Entre o famoso Oldboy e
este Lady Vingança,
que chegou ao circuito brasileiro sob a propaganda
de filme final de uma trilogia, Park Chan-Wook realizou
um média-metragem chamado Cut, integrante do longa-metragem em episódios Três... Extremos, contando ainda com contribuições de Fruit Chan
e
Takashi Miike, e que por aqui só foi exibido no Festival do Rio de 2005. Ali,
ainda impressionados pelo atropelo barroco-pop que Oldboy nos tinha dado, víamos a armação de um universo ainda tão
recente aos nossos olhos, mas já evidentemente gasto, superexposto, dominado.
A
mesma estilização no limite do absurdo, mas ao mesmo tempo a tentativa de se
manter um certo grau de realismo, se não na encenação (em Cut estamos no set de filmagem de um comercial, e todos os atores
parecem instruídos a parecer vendedores de um produto), ao menos para manter
o
espectador de pé na cadeira ao se filmar, sem meios-termos, toda a violência
física e o sangue que eventualmente jorre dela. Uma coisa, no entanto, ultrapassou
os limites da simples repetição de estilo. Em algum momento do
média, quando a coisa já desandou completamente e quando o set de filmagem já virou
um campo de batalha entre psicopatas, Park coloca a câmera no rosto de
uma criança que acabara de ver seu pai ser dilacerado pelo malvado da história,
e então o menino grita a plenos pulmões: “Eu quero vingança!”.
Chamar esse menino de alterego de Park Chan-Wook é inevitável, e talvez ajude
a entender o que faz de Lady Vingança um filme tão insuportavelmente infeliz. Estamos aqui
novamente diante do tema recorrente da vingança, mas ela já não é mais uma
questão. Ela é aqui a própria bíblia na qual o diretor reza, e a primeira
interpretação do grito daquele menino em Cut poderia
ser essa: o grito de alguém que já está tão crente na “verdade” daquilo em que
acredita que, em algum momento, perde contato com as outras “verdades” em volta
desta e passa a pregar, aos berros e sem se importar com o incômodo que esteja
causando, seus bordões catequizadores. Lady Vingança, assim, não é propriamente um filme, mas a celebração
de uma seita. Sabemos deste o título, desde a primeira imagem de Geum-Ja, que
não existe ali outro sentido que não ir à forra contra aqueles que a transformaram
no “anjo mau” que agora é. Precisamos acreditar no instinto
assassino dela – mais que isso, precisamos acreditar que seu instinto assassino é a
reação natural de todo aquele que já sofreu por culpa de alguém (a chave neoconservadora
americana deste mesmo sentimento apareceria depois em Valente, de Neil
Jordan, por exemplo). Porque não é apenas a idéia da vingança que Park Chan-Wook
defende aqui, mas sim a justeza moral desta atitude.
Isso chega ao histerismo puro quando não só a pregadora Geum-Ja se encarrega
do trabalho sujo, mas constrói um altar coletivo, onde todos aqueles que se sentem
atingidos pelo vilão podem aliviar o peso da dor ao
furá-lo com uma faca afiada, arrancar algum de seus dedos, ou qualquer outro
dízimo de menor valia. Vingar-se aqui é como sangrar um porco para o abate, just
a job.
E isso tudo talvez ainda fosse perdoável se este mesmo automatismo cego e fervoroso
não tomasse também, e principalmente, a própria
construção estética e narrativa de Lady
Vingança. O desespero infantil de Park Chan-Wook para adicionar novos elementos
visuais à sua missa é evidente, e aqui invade o terreno da fantasia. Seremos
bombardeados por uma série de imagens surrealistas, oníricas, que, no entanto,
só estão ali para disfarçar o caráter completamente mundano de sua
existência. Aqui, no nível da terra, que é onde Lady Vingança existe (ou então debaixo dela, mas nos conteremos em
não condenar o filme ao inferno, pelo menos não em público), até podemos nos
enojar com sua tese ideológica, com seu modo de operação completamente
estúpido, mas a primeira coisa que não podemos perdoar é o fato de que a vítima
mais esquartejada deste teatro da vingança tenha sido o próprio cinema, que não
tem nada a ver com isso.
Rodrigo de Oliveira
(DVD: Platina Filmes)
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