A saga de Piratas do Caribe
tem início com uma cantiga entoada por uma Elizabeth
menina, fitando o mar. Ela, que é filha de um oficial
da coroa, sonha em ser pirata. CORTA. No Fim do Mundo,
o terceiro filme da série, começa, com uma seqüência
impressionante ao som de outra canção entoada por uma
criança. A ela, segue-se um coro de vozes desfavorecidas,
de miseráveis condenados à morte antes por sua posição
no mundo do que pelos seus atos. Desta vez, no entanto,
não se trata de um desejo lúdico inconseqüente, como
sugeria a cena do primeiro, mas de um apelo à vida engajado.
E, a este apelo, Elizabeth, agora adulta, irá responder
com grande comprometimento: “we
must fight”.
Neste curioso curto-circuito entre o lúdico e o político,
Piratas do Caribe traça um caminho um tanto interessante.
Em No Fim do Mundo, tudo o que no início era
universo interno da pirataria fantasiosa de Jack Sparrow e cia. transborda para o mundo “real”, o mundo histórico
dos homens. Se no primeiro filme a Companhia das Índias
Orientais ignorava por completo a lógica dos piratas,
rechaçando-os à marginalidade, aqui ela não apenas a
compreende, como reconhece
nela parte integrante de uma “política internacional”,
tomando parte em suas disputas e corrompendo-se em nome
da ambição. Porém, a alma dos piratas – aquilo que seduzia
Elizabeth quando menina – segue incompreendida. E talvez
seja este o grande porquê da
discrepância manifesta entre os dois grupos, que traveste-se
de um antagonismo mocinho-bandido (às avessas). Para
os oficiais, trata-se de assegurar o domínio sobre os
mares e aniquilar aqueles sujeitos inconvenientes. Para
os piratas, brincar de capa e espada e viajar os mares
o máximo possível.
Porque os Piratas do Caribe não morrem. São mortos-vivos indo e vindo, livres de preocupações que
não sejam esse jogo mesmo. Afinal, simulacros
que são, seu mundo é o da fantasia pura – o mundo
dos parques de diversões, dos quadrinhos e dos videogames.
E Elizabeth – e Will Turner, em alguma medida – é a humana que quer participar
da brincadeira, engajar-se na fabulação. Ela situa-se,
pois, num entre; precisamente ali onde poderia
estar a política destes piratas
– no ponto em que a inconseqüência torna-se escolha
diante da vida. Por isso, ela vislumbra uma necessidade
na luta contra a Companhia, e o engajamento de todos
como imprescindível. Sua indignação com a bagunça que
descortina-se na Bethrem Court (o tal conselho dos piratas) reflete esta sua natureza
outra. Para os piratas reunidos ali, por outro lado,
há apenas o próprio ego e compromisso nenhum.
No esteio da rivalidade entre a horda do mar e os ingleses,
delineia-se uma distinção entre os grupos que é quase
entre piratas e humanos. Embriagados de rum, os piratas
apresentam movimentos caóticos que são pura superfície;
perderam o peso dos movimentos do cinema de ação de
um tempo passado. Pode-se dizer que Piratas do Caribe
vive este paradoxo: o resgate de um universo ficcional/gênero
cinematográfico e a perversão que opera nisto que existia
como forma reconhecível. E é nesse embate discreto que
seu universo se constrói; um universo no qual o cinema
é memória (um quase-atavismo do cinema
de ação) e amnésia (uma nova lógica da imagem,
em que a modulação incessante de formas é a lei maior).
Levando isso a um quase paroxismo, No Fim do Mundo
nos apresenta uma “trama” super
intricada, com seus projetos de vilões, coadjuvantes,
heróis, etc, mas que não quer fazer sentido, sendo, na verdade, apenas,
e claramente, um pretexto para um vai-e-vem incessante,
no qual nunca se pode precisar de que lado cada um está,
quais suas motivações e desejos, ou mesmo quem está
vivo e quem está morto.
O círculo se fecha: a política, então, já não é mais
da ordem da dualidade e do embate, de “escolher um lado”,
mas da ordem de um “engajamento” pessoal. E isso não
significa menos ser egoísta (“something
very piraty”), e mais abraçar um certo tipo de movimento ”ondulatório”: lançar-se ao mar,
viver de oscilações e de incertezas, aceitar os riscos
de quem não tem nada a perder – nem mesmo a própria
vida.
Tatiana Monassa
(DVD: Buena Vista)
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