PIRATAS DO CARIBE: NO FIM DO MUNDO
Gore Verbinski, Pirates of the Caribbean: At World's End, EUA, 2007

A saga de Piratas do Caribe tem início com uma cantiga entoada por uma Elizabeth menina, fitando o mar. Ela, que é filha de um oficial da coroa, sonha em ser pirata. CORTA. No Fim do Mundo, o terceiro filme da série, começa, com uma seqüência impressionante ao som de outra canção entoada por uma criança. A ela, segue-se um coro de vozes desfavorecidas, de miseráveis condenados à morte antes por sua posição no mundo do que pelos seus atos. Desta vez, no entanto, não se trata de um desejo lúdico inconseqüente, como sugeria a cena do primeiro, mas de um apelo à vida engajado. E, a este apelo, Elizabeth, agora adulta, irá responder com grande comprometimento: “we must fight”.

Neste curioso curto-circuito entre o lúdico e o político, Piratas do Caribe traça um caminho um tanto interessante. Em No Fim do Mundo, tudo o que no início era universo interno da pirataria fantasiosa de Jack Sparrow e cia. transborda para o mundo “real”, o mundo histórico dos homens. Se no primeiro filme a Companhia das Índias Orientais ignorava por completo a lógica dos piratas, rechaçando-os à marginalidade, aqui ela não apenas a compreende, como reconhece nela parte integrante de uma “política internacional”, tomando parte em suas disputas e corrompendo-se em nome da ambição. Porém, a alma dos piratas – aquilo que seduzia Elizabeth quando menina – segue incompreendida. E talvez seja este o grande porquê da discrepância manifesta entre os dois grupos, que traveste-se de um antagonismo mocinho-bandido (às avessas). Para os oficiais, trata-se de assegurar o domínio sobre os mares e aniquilar aqueles sujeitos inconvenientes. Para os piratas, brincar de capa e espada e viajar os mares o máximo possível.

Porque os Piratas do Caribe não morrem. São mortos-vivos indo e vindo, livres de preocupações que não sejam esse jogo mesmo. Afinal, simulacros que são, seu mundo é o da fantasia pura – o mundo dos parques de diversões, dos quadrinhos e dos videogames. E Elizabeth – e Will Turner, em alguma medida – é a humana que quer participar da brincadeira, engajar-se na fabulação. Ela situa-se, pois, num entre; precisamente ali onde poderia estar a política destes piratas – no ponto em que a inconseqüência torna-se escolha diante da vida. Por isso, ela vislumbra uma necessidade na luta contra a Companhia, e o engajamento de todos como imprescindível. Sua indignação com a bagunça que descortina-se na Bethrem Court (o tal conselho dos piratas) reflete esta sua natureza outra. Para os piratas reunidos ali, por outro lado, há apenas o próprio ego e compromisso nenhum.

No esteio da rivalidade entre a horda do mar e os ingleses, delineia-se uma distinção entre os grupos que é quase entre piratas e humanos. Embriagados de rum, os piratas apresentam movimentos caóticos que são pura superfície; perderam o peso dos movimentos do cinema de ação de um tempo passado. Pode-se dizer que Piratas do Caribe vive este paradoxo: o resgate de um universo ficcional/gênero cinematográfico e a perversão que opera nisto que existia como forma reconhecível. E é nesse embate discreto que seu universo se constrói; um universo no qual o cinema é memória (um quase-atavismo do cinema de ação) e amnésia (uma nova lógica da imagem, em que a modulação incessante de formas é a lei maior). Levando isso a um quase paroxismo, No Fim do Mundo nos apresenta uma “trama” super intricada, com seus projetos de vilões, coadjuvantes, heróis, etc, mas que não quer fazer sentido, sendo, na verdade, apenas, e claramente, um pretexto para um vai-e-vem incessante, no qual nunca se pode precisar de que lado cada um está, quais suas motivações e desejos, ou mesmo quem está vivo e quem está morto.

O círculo se fecha: a política, então, já não é mais da ordem da dualidade e do embate, de “escolher um lado”, mas da ordem de um “engajamento” pessoal. E isso não significa menos ser egoísta (“something very piraty”), e mais abraçar um certo tipo de movimento ”ondulatório”: lançar-se ao mar, viver de oscilações e de incertezas, aceitar os riscos de quem não tem nada a perder – nem mesmo a própria vida.

Tatiana Monassa

(DVD: Buena Vista)