação íntima da alma ou qualquer bobagem dessas. A única virtude elogiada por Transylvania é o choque constante. Se em Exílios, o resultado positivo da experiência por terras estranhas era a chance de abrigar na pele as cicatrizes acumuladas desse contato com o mundo, receber fluídos alheios, dividir o suor, aqui os corpos só se tocam para, naturalmente, se repelirem. Qualquer aproximação é bruta, qualquer sentimento, mesmo o amor ou a tolerância, só se manifestam pelo gesto violento e desmedido.

Esse primado da ação, levado às últimas conseqüências em Transylvania, é o que garante a maior parte de seu encanto. Nesta estrutura narrativa que torna a trajetória dos personagens uma sucessão de esquetes, onde uma situação é apresentada, desafia os limites de exposição e a disponibilidade ao confronto dos dois, para então se seguir adiante, onde um novo encontro os aguarda, tudo nos leva a crer que o que importa não é o jogo, mas os jogadores. Nada do que vemos Asia Argento e Birol Ünel fazer aqui é novidade, ou algo que já não os tenhamos visto fazer em outros filmes, mas é a concentração esquizofrênica dessas situações-limite que tornam a coisa toda tão vigorosa (não à toa, este é o filme de Gatlif em que o humor aparece mais espontaneamente, entendido aqui como a manifestação física mais conciliadora entre sujeitos propensos ao confronto e um mundo que não faz questão de tornar a briga mais fácil). De todo modo, esse vigor já parece se ressentir de ter apenas uma via de expressão (os atores) e uma instância de emolduração (a câmera sempre na mão, mas que não prescinde da janela larga do cinemascope, tentativa de estar tão próxima da potência individual quanto abarcar tudo aquilo que se puser em torno dela). Por mais fervorosa e entorpecida que pareça a presença destas pessoas no mundo do filme – tapas na cara, socos, gritos estarrecedores, corridas, caminhadas exaustivas, garrafas quebradas na cabeça, um parto visto como cerimônia de exorcismo – elas existem num fluxo visual e sonoro que nunca se arrisca com a mesma inteireza. Transylvania é o reconhecimento da força de um universo fílmico que Tony Gatlif soube construir como poucos, ao longo de todos seus filmes, e que por isso se permitiu aqui abandonar todas as “grandes questões” anteriores em nome do puro delírio com sua própria existência, com suas próprias regras de funcionamento. Mas, ao mesmo tempo, representa o fim de uma linha, o esgotamento daquele universo – que graça pode ter uma mágica depois que o mágico revelou a mecânica de seu truque? Talvez esta seja a hora do cinema de Gatlif se desligar de sua identidade e viver, finalmente, a experiência do abandono, aquela mesmo que a seus personagens sempre pareceu ser tão liberadora.

Rodrigo de Oliveira

(DVD: Imovision)

 

 






Zingarina em transe desesperado, no meio da multidão
festiva...


... e "brincando" de boxe com Tchangalo: o corpo-a-corpo
com a vida exige esforço físico, disposição ao confronto,
fervor e entorpecimento